Leonardo Sakamoto – Não acredite em quem diz que não tem ideologia.
Não acredite em quem diz que não faz política.
Todos temos ideologia.
Todos fazemos política.
Quem diz que não tem ideologia é quem mais tem.
Quem diz que não faz política é quem mais faz.
Nossa ideologia vai conosco para toda parte. Adotamos ou escolhemos formas diferentes de filtrar e interpretar a realidade à nossa volta fazendo com os acontecimentos signifiquem coisas diferentes para você, para mim e para os outros.
Como disse Paulo Freire, tudo tem base ideológica. Somos guiados por conjuntos de ideias e adotamos diferentes formas de interpretar os fatos do mundo. O importante é saber se a nossa base é includente ou excludente. Ou seja: se queremos que mais seres humanos aproveitem da mesma dignidade que desejamos para nós mesmos ou não.
Ao mesmo tempo, o ”bom senso” não é neutro. Pelo contrário, é construído. Uma ação ou um comportamento visto como naturais ou lógicos são, na verdade, a resultante de uma série de disputas simbólicas no seio de uma sociedade. Com o tempo, a lembrança dessas batalhas se esvai ficando apenas o seu resultado: uma ideia largamente aceita e pouco questionada.
Felizmente, isso não é imutável e varia de acordo com o tempo e a sociedade em que se vive. O bom senso já justificou queimar hereges na fogueira, a escravidão de índios e negros, o impedimento ao voto feminino e a proibição de casais do mesmo sexo de terem os mesmos direitos dos héteros. Até que, com muito sacrifício, o bom senso passou a ser visto como preconceito ou, mais objetivamente, como a forma de uma classe dominante impor seus ideais ao resto da população.
Aliás, não há discurso mais ideológico do que aquele que diz que não possui ideologia. Ao tentar naturalizar relações sociais, culturais e econômicas como se fossem ”naturais” ou ”lógicas” ele está construindo, na verdade, uma complexa rede de estruturas.
O neoliberalismo é craque em se afirmar neutro quando, na verdade, não é. Em dizer que é lógico e natural cortar direitos de trabalhadores, impor limites para o crescimento de gastos públicos em educação e saúde, implantar uma idade mínima alta para a aposentadoria.
E, depois, do alto de uma cara de pau, representantes de empresários dizem que isso não é ideológico, que isso é apenas lógico. Lógico para que alguém continue ganhando e alguém continue perdendo. Para que todos achem isso normal. Ou, no limite, para que você seja tão bem doutrinado que se torne um cão de guarda daquele que te explora.
A classe política é responsável pela situação a que chegamos, com toda a corrupção, incompetência e ignorância que minou a credibilidade de instituições. Compra da Reeleicão, Mensalões, Trensalões, Lavas-Jato e a maioria dos escândalos, que permanece longe dos olhos do grande público.
Mas, mesmo assim, negar a política é atacar mortalmente a democracia, jogando fora a criança com a água suja do banho.
São os ambientes democráticos os responsáveis por garantir que diferenças sejam reconhecidas e minorias em direitos sejam ouvidas, tornando possível a vida em sociedade e não a violência como saída. Em outras palavras, sem as instituições políticas, a resolução dos conflitos seria na base da porrada, com o mais forte suprimindo o mais fraco.
Na prática, sabemos que isso não funciona muito bem, mas é apenas em um ambiente democrático que a própria democracia consegue mudar seus rumos e corrigir-se.
Contudo, circulam pelas redes sociais mensagens pedindo o fechamento do Congresso. Pessoas decretando a inutilidade não só do parlamento, mas também da própria atividade política, que deveria ser uma das mais nobres práticas humanas.
Outras solicitando que se encontre um ”salvador da pátria” que nos tire das trevas, sem o empecilho da ”política”.
Ou que Jesus volte.
Pessoas que, em sua maioria, são muito jovens para terem ideia do que estão falando porque não viveram a desgraça da ditadura. Ou, em sua minoria, que sabem muito bem do que estão falando e querem, patologicamente, uma desgraça como essa de volta.
Nesse contexto, ter opinião virou crime, defender um ponto de vista agora é delito, abraçar uma ideologia é passível de morte.
Em resumo, políticos, mídia, empresários e parte da sociedade conseguiram a proeza de dar espaço aos que defendem que ”fazer política é escroto”. Ou seja, ao invés de tentarmos melhorar a política, reinventar a democracia, a saída é negar tudo o que ela representa e buscar saídas rápidas, vazias e, não raro, autoritárias.
Daí, surgem candidatos que estufam o peito e mentem, com orgulho, que não são políticos e não fazem política.
Espalha-se a percepção de que quem se engaja na política, partidária ou não (porque muitos tontos fazem questão de resumir toda política à partidária), tem sempre interesses financeiros.
Muita gente com dificuldade cognitiva grave não consegue entender que a vontade de participar dos desígnios da pólis ou do país não ocorre apenas por ganho pessoal, mas por ideologia.
A política deveria ser o centro da vida do país e não um estábulo de interesses pessoais. Mas a roda-viva da terra arrasada agora gira por conta própria.
Enquanto isso, alguns grupos que vivem à sombra dos partidos, de um lado e de outro, se alimentaram desse processo. Eles não querem diálogo, querem sangue. Quanto pior, melhor. Partidos acharam que estavam reunindo as forças ao seu lado para a guerra. O problema é que, seguindo a toada, não vai sobrar partido para contar história.
Neste momento, mais do que em qualquer outro, nossas cidades não precisam de gestores. Precisam de bons políticos. De pessoas capazes de articular as diferentes demandas sociais e promover o diálogo entre setores econômicos e classes sociais a fim de encontrarmos soluções que não desagradem a todos. Pessoas que não enxerguem pessoas como números e bairros como planilhas.
Porque, ao final, a luta pela dignidade humana é uma conta que não fecha. Mas faz sentido mesmo assim.
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