Sociedade

“A Operação Condor foi um pacto criminal dos regimes militares”

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Marsílea Gombata — Em documentário, diretor brasileiro resgata atrocidades cometidas no âmbito da aliança entre países do Cone Sul

Martin Almada revelou nos anos 1990 o maior acervo documental já descoberto sobre a ditadura de Alfredo Stroessner no Paraguai (1954-1989) e a Operação Condor

Desvendar a aliança entre países do Cone Sul que, com apoio logístico e financeiro dos Estados Unidos, perseguiram, torturaram e mataram militantes de esquerda contrários aos regimes militares desses países é uma tarefa necessária para contar a história do continente. Não apenas para mostrar a confluência ideológica entre vizinhos, mas a maneira como a tomada de decisões – a exemplo da tortura pelas mãos do Estado – foram orientadas pelo governo americano.

Foi na tentativa de resgatar evidências e a complexidade da aliança que o cineasta Cleonildo Cruz viajou para Argentina, Uruguai, Paraguai, Peru, Chile e Bolívia, onde pesquisou à exaustão documentos e realizou entrevistas com sobreviventes e parentes das vítimas. O resultado foi o filme Operação Condor – Verdade inconclusa, primeiro documentário a percorrer todos os países que compactuaram com os EUA.

Apesar de elogiar a Comissão Nacional da Verdade brasileira, Cruz observa em entrevista a CartaCapital que o Brasil ainda tem muito a esclarecer sobre a aliança, que simbolizou a atuação dos EUA por trás das ditaduras latino-americanas.

Cruz considera que estamos atrasados em relação aos nossos vizinhos no que diz respeito à responsabilização dos algozes do Estado. Repassar o passado, para ele, é o primeiro passo para compreender o presente e não repetir violações no futuro.

“Não podemos nos calar frente às arbitrariedades dos órgãos de repressão que praticam a criminalidade estatal”, diz. O filme, que foi lançado em novembro no Chile e teve pré-estreia em São Paulo, agora será exibido em nova sessão de pré-estreia no próximo dia 24, no Centro Cultural Banco do Brasil de Belo Horizonte.

CartaCapital: Como surgiu a ideia de fazer o documentário?

Cleonildo Cruz: Realizar Operação Condor – Verdade Inconclusa foi algo inexorável. Na condição de cineasta que é historiador, venho descortinando o regime militar no Brasil e não poderia fechar o ciclo sem tratar da Operação Condor para desvendar bastidores e verdades não reveladas da aliança político-militar entre vários regimes militares da América do Sul: Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Peru, Paraguai e Uruguai, com apoio logístico e financeiro dos EUA, formalizada em 1975, em Santiago do Chile.

É um complemento, ao lado do documentário Olhares Anistia, finalizado neste mês com a jornalista Micheline Américo. O filme revisitará o movimento de luta pela anistia, seus desdobramentos históricos e questões ambíguas durante a sua aprovação ambientada ainda na ditadura, em 28 de agosto de 1979, até sua recente polêmica validação pelo Supremo Tribunal Federal.

CC: Qual foi o processo para a execução do filme em termos de entrevistas e viagens?

CC: O processo foi denso e envolveu as etapas de pré-produção, produção e pós-produção, totalizando mais de 30 entrevistas. Realizamos várias pesquisas primárias e secundárias nos sítios históricos do Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Peru, Chile e Bolívia. Tenho plena certeza que Condor é o melhor que temos na filmografia da América Latina sobre o tema. Além do componente da pesquisa histórica, temos o emocional, que é muito forte.

Buscamos documentos, relatos, ouvindo familiares e vítimas sobreviventes das torturas dentro da Operação Condor. Quando estamos frente a frente com cada um dos entrevistados, temos de ter controle emocional para ouvir, perguntar e conduzir a filmagem. Mas quando estamos na etapa de pós-produção não conseguimos segurar a emoção e choramos profundamente.

O filme é dedicado aos familiares latino-americanos que, com seus testemunhos, recompilam o que foi a Operação Condor: Aide Rita, Sara Basso, Elisa Cerqueira, Edgardo Binstock, Lilian Celiberti, Roberto Perdia, Andrés Habegger, Gustavo Molfino Giannetti, Julio Abreu, Alicia Cadenas Ravela, Elba Rama, Roger Rodriguez,Mateo Gutiérrez, Sofia Prats, Fran Uruguay, Macarena Gelmán, Martin Almada, Flor Hernandez Zazpe, Dora Careno, Laura Elgueta, Errandonea, Paulina Veloso e Juan Pablo Letelier.

