Paulo Kliass – Com a PEC 241, a estrutura do Estado permanecerá eficiente para cumprir sua função primordial: perpetuar a desigualdade social e a concentração de renda.
O governo Temer tem apostado todas as suas fichas na aprovação de algumas medidas de impacto na área econômica, com o objetivo de se credenciar com maior confiança junto aos principais operadores do mundo financeiro. Havia uma certa ingenuidade por parte de alguns setores do grande capital e dos meios de comunicação a respeito do desfecho. De acordo com essa versão, bastaria a retirada de Dilma do Palácio do Planalto para que todas as dificuldades na seara da economia fosse rapidamente solucionadas.
No entanto, a realidade se apresenta teimosa e vem insistindo em sentido contrário. Já se passaram 5 meses, desde que houve a mudança da equipe de governo, e a consolidação do golpeachment não atenuou em nada os problemas associados a desemprego, recessão, déficit público, inflação, custo financeiro elevado, entre tantos outros itens da pauta. E o comando da política econômica continua buscando o equivocado caminho do austericídio como solução para a crise. A receita conservadora se orienta apenas pela verdadeira panaceia em que se converteu a busca do ajuste fiscal a qualquer custo. E dá-lhe cortes e mais cortes nas despesas de natureza social e investimento do governo, com a crença de que isso nos asseguraria um ingresso para a antessala do paraíso.
À medida que o tempo foi passando e os resultados concretos da agenda do desmonte não se apresentavam, teve início um movimento de manifestação pública de descontentamento da parte de setores do financismo com a falta de ousadia do novo presidente. Afinal, os desejos desses representantes do capital vão muito além dos limites de um mero ajuste nas contas públicas nesse ano ou no próximo. Desde o início da articulação do impeachment, enxergavam o golpe como uma maneira de implementar uma agenda bem mais radical de mudanças em nosso País.
PEC 241: redenção dos gastos financeiros.
Enfim, trata-se de reformas constitucionais – ou não – mas que implicam a alteração no modelo de acumulação e reprodução do capital por essas terras. Podemos chamar essa tentativa como a busca de consolidar uma agenda neoliberal de segunda geração. A primeira votação importante foi a lei que promoveu a abertura do Pré Sal para que essas reservas estratégicas e gigantescas passem a ser exploradas pelo oligopólio das petroleiras internacionais, com a consequente retirada da Petrobrás desse circuito.
No momento atual, estamos diante da tramitação de uma emenda constitucional, a famosa PEC 241, que pretende promover a diminuição de quase todas as despesas do orçamento, com exceção dos gastos de natureza financeira. A medida está sendo apresentada, de forma marota, como um simples mecanismo de resolver a crise fiscal dos difíceis dias que vivemos. No entanto, o dispositivo amarra no corpo da Constituição um enorme retrocesso social e econômico com prazo de 20 anos para vigorar. Ora, está mais do que evidente que a intenção verdadeira de quem propõe tal ajuste vai muito além do que mero equilíbrio das contas públicas no horizonte próximo.
O esforço do Ministro da Fazenda em sua fala no horário nobre mostra muito bem o desespero do governo para forçar a aprovação da medida. Henrique Meirelles é um quadro muito bem preparado do financismo. Em sua carreira no universo da banca privada, não foi por mero acaso que chegou ao posto de presidente internacional do Bank of Boston. Conhece suficientemente bem os fundamentos da economia para saber que não faz o menor sentido recorrer a essas falsas comparações entre economia da família e a formulação de política econômica de um Estado como o brasileiro.
Economia doméstica x política macroeconômica.
Os meios de comunicação foram inundados pelas fórmulas do tipo “você não pode gastar mais do que recebe” utilizadas pelo comandante da economia, bem como por outras pérolas do raciocínio simplista, jogando de forma astuta com as dificuldades que o senso comum enfrenta em desvendar os meandros da dinâmica da economia. Se é verdade que a dona de casa ou a pequena empresa não têm mesmo muito o quê fazer em momentos de descompasso entre receitas e despesas, o fato é que o raciocínio é completamente diverso quando se trata de um governo de um país, ainda mais em um caso como o nosso que conta com múltiplos instrumentos à sua mão. A capacidade de gerar recursos está vinculada à obtenção de receitas tributárias, mecanismo que apenas os entes públicos detêm. O Estado, por exemplo, tem a capacidade de obter recursos através do endividamento soberano – por meio do lançamento de títulos públicos – coisa muito distinta do que o indivíduo se dirigir a um banco e pedir um empréstimo ao gerente.
