Dilip Hiro – Sinais de um tremor na geopolítica global. China e Rússia, fortalecidas, unem-se em múltiplos terrenos para enfrentar hegemonia dos EUA. Desafio é militar, financeiro e cultural
“É como D. Quixote consola Sancho Pança, [com a ideia] de que,
embora, sim, lhe venham todas as surras, ao menos não precisa ser valente”
Karl Marx, Grundisse
Sejam todos bem-vindos a um mundo multipolar. Um dos fatos que salta aos olhos e destaca-se imediatamente: o planeta Terra já não é propriedade-quintal da “única superpotência” do globo.
Se você quer uma prova, pode começar por checar o papel recente de Moscou, que reformatou a guerra na Síria e, com isso, frustrou a agenda de Washington para derrubar o presidente Bashar al-Assad. Esses são só alguns dos desenvolvimentos que destacam a diminuição do poder dos EUA. Ele está encolhendo globalmente: seja na arena militar, seja na diplomática. Considere-se o modo como a China obteve sucesso no lançamento do Banco Asiático de Investimento e Infraestrutura, para concorrer com o Banco Mundial; para não falar da implementação de um plano para conectar vários países asiáticos e europeus com a China, numa vasta rede multinacional de transporte e oleogasodutos que Pequim denominou grandiloquentemente “Um Cinturão e Uma Estrada” ou “Projeto Novas Rotas da Seda”. Nesses desenvolvimentos, podem-se ver meios pelos quais os EUA, antes a potência econômica plenamente dominante, está sendo gradualmente desafiada e ultrapassada internacionalmente.
Moscou: no Oriente Médio, em pé de igualdade com Washington
O acordo Moscou-Washington do dia de setembro, alcançado depois de dez meses de dura negociação, está agora em ruínas, depois de mais uma quebra na trégua que acordada. Porém, tinha uma característica crucial, pouco destacada pelos comentaristas. Pela primeira vez a Rússia aparecia em pés de igualdade diplomática com os EUA, desde a implosão da União Soviética. Como o ministro russo Sergei Lavrov comentou, “Não é o fim da estrada (…), apenas o início de nossas novas relações” com Washington. Ainda que essas relações estejam hoje num estado de suspensão e acirramento, é indiscutível que a limitada intervenção militar do Kremlin na Síria (a pedido do governo sírio) foi desenhada para obter efeito multiplicador, gerando retornos tento naquele país devastado pela guerra como na diplomacia internacional.
Em agosto de 2015, por todos os critérios que se adotem, o presidente Assad estava nas cordas e a moral de seu exército, muito baixa. Nem o apoio do Irã e do Hezbollah libanês mostravam-se suficientes para reverter a fragilidade de Damasco, naquele momento.
Para salvar do colapso o governo do presidente Assad, os planejadores militares do Kremlin decidiram ocupar o vazio criado pelo colapso da Força Aérea Síria. Aumentaram muito as defesas aéreas do país e reabasteceram o arsenal dos sírios, muito carente de tanques e veículos blindados. Para isso, converteram uma das últimas bases russas fora do território nacional — uma base aérea próxima do porto mediterrâneo de Latakia — em posto operacional avançado. Despacharam para lá jatos de combate, helicópteros de ataque, tanques, artilharia e carros blindados para transporte de pessoal. A Rússia também deslocou seus mais avançados mísseis S-400 terra-ar.
O número de militares russos deslocado foi estimado em de 4 a 5 mil. Embora nenhum deles fosse soldado de infantaria, foi passo sem precedentes na história russa recente. A última vez que o Kremlin deslocou forças significativas para fora do próprio território – em dezembro de 1979 no Afeganistão – acabou mal, uma década depois, com retirada seguida pelo colapso da União Soviética em dezembro de 1991.
“A tentativa de Rússia e do Irã para promover Assad e tentar pacificar a população, só irá atolá-los num pântano, e não vai dar certo” – disse o presidente Barack Obama em entrevista coletiva na Casa Branca, pouco depois da intervenção militar russa na Síria. Obama deveria conhecer mais e melhor o tema, porque uma coalizão comandada pelos EUA lá estava, bombardeando alvos em território sírio controlado pelos terroristas do Estado Islâmico (ISIS) desde setembro de 2014. Ainda assim, o Pentágono logo depois assinou um Memorando de Entendimento [ing. Memorandum of Understanding, MoU] com o Kremlin sobre procedimentos de segurança para os respectivos aviões, que partilhavam o espaço aéreo sírio, e estabeleceu um link de comunicação para quaisquer problemas que surgissem.
Durante os seis meses seguintes de campanha aérea contínua, os jatos russos cumpriram 9 mil missões. Teriam sido destruídas 209 instalações para produção e transporte de petróleo (supostamente controladas pelo ISIS). Geraram-se condições para que o exército sírio retomasse 400 postos, espalhados por cerca de 10 mil km². No processo, os russos perderam apenas cinco homens.
Na sequência, ao mesmo tempo em que crescia a perspectiva de a Rússia desempenhar papel cada vez mais criticamente importante na Síria, a Casa Branca começou a mudar. Em meados de março de 2016, o secretário de estado John Kerry reuniu-se com o presidente Vladimir Putin da Rússia no Kremlin. A implicação foi que, ainda que rilhando os dentes, os EUA reconheciam a legitimidade da posição russa na Síria, e que era preciso coordenar a ação dos dois principais atores para esmagar o ISIS.
Um ano depois de a campanha russa ter sido lançada, a maioria das cidades sírias estava novamente sob controle do governo Assad (embora a maioria delas, em ruínas). O setor oriental de Aleppo, ainda controlado pelos rebeldes, estava sob ataque. A moral do exército sírio já era outra, apesar de seu contingente ter diminuído. Já não havia risco de o governo ser derrubado e melhoraram muito as condições da nação síria em qualquer mesa de negociações.
Não menos importante para os russos, apenas reemergentes no cenário do Oriente Médio, todos os atores anti-Assad estrangeiros reconheciam a posição de pivô crucialmente importante que o Kremlin alcançara naquele país destroçado pela guerra, onde cinco anos e meio de conflitos resultaram em cerca 500 mil mortos, e o bombardeio de hospitais havia se tornado rotina. No primeiro aniversário da campanha russa na Síria, Putin mandou para lá mais aviões, o que aumentou o risco de se meter num pântano sem saída possível. Mas não se pode negar que, nesse ínterim, a estratégia de Putin serviu muito bem aos objetivos estratégicos russos.
Árabes anti-Assad fazem contato com Putin
Entre outubro de 2015 e agosto de 2016, altos funcionários dos governos de Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Qatar, Bahrain e Turquia estiveram com Putin, em diferentes ocasiões. O primeiro a aparecer foi o ministro da Defesa saudita, príncipe Muhammad, filho do rei Salman. Encontraram-se na dacha do presidente russo em Sochi, no Mar Negro. A Arábia Saudita já havia financiado a compra, por encomenda feita pela CIA, de mísseis TOW antitanques, que aumentaram consideravelmente a capacidade da ofensiva dos rebeldes contra Assad no verão de 2015. No encontro, os dois concordaram que partilhavam o objetivo comum de impedir que “um califato terrorista [ISIS] chegue a comandar os acontecimentos.” Quando o ministro saudita de Relações Exteriores, Adel al-Jubeir, mencionou sua preocupação com os grupos rebeldes que os russos estavam alvejando, Putin imediatamente ofereceu-se para partilhar informações de inteligência, que significaria futura cooperação entre os serviços de segurança e militares dos dois países.
Mais tarde, no mesmo dia, o xeque Mohammed bin Zayed al-Nahyan, vice-comandante das Forças Armadas dos Emirados Árabes Unidos, telefonou ao presidente Putin. “Posso dizer que a Rússia desempenha papel muito sério nos assuntos do Oriente Médio”, declarou al-Nahyan mais tarde, acrescentando: “Não há dúvidas de que mantemos relação privilegiada.”
O governante do Qatar, Emir Tamim bin Hamad al-Thani, deu um passo além depois de se reunir com Putin no Kremlin, em janeiro de 2016. “A Rússia,” declarou, “desempenha papel protagonista no que tenha a ver com a estabilidade no mundo.” Assim como a Jordânia, o Qatar garantia à CIA as bases de que carecia para treinamento e o armamento dos insurgentes anti-Assad. Um mês depois, mais uma alta autoridade do Golfo a visitar o presidente Putin em Sochi seria o rei Hamad bin Isa al-Khalifa do Bahrain, que hospeda a 5ª Frota da Marinha dos EUA desde 1971. O rei presenteou o presidente russo com uma “espada da vitória” fundida em aço damasceno. Depois das conversações, o ministro russo das Relações Exteriores, Lavrov, informou que os dois países haviam decidido conjuntamente aprofundar os laços econômicos e militares que os ligam.
Em agosto, o presidente Recep Tayyip Erdogan da Turquia viajou a São Petersburgo para encontrar “meu caro amigo” Putin. As relações entre eles haviam caído ao ponto mais frio de todos os tempos quando os turcos derrubaram um jato russo no norte da Síria. Diferente de outros líderes ocidentais contudo, Putin telefonara diretamente a Erdogan para lhe dar parabéns por ter derrotado uma tentativa de golpe em julho. “Somos sempre categoricamente contra qualquer tipo de tentativa de atividade anticonstitucional” – explicou. Depois de três horas de conversas, concordaram em reparar as danificadas relações econômicas. Numa virada surpreendente, Erdogan parou de insistir na saída de Assad.
Em resumo, graças a sua intervenção militar limitada na Síria, Putin ganhou ascendência para opinar em decisões que afetem o futuro do Oriente Médio. Para satisfação de Putin, conseguiu responder, em campo, contra o que Obama disse, quando Moscou reincorporou a Crimeia: “a Rússia é potência regional que não defende os aliados e ameaça seus vizinhos mais próximos, não devido à sua força, mas à sua fraqueza.”
Como bônus extra, Putin ajudou a firmar sua popularidade doméstica, alcançando espantosos 89% de aprovação logo depois dos eventos na Crimeia e no leste da Ucrânia. Naquele momento, as sanções dos EUA e Europa, combinadas com os baixos preços do petróleo, haviam levado a Rússia a uma recessão que faria a economia encolher 3,7% em 2015. Foi impressionante demonstração de que, em política interna, a percepção que o país tenha de liderança forte consegue atropelar até as realidades econômicas. Esse ano, a economia russa ainda encolherá mais cerca de 1%. Mesmo assim, nas eleições parlamentares recentes, o partido Rússia Unida, de Putin, obteve 54% dos votos e 343 das 450 cadeiras da Duma, o parlamento nacional.
Interesses geopolíticos de chineses e russos convergem
Em parte como resposta às sanções ocidentais, a Rússia tem também estreitado seus laços comerciais com a China. Em junho de 2016, Putin fez sua quarta viagem a Pequim desde março de 2013, quando Xi Jinping tomou posse como presidente. Os dois líderes reforçaram a visão partilhada com vistas aos interesses geopolíticos convergentes de seus países, e para comércio e investimentos.
“O presidente Putin e eu concordamos”, disse Xi, “em que, diante de circunstâncias internacionais a cada dia mais complexas e sempre mutáveis, temos de persistir com ainda maior determinação em manter o espírito da parceria estratégica sino-russa de 2001 e a cooperação.” Sintetizando as relações entre os dois vizinhos, Putin ofereceu sua avaliação: “Rússia e China têm pontos de vista muito próximos um do outro, ou praticamente idênticos, na arena internacional.” Como cofundadores da Organização de Cooperação de Xangai em 1996, os dois países veem-se reciprocamente como potências eurasianas.
Durante sua visita a Pequim em junho passado, Putin mencionou 58 acordos, no valor total de 50 bilhões de dólares, que estavam sendo discutidos naquele momento pelos dois governos. A Rússia também prepara-se para lançar bônus soberanos denominados em yuan, para levantar US$ 1 bilhão, e discute planos para ligar a rede nacional chinesa de pagamentos eletrônicos ao seu próprio sistema de cartões de crédito. Os dois vizinhos já são parceiros no acordo de US$ 400 bilhões pelo qual a empresa russa de energia Gazprom deve fornecer gás natural à China pelos próximos 30 anos.
Como exemplo da convergência geopolítica sino-russa já em andamento, o vice-almirante Guan Youfei, chefe do Gabinete Chinês para Cooperação Militar Internacional, visitou recentemente a capital síria, Damasco. Ali se reuniu com o ministro da Defesa da Síria Fahd, Jassem al-Freij, e manteve conversações para assistência de coordenação militar com o general russo encarregado da área na Síria. Guan e al-Freij concordaram com expandir o treinamento e a ajuda humanitária chinesa, para conter o extremismo religioso.
Durante a visita de Putin à China, em junho, Xi falou a favor de estreitarem-se as relações de cooperação entre as respectivas agências de notícias, de modo que os dois países possam “aumentar a influência” de suas mídias sobre a opinião pública mundial. Essas agências noticiosas já obtiveram avanços significativos no fluxo global de comunicação. Na China, a Administração Estatal de Rádio, Cinema e Televisão iniciou seu projeto de “expandir-se para o exterior” já em 2001, com a China Central Television. Em 2009, os setores de transmissão em idiomas estrangeiros já distribuíam programas para todo o planeta — em árabe, inglês, francês, russo e espanhol.
