Andrea Dip – Quatro professoras perseguidas por palavras e atividades nas escolas dão seu depoimento à Pública
Apesar de os projetos de lei baseados no Escola Sem Partido ainda não terem sido aprovados em nenhuma instância (a não ser no estado de Alagoas, com o nome de Escola Livre), vários professores de todo o país estão sendo perseguidos, processados ou respondendo sindicâncias por “doutrinação ideológica” – um conceito que vem ganhando força, como aconteceu com a “ideologia de gênero”. Abaixo, depoimentos de quatro professoras que foram ou estão sendo perseguidas, receberam ameaças e mensagens de ódio e ou respondem sindicâncias junto aos órgãos de educação.
Cleonilde Tibiriçá, ex-professora da Fatec Barueri, em São Paulo (SP):
Janeth de Souza e Silva, professora do Instituto de Educação Rangel Pestana, em Nova Iguaçu (RJ):
“Eu sou professora da rede estadual desde 1984 e estou respondendo a uma sindicância por ‘doutrinação ideológica’. Sou professora de inglês e defendo a escola pública como sempre defendi a vida toda. Estamos em uma greve de cinco meses aqui no Rio, e, toda vez que tem uma greve, eu converso com os meus alunos e explico os motivos das greves e o desrespeito que os governantes têm com a educação e os educadores. Acho que eles têm o direito de saber os motivos das greves que os afetam diretamente. E parece que agora isso é tido como doutrinação. Um belo dia eu dei minha aula e, quando estava saindo, me ligaram dizendo que eu precisaria comparecer à Metropolitana 1, que fica no centro de Nova Iguaçu e que responde pela Secretaria de Educação no meu município. Assim fiquei sabendo que havia uma gravação de 40 minutos de uma aula minha, que havia uma sindicância e que a acusação era doutrinação ideológica. Não fui chamada pela coordenação da escola, extremamente autoritária, fui chamada diretamente pela secretaria. Fiquei muito surpresa, mas continuo achando que, se eu for participar de uma greve, meus alunos têm o direito de saber os motivos, mesmo porque ensino futuros professores. Eu já poderia estar me aposentando pelos meus anos de trabalho, mas continuo na escola pública porque acredito que ela deve mudar, que a gente vai conseguir melhorar a educação, quero dar uma educação de qualidade aos meus alunos. A sindicância foi aberta em novembro de 2015 e até agora não tive qualquer notícia. Aqui no Rio de Janeiro, a gente tem a família Bolsonaro a nível federal, estadual e municipal. Portanto, nas três esferas temos representantes do Escola Sem Partido. Eu, inclusive, participei da audiência pública sobre o projeto e fiquei muito assustada com os depoimentos de algumas pessoas. Apareceu até um homem vestido de Hitler. Essa lei é um verdadeiro retrocesso.”
Gabriela Viola, professora de Colégio Estadual em Curitiba (PR):
“Enquanto professora, acredito que o conhecimento tem que ser construído em parceria com os alunos. Cada aluno traz o seu próprio conhecimento, cultura de vida, então um tema nunca é abordado da mesma forma. Eu levo um tema e a partir de um debate ele vira um conhecimento conjunto. E minha relação com os estudantes foi construída com muito respeito, nunca precisei tirar aluno de sala de aula ou aumentar o tom de voz. E nunca tinha sofrido qualquer tipo de repressão antes do ocorrido. O ataque veio por parte de páginas de direita, principalmente por causa do autor escolhido e do ritmo de música, que é marginalizado dentro da sociedade. Existem pessoas que pensam que sua cultura é superior a outras e é um pensamento etnocêntrico. E em cada ano do ensino médio a sociologia vai focar em um aspecto. O primeiro ano do ensino médio é mais voltado à sociologia, quando os alunos entram em contato com os pensadores clássicos como Durkheim, Marx e Weber. O segundo ano é um estudo de cultura e o terceiro ano, ciência política. Esse trabalho foi realizado no primeiro ano, e eu já tinha trabalhado outros autores. Hoje em dia, a sala de aula não é mais atrativa, é um desafio para o professor fazer com que a sala inteira participe da sua aula, que se envolva com o debate, e não apenas copie no caderno. A paródia [versão do funk Baile de favela com letra falando das teorias de Karl Marx] foi uma forma que eu encontrei de fazer a sala toda participar do conteúdo. Eles que escolheram o estilo musical, fizeram a paródia. O que eu fiz, que é um papel da sociologia, foi pegar algo que estava pronto na sociedade, desconstruir isso e construir algo novo. A gente ressignificou. Aí postei a música no Facebook no domingo à noite, e, no dia seguinte, o vídeo já estava em um monte de páginas, inclusive dizendo que era doutrinação ideológica. Algumas páginas de direita me ameaçaram. Na segunda-feira à noite, o vídeo já tinha 150 mil visualizações. A coordenação do colégio me chamou e disse que era pra eu ficar em casa enquanto o Núcleo Regional de Educação resolveria o que fazer com meu caso. Não chegaram a se opor oficialmente, mas o fato de me mandarem pra casa fez como que os alunos se mobilizassem no colégio e houve duas manifestações, de manhã e à noite, e também criaram a hashtag #VoltaGabi. Na mobilização da noite, a patrulha escolar foi chamada, mas apareceram três carros da Rotam. Acho que ninguém esperava essa pressão dos alunos e acho que a repercussão negativa de me mandar pra casa influenciou na decisão de me trazer de volta. Nós, professores, estamos sendo massacrados, apanhamos na rua quando pedimos melhor alimentação nas escolas, estamos sofrendo cortes. Então, esse projeto Escola Sem Partido não quer a qualidade da educação. Ele vem de setores fundamentalistas que querem cada vez mais uma sociedade passiva e ignorante. A escola sem partido é escola de um partido só.”
Alice Aparecida e Silva, professora do Instituto de Educação Estadual de Londrina (PR):
“Eu sou professora de geografia, atualmente trabalho com ensino médio regular, profissionalizante e fundamental 9º ano e sou professora há 22 anos. Em junho, aconteceu um evento organizado pela equipe multidisciplinar do colégio em que nós debatemos a questão de gênero, desde violência contra a mulher, cultura do estupro, orientação sexual em toda a sua diversidade, e culminou no Dia Mundial do Orgulho LGBT. Nós falamos também sobre a questão geracional, acessibilidade, idosos e prevenção de drogas, foi um trabalho amplo chamado ‘Diversidade e Sustentabilidade’. Nosso trabalho foi recortado e denunciado ao Juizado da Infância e Juventude por um advