GeografiaInternacional

Diplomacia e intervencionismo yankee na era das guerras intermináveis

Tempo de leitura: 11 min

Conn Hallinan – Os Estados Unidos estão no limite de consagrar a intervenção humanitária como princípio de sustentação da sua política externa?

Enquanto a mídia tradicional foca nos perdedores e ganhadores da corrida entre Hillary Clinton e Donald Trump, um debate amplo e não reportado está acontecendo sobre os futuros rumos da diplomacia dos EUA. Seu resultado terá um efeito profundo em como Washington projeta poder – tanto diplomático quanto militar – na década que se aproxima.

As questões em jogo não são abstratas. Os EUA está atualmente envolvido em guerras ativas no Afeganistão, Iraque, Síria, Iêmen e Somália. Enviou tropas para a fronteira russa, brincou de empurra empurra com a China na Ásia, e estendeu sua pegada militar no continente africano. Não seria exagero dizer – como fez recentemente o ex-secretário de Defesa dos EUA, William Perry – que o mundo é um lugar mais perigoso hoje do que nos piores tempos da Guerra Fria.

Traçar as linhas desse argumento não é fácil, em parte porque os participantes não são sempre didáticos sobre o que estão propondo, em parte porque a mídia simplifica as questões. No quadro mais amplo, “os realistas” representados pelo ex-conselheiro de Segurança Nacional, Henry Kissinger, Steven Walt de Harvard e John Mearsheimer da Universidade de Chicago, se posicionaram contra “intervencionistas humanitários” como a atual embaixadora da ONU, Samantha Power. Dado que Power é uma conselheira chave da administração Obama sobre política externa e pode ter um papel similar se Clinton for eleita, suas opiniões têm peso.

Em um artigo recente no New York Review of Books, Power pergunta, “como um estadista faz para avançar os interesses de sua nação?” Ela começa sequestrando a posição mais realista de que a diplomacia dos EUA deve refletir sobre “interesses nacionais”, argumentando que são indissociáveis de “valores morais”. O que acontece com as pessoas nos outros países, ela argumenta, está na nossa “segurança nacional”.

Power – junto com Clinton e o ex-presidente Bill Clinton – tem sido uma defensora das “intervenções humanitárias” há um tempo, pretexto que os EUA usaram para intervir na guerra civil da Iugoslávia.

A intervenção humanitária foi, desde então, formalizada como “responsabilidade para proteger”, ou R2P, e foi a justificativa para depor Muammar Gaddafi na Líbia. Hillary Clinton defendeu firmemente a aplicação da R2P na Síria estabelecendo “zonas de exclusão aérea” para impedir que aviões sírios e russos bombardeiem insurgentes e os civis sob seu controle.

Mas Power está propondo algo diferente de uma intervenção humanitária. Ela está sugerindo que os EUA elevem a R2P para o nível de segurança nacional, o que soa desconfortável como um argumento a favor de intervenção dos EUA em qualquer lugar que não replique o sistema norte-americano.

Enfrentando o Kremlin

Essa é sua escolha de exemplos: Rússia, China e Venezuela, todas atualmente na mira de Washington. Desses, ela gasta a maior parte de seu tempo em Moscou e na crise atual na Ucrânia, onde ela acusa os russos de terem enfraquecido “uma norma padrão independente” apoiando insurgentes ao leste da Ucrânia, “podando parte de um país vizinho” ao tomar a Criméia, e suprimindo as notícias da intervenção russa do seu próprio povo. Se a mídia russa relatasse a situação na Ucrânia, ela escreve, “muitos russos poderiam se opor” ao conflito.

Power não apresenta evidências para essa declaração, simplesmente porque não existem. Independentemente do que se pensa do papel de Moscou na Ucrânia, a grande maioria dos russos não somente não sabe o que acontece, como também apóiam o presidente Vladimir Putin na questão. Do ponto de vista do russo médio, a OTAN tem marchado em direção ao leste desde o final da guerra da Iugoslávia. São os norte-americanos que são enviados para os Bálcãs e para a Polônia, não os russos nas fronteiras do Canadá e do México. Os russos são um pouco sensíveis com relação às suas fronteiras, dado os dez milhões que perderam na 2a Guerra Mundial, algo que Power parece não se atentar.