CC: O que ainda falta ser esclarecido sobre a Operação Condor?

CC: Acredito que falta esclarecer a verdade sobre muitos latino-americanos sequestrados, torturados e assassinados, assim como seus restos mortais, para que suas famílias possam colocar um ponto final à história. Não restam mais dúvidas que a Operação Condor foi um pacto criminal dos regimes militares do países do Cone Sul.

Imagem que representa morto e desaparecido político no Museu da Memória: Ditadura e Direitos Humanos, do Paraguai

CC: Conhecer melhor a Operação Condor pode trazer que tipo de esclarecimento sobre o presente?CC: Mostra que não podemos nos calar frente às arbitrariedades dos órgãos de repressão que praticam a criminalidade estatal ou pela omissão de órgãos designados para investigar e encaminhar os responsáveis à Justiça. Quando um agente do Estado comete arbitrariedades criminalizando movimentos sociais e prendendo inocentes está cometendo o mesmo crime hediondo que foi praticado nos porões da ditadura no Brasil.

CC: O quanto a Comissão Nacional da Verdade brasileira conseguiu avançar para desvendar o que ocorreu na Operação Condor, em sua opinião? 

CC: A Comissão Nacional da Verdade é um órgão de governo estabelecido para determinar os fatos, causas e consequências de violações de direitos humanos sobre o passado recente. Mas muito falta a ser esclarecido sobre a Operação Condor.

Trago o exemplo do sequestro da argentina Noemí Molfino. Obtive acesso ao documento que revela que a ditadura brasileira participou do sequestro da militante no Peru em 12 de junho de 1980, que apareceu morta dia 19 de junho de 1980 em seu apartamento em Madri. A ação da Operação Condor envolveu o Brasil, e seu filho, Gustavo Molfino, espera até hoje uma resposta da Comissão Nacional da Verdade.

CC: Como enxerga as investigações de outros países da região em relação ao período ditatorial? Eles avançaram mais do que nós? 

CC: O Brasil foi o último país a criar uma Comissão Nacional da Verdade. Só esse ponto explica o resultado de apenas esclarecer os fatos e resgatar a memória do que foi o regime civil-militar no País. Os outros países avançaram muito mais que nós. Talvez seja essa a explicação de não termos caminhado para a responsabilização dos agentes do Estado que praticaram a criminalidade estatal.

Vivemos um regime entre 1964 e 1985. Tivemos a Lei de Anistia 6.683 de 1979, a Constituição de 1988, e as leis 9.140/95 e 10.559/02, pela implantação da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos e da Comissão de Anistia. O conceito de justiça de transição, no entanto, vai muito além da busca pela verdade e memória, da reparação às vítimas do regime civil-militar.

Significa a responsabilização dos agentes do Estado que agiram criminalmente sequestrando, torturando, assassinando e ocultando os mortos. A Comissão Nacional fez a opção mais cômoda de apenas resgatar a verdade e a memória como política de Estado. É preciso caminharmos para uma justiça de transição efetiva e não apenas um resgate histórico.

CC: Além de aliados políticos, o que ganhavam os EUA apoiando governos de direita em nome da luta contra o comunismo? 

CC: O controle hegemônico da política e economia do mercado de capitais da região. A interligação dos aparatos repressivos dos vários regimes militares da América do Sul (como Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Peru, Paraguai e Uruguai) não seria possível sem o apoio logístico e financeiro dos EUA. Embaixadas interligadas em comunicados permanentes, trocas de correspondências e monitoramentos. Tinham todos os movimentos da esquerda na América Latina monitorados. Era tempo da Guerra Fria, e a Doutrina de Segurança Nacional norteou a unificação dos aparatos repressivos de forma oficial em 1975.

É uma grande mentira dizer que essa relação dos EUA com as ditaduras na região se deu de forma mais efetiva após a oficialização da Operação Condor, em 25 de novembro de 1975. Os EUA gestaram em suas embaixadas todos os golpes militares dos países da América Latina, agindo além das suas fronteiras para desestabilizar as democracias.

CC: Qual a herança que nos deixa a Operação Condor? Como superá-la?

CC: Existe a herança do pacto criminal que foi a Operação Condor, que ainda hoje carregamos não só subjetivamente, mas com a prática do autoritarismo dentro das nossas corporações políticas e policias. É uma constatação de que os direitos humanos não são convertidos em política de Estado na América Latina.

“A Operação Condor foi um pacto criminal dos regimes militares”

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