Em 2006, Putin inaugurou a Russia Today (RT) como um braço da TV-Novosti, organização autônoma sem finalidades de lucro, financiada pela agência de notícias da Rússia, RIA Novosti, com orçamento de US$ 30 milhões. Constituiu-a com mandato para expor o ponto de vista russo oficial sobre eventos internacionais. Desde então, a RT International distribui boletins de notícias 24 horas por dia: documentários, programas de entrevistas, debates, noticiário esportivo e programação cultural em 12 idiomas, dentre os quais inglês, espanhol, hindi e turco. A RT America e a RT Reino Unido transmitem noticiário de conteúdo local desde 2010 e 2014 respectivamente.
Com orçamento anual de US$ 300 milhões em 2013-2014, RT ainda fica atrás do BBC World Service Group, com seus US$ 367 milhões de orçamento e noticiário em 36 idiomas. Durante uma visita aos moderníssimos estúdios da RT em Moscou em 2013, Putin conclamou os funcionários a “romper o monopólio anglo-saxão sobre os fluxos globais de informação.”
A China e a projeção global de poder
Em 2010, o presidente Obama lançou sua estratégia de “pivô para a Ásia”, concebida para conter o poder crescente da China. Em resposta, antes de completar seis meses na presidência, Xi Jinping já revelava o primeiro esboço, já bastante elaborado, de seu ambicioso projeto “Um Cinturão, Uma Estrada”, conhecido também como “Novas Rotas da Seda”. O projeto tinha já o objetivo de reordenar a configuração estratégica da política internacional, ao mesmo tempo em que promove a reconstrução econômica da Eurásia. Domesticamente, visava equilibrar o excessivo peso que têm as áreas costeiras para a economia chinesa, e promover o desenvolvimento de regiões ocidentais do interior. Visava também a unir China, Sudeste Asiático, Sul da Ásia e Ásia Central à Europa, mediante vasta rede de ferrovias e dutos de energia (gasodutos e oleodutos). Em fevereiro de 2015, o primeiro trem cargueiro completou com sucesso a viagem de 26 mil quilômetros, de Yiwu no leste da China, até Madrid, Espanha, ida e volta – impressionante sinal de novos tempos já efetivamente em curso.
Em 2014, para implementar seu projeto de “Novas Rotas da Seda”, Pequim estabeleceu o Fundo Rota da Seda, capitalizado com US$ 40 bilhões. O objetivo era promover maiores investimentos nos países ao longo das várias rotas do projeto. Considerado o total das reservas chinesas no exterior — US$3,3 trilhões em 2015, contra US$ 1,9 trilhão em 2008 – a quantia envolvida era até modesta; mas parece ser crucialmente importante para os planos grandiosos que a China construiu para o futuro, seu e do mundo.
Em janeiro de 2015, o governo chinês também estabeleceu o Banco Asiático de Investimento e Infraestrutura (BAII), em Pequim. Dois meses depois, ignorando as “conclamações” de Washington, a Grã-Bretanha tornou-se a primeira grande nação ocidental a aderir, como membro fundador, ao BAII. Na sequência, França, Alemanha e Itália também se associaram. Nenhuma dessas nações pode cometer a temeridade de ignorar o robusto crescimento econômico da China, a qual, dentre outras coisas, já é a primeira nação do mundo em volume de comércio. Com exportações e importações que chegavam a US$ 3,87 trilhões em 2012, ultrapassou os US$ 3,82 trilhões dos EUA. Foi a primeira vez, em 60 anos, que os EUA apareceram em segundo lugar nesse ranking.
A China é agora a principal parceira comercial de 29 países, inclusive alguns dos dez integrantes da forte Associação de Nações do Sudeste da Ásia, (ASEAN, em inglês). Isso explica por que a ASEAN não votou unanimemente a favor de apoiar as Filipinas, um estado-membro do grupo, quando a Corte Permanente de Arbitragem em Haia exarou sentença em julho, contra os direitos que a China requeria sobre o Mar do Sul da China. Poucos dias depois, a China já anunciava manobras navais de dez dias, a serem realizadas naquelas águas, em conjunta com os russos.
Reflexo desse aumento no PIB, os gastos militares também cresceram na China. Segundo relatório anual do Pentágono sobre as forças armadas chinesas, o orçamento de defesa da China aumentou 9,8% ao ano desde 2006, chegando a US$ 180 bilhões em 2015, ou 1,7% do PIB. Para efeito de comparação, o orçamento do Pentágono em 2015, de US$ 585 bilhões, devorava 3,2% do PIB dos EUA.