Se a intenção fosse apenas solucionar o descompasso atual de R$ 176 bilhões existente entre receitas e despesas para o exercício de 2016 os instrumentos seriam outros. Não existe déficit primário estrutural de longo prazo nas contas públicas. O caminho seria buscar outras fontes de arrecadação tributária, inclusive aproveitando a oportunidade para reduzir o alto grau de regressividade de nossos impostos. Afinal até o presente momento não houve apresentação de nenhuma medida que apontasse para a colaboração dos setores de alta renda para minorar os efeitos da crise. Estão sendo penalizadas apenas as camadas mais pobres, aquelas que permanecem na base da pirâmide social.
O foco não pode ficar apenas na redução das despesas sociais e investimento. Há que se buscar medidas para obter receita tributária sobre dividendos e capital próprio, sistema financeiro, patrimônio, heranças e tantas outras atividades não atingidas em uma perspectiva de justiça tributária. Por outro lado, é necessário incluir os gastos de natureza financeira realizados pela União, tais como juros e demais serviços da dívida pública. Mas isso significa mexer com os interesses dos poderosos, justamente aqueles que promoveram o impedimento de Dilma.
Duas décadas é uma eternidade.
Outro aspecto pouco discutido nesse debate é o caráter profundamente destruidor da PEC 241. Ao estabelecer o horizonte de duas décadas para promover o desmonte do arremedo de Estado de Bem Estar que ainda sobrou das conquistas da Constituição de 1998, a emenda carrega consigo a liquidação também das demais áreas. Tendo em vista a impossibilidade de atendimento de novas demandas a cada novo exercício fiscal até 2036, a PEC já define previamente a necessidade de uma reforma da previdência e de outras mudanças nos padrões de atendimento de saúde, educação, assistência, cultura, ciência & tecnologia, esportes, etc. Na dúvida, a recomendação é passar a tesoura no orçamento público e sugerir o atendimento do serviço em falta pelo setor privado.
O que as planilhas dos tecnocratas da maldade não captam é que a população brasileira vai crescer mais de 20 milhões habitantes ao longo de 20 anos. Como a longevidade também está aumentando, o número de idosos e sua participação da população vão crescer bastante. Assim, as necessidades de previdência, saúde e assistência social cresceriam apenas pelo fator vegetativo. Não há como atender a tais demandas com essa limitação de promover a correção apenas pela inflação prevista na PEC. Os gastos “per capita” serão drasticamente reduzidos ao longo do período.
Como o único elemento de despesa que não sofrerá controle é o financeiro, os orçamentos das próximas décadas conterão cada vez mais, e de forma crescente, uma parcela proporcionalmente mais significativa de dispêndio com juros. Previdência, saúde e educação continuarão brigando entre si para ver quem perde menos no total do bolo cada vez menor, sendo que as três juntas promoverão uma espécie de esmagamento das demais áreas.
Descartada qualquer racionalidade no argumento da “justiça social” dos cortes, ao governo sobra apenas a falácia neoliberal quanto aos supostos méritos macroeconômicos do desmonte. O contorcionismo retórico busca, lá no fundo do baú, a desculpa de que os nossos juros são elevados em razão de nosso elevado déficit público. Pouco importa se somos campeões mundiais no quesito há décadas, mesmo em momentos de confiança absoluta do mercado global, inclusive pelo fato de que passamos esse período todo pós Plano Real cumprindo rigorosamente os preceitos estabelecidos pelo financismo internacional.
Assim, se existe alguma perspectiva de redução paulatina do padrão de endividamento público, a ótica conservadora nos garante que os juros cairão e os investimentos poderão ser viáveis financeiramente. A economia chegará em algum momento ao fundo do poço e, a partir dali, só poderá mesmo melhorar. O ritmo de atividade se recupera, a capacidade ociosa pode ser diminuída, novos investimentos serão contratados. Bingo! Estão vendo como a receita do ajuste deu mesmo certo?
Custo social do desmonte não merece atenção.
O custo social e econômico do longo processo não é parte do problema. As falências generalizadas e a desindustrialização tampouco são levadas em conta. O desemprego em massa e o agravamento das condições de vida da maioria da população são considerados como variáveis inevitáveis. A mercantilização dos bens públicos é apontada como uma virtude para um Estado supostamente obeso e ineficiente. A privatização de previdência, saúde e educação, entre outras áreas sensíveis, passa ser apresentada como a segurança de que tempos como os atuais não mais voltarão.
E estrutura do Estado brasileira permanecerá intocável e eficiente para cumprir com sua função primordial: perpetuar a desigualdade social e a concentração de renda, se encarregando apenas de promover as despesas financeiras. Afinal, somos um povo que reconhece a supremacia do mercado e consideramos que os contratos devem mesmo ser respeitados a todo custo!
http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia/A-falacia-do-ajuste-liberal/7/36997
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