O que Power parece incapaz de fazer é analisar como os países como a China e a Rússia vêem os EUA. Esse ponto de vista é uma habilidade essencial na diplomacia internacional, porque é como um determina se o outro é ou não uma ameaça séria à segurança nacional.

A Rússia – como o presidente Obama recentemente disse à ONU – está realmente “tentando recuperar sua glória perdida por meio da força?” ou Moscou está reagindo ao que percebe como ameaça à sua própria segurança nacional? A Rússia não interveio na Ucrânia até os EUA e seus aliados da OTAN apoiarem o golpe contra o governo do presidente Viktor Yanukovych e descartarem um acordo que havia sido feio entre a UE, Moscou e os EUA para resolver a crise pacificamente.

Power argumenta que não houve golpe, mas a secretária adjunta de Estado dos EUA, Victoria Nuland e o embaixador dos EUA na Ucrânia, Geoffrey Pyatt, foram gravados falando sobre como intermediar a tomada e escolher a melhor pessoa que eles queiram pôr no lugar.

Quanto à “podar parte” da Criméia, Power não teve problema com os EUA e a OTAN “podando parte” de Kosovo da Sérvia na guerra iugoslava. Em ambos os casos, populações locais – na Criméia, 96% – apoiaram as tomadas.

Entendendo como outros países vêem o mundo não significa que deve-se concordar com eles, mas não há nada nas ações de Moscou que sugere que esteja tentando restabelecer um império, como Obama caracterizou seu comportamento em um discurso recente na ONU. Quando Hillary Clinton comparou Putin a Hitler, ela equacionou a Rússia com a Alemanha nazista, o que certamente pareceu como uma ameaça existencial à nossa segurança nacional. Mas alguém acha que essa comparação é válida? Em 1939, a Alemanha era o país mais poderoso na Europa com um exército massivo. A Rússia tem a 11a maior economia do mundo, ficando para trás da França, Alemanha, Reino Unido, Itália e Brasil. A Turquia tem um exército maior.

A visão de Power sobre o que é bom para o povo russo é um caso em análise. Mesmo que alguém possa dificilmente admirar a oligarquia que domina a Rússia – e a última eleição parecia indicar apatia ao voto nos centros urbanos do país – os “liberais” que Power ama tanto foram as pessoas que instituíram a “terapia de choque” da economia nos anos 90 e que empobrecerem dezenas de milhares de pessoas e trouxeram uma baixa enorme na expectativa de vida. Esse histórico dificilmente irá eleger alguém. Em todo caso, os norte-americanos não estão em posição para palestrar sobre o papel que a riqueza oligárquica tem na manipulação das eleições.

A vista da China

Os chineses são intolerantes com dissidentes internos, mas o argumento de Washington com Pequim é sobre via marítimas, não registros eleitorais.

A China está agindo como valentona no Mar do Sul da China, mas foi o presidente Bill Clinton quem incitou as tensões atuais na região quando enviou dois grupos de aeronaves de batalha para os estreitos de Taiwan em 1995-96 durante um impasse tenso entre Taipei e o continente. Na época, a China não tinha a capacidade – e não tem agora – de invadir Taiwan, então as ameaças de Pequim não eram reais. Mas as aeronaves eram bem reais, e elas humilharam e assustaram a China em suas próprias águas. Esse incidente levou diretamente ao investimento acelerado da China no exército e nas ações no Mar do Sul da China.

Novamente, temos um longo histórico aqui. Começando com as Guerras do Ópio em 1839 e 1860, seguidas pela Guerra Sino-Japonesa em 1895 e a invasão da China por Tóquio na 2a Guerra Mundial, os chineses têm, constantemente, sido invadidos e humilhados. Pequim acredita que a administração Obama produziu seu “pivô asiático” para cercar a China com seus aliados.

Enquanto essa pode ser uma simplificação – o Pacífico há tempos é o maior mercado dos EUA – é uma conclusão perfeitamente racional de se estabelecer tendo em vista o envio de fuzileiros navais dos EUA para a Austrália, o posicionamento de forças nucleares em Guam e Wake, o estabelecimento de sistemas de mísseis na Coréia do Sul e no Japão, e a tentativa de estreitar os laços militares com a Índia, Indonésia e o Vietnã.