Dos quatro braços de suas forças armadas, o governo chinês tem focado, por óbvias razões, especialmente em expandir e melhorar a capacidade naval. Estudo da doutrina naval chinesa mostra que está seguindo o padrão clássico já seguido por EUA, Alemanha e Japão no final do século 19, na busca para alcançarem status de potências globais. Primeiro, foco na defesa das costas litorâneas do próprio país; segundo, garantir a segurança das águas territoriais e de navegação; e terceiro, proteger as rotas marítimas que a China usa para seus interesses comerciais. Para Pequim, é crucial proteger eficientemente as rotas marítimas usadas para trazer o petróleo do Golfo Pérsico até os portos do sul da China.
O objetivo final, e quarto estágio desse processo, para qualquer nação que aspire o grau de potência mundial é, claro, projetar o próprio poder para terras distantes. No momento, chegada já ao terceiro estágio, a China implanta as fundações de seu objetivo seguinte com um projeto de Rota Marítima da Seda, que envolve construir portos em Burma, Bangladesh, Sri Lanka e Paquistão.
O objetivo de médio prazo da Marinha chinesa é pôr fim ao monopólio que sempre foi dos EUA no Oceano Pacífico. Com esse objetivo, está rapidamente ampliando a frota de submarinos. Ao mesmo tempo, e sinal do que está por vir, a China já comprou (leasing por dez anos) uma área de 40 km² em Djbouti, no Chifre da África, para construir seu primeiro posto militar fora do território chinês. Mais uma vez em condição bem diferentes dos EUA, que, segundo o mais recente Base Structure Report, mantêm bases em 74 países. A França está em dez; a Grã-Bretanha, em sete. Obviamente, a China tem longo caminho a percorrer, se quiser alcançá-las.
Objetivos realistas da China e Rússia
Nesse momento, os líderes chineses não parecem antever que seu país possa desafiar os EUA pela hegemonia mundial, no mínimo nas décadas vindouras. Há dez anos, a Academia de Ciências Sociais da China, o mais prestigioso centro de pensamento e projetos do país, ofereceu o conceito de “poder nacional global”, formulado como um número cuidadosamente definido e finamente calculado, numa escala de 100. Em 2015, os números eram: EUA = 91,68; China = 33,92; e Rússia = 30,48.
Com 35,12, o Japão era o segundo da lista. Com 12,97, a Índia aparecia em 10º lugar, o que não impediu o primeiro-ministro Narendra Modi de declarar que seu país entrara na “era da aspiração”, e que a porção final do século 21 pertencerá à Índia. Para muitos realistas, o plano de Modi permanece no campo da fantasia, mas ajuda a lembrar que as próximas décadas conhecerão rápida escalada na direção da multipolaridade. (No que tenha a ver com poder de projeção no longo prazo, a Índia até agora só começou a construir uma rede de radar nas ilhas Mauritius, nas Seychelles, nas Maldivas e no Sri Lanka no Oceano Índico, para não perder de vista os navios mercantes e de guerra da China.)
O cenário global antevisto pelos presidentes de China e Rússia, que sempre mantêm os pés firmemente plantados na realidade, parece assemelhar-se ao tipo de equilíbrio de poder que existia na Europa um século depois da derrota de Napoleão em 1815. Na sequência daquele ano fatídico, os monarcas de Grã-Bretanha, Áustria, Rússia e Prússia decidiram que nenhum país europeu voltaria algum dia a ser tão poderoso quanto a França chegara a ser sob Napoleão. O resultante Concerto Europeu então firmado durou de 1815 até a eclosão da 1ª Guerra Mundial, em 1914.
China e Rússia cuidam agora de garantir que Washington não possa mais exercer irrestrito poder global, como exerceu entre 1992 e o verão de 2008. No início de agosto de 2008, sobrecarregado com os crescentes desafios que lhe vinham do Afeganistão e da ocupação militar no Iraque, o governo Bush limitou-se a condenações verbais da ação militar dos russos para reverter os ganhos do presidente pró-ocidente da Geórgia, Mikheil Saakashvili, que realizara ataque não provocado na região separatista da Ossétia do Sul.
Aí está um episódio que deve ser visto como marco — cujo significado poucos perceberam — do fim de um planeta unipolar, em que o poder dos EUA reinou praticamente sem limites. A ser bem isso, sejam bem-vindos, todos, ao nono ano de vida de um novo mundo multipolar.
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