“Se você é um pensador estratégico na China, não precisa ser um teórico paranóico conspiracionista para pensar que os EUA estão tentando botar a Ásia contra a China”, disse Simon Tay, presidente do Instituto de Relações Exteriores da Cingapura.

Enquanto isso na América Latina…

Quanto à Venezuela, os EUA apoiaram o golpe de 2002 contra Hugo Chávez e tem liderado uma campanha de hostilidade contra o governo desde então. Mesmo com todos os seus problemas, o governo Chávez cortou as taxas de pobreza de 54.5% da população para 32%, e a pobreza extrema de cerca de 20% para 8.6%. A mortalidade infantil caiu de 25 por 1.000 para 13 por 1.000, o mesmo para norte-americanos negros.

E a preocupação pelos direitos democráticos na Venezuela aparentemente não se estende às pessoas de Honduras. Quando um golpe militar depôs um governo progressista em 2009, os EUA pressionaram outros países da América Latina para reconhecer o governo ilegal que tomou o poder. Por mais que a oposição na Venezuela seja recebida com gás lacrimogêneo e alguns sejam presos, em Honduras eles são mortos por esquadrões da morte.

A visão de Power de que os EUA se posicionam pela virtude ao invés de simplesmente irem atrás de seus interesses é uma desilusão unicamente norte-americana. “Essa é uma imagem que os norte-americanos têm de si mesmos”, disse Jeremy Shapiro, diretor de pesquisa do Conselho Europeu de Relações Exteriores, “mas não é compartilhada, nem pelos seus aliados”.

A “divisão” entre os “realistas” e a R2P é uma ilusão. Ambos acabam no mesmo lugar: confrontando nossos supostos competidores e apoiando nossos aliados, independentemente de como tratam as pessoas. Mesmo sendo rápida em chamar os russo na Síria de “bárbaros”, ela é silenciosa sobre o apoio dos EUA na guerra aérea da Arábia Saudita contra o Iêmen, que já vitimou hospitais, mercados e civis.

O argumento que a política interna de outros países é uma questão de segurança nacional para os EUA eleva o R2P a um novo nível, estabelece um padrão para intervenção militar e para uma política estrangeira intervencionista que fará a administração Obama parecer positivamente pacífica.

Olhando para Novembro

É impossível separar esse debate sobre política externa da corrida atual pela Casa Branca. Clinton tem se mostrado belicosa na maioria das questões internacionais, e ela não é tímida sobre a intervenção militar.

Ela também se cercou de pessoas que produziram a guerra do Iraque, incluindo os fundadores do Project for a New American Century. Há rumores de que se ela ganhar, irá apontar a ex-representante do Departamento de Defesa, Michele Flournoy, como secretária de Defesa. Flournoy foi a favor do bombardeio nas forças de Assad na Síria.

Por outro lado, Trump tem sido menos do que coerente. Ele fez algumas declarações razoáveis sobre cooperar com os russos e algumas assustadoras sobre a China. Ele diz que se opõe às intervenções militares, mesmo tendo apoiado a guerra no Iraque (que agora mente). Ele é, assustadoramente, despreocupado sobre o uso de armas nucleares.

Em Foreign Affairs, Stephen Walt, um “realista”, diz que o desejo de Trump de considerar quebrar o tabu nuclear faz dele uma pessoa que “não tem compromisso em ser um chefe de estado”. Outros países, escreve Walt, “já estão preocupados sobre o poder norte-americano e os jeitos que é usado. A última coisa que precisamos é um equivalente norte-americano de um Kaiser Wilhelm ll impetuoso e bombástico”. O Kaiser era uma força importante por trás da 1a Guerra Mundial, um conflito que causou 38 milhões de mortes.

Quem quer que ganhe em novembro irá encarar um mundo no qual Washington não pode dar todas as cartas. Como aponta o expert em Oriente Médio, Patrick Cockburn, “os EUA permanecem uma superpotência, mas não é mais poderosa quanto antes”. Mesmo podendo depor regimes dos quais desgoste, “não pode substituir o que foi destruído”.

A fórmula de Power para a diplomacia é uma que contém um ciclo interminável de guerras e instabilidade.

http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/Diplomacia-e-intervencionismo-yankee-na-era-das-guerras-interminaveis-/6/37077

Deixe uma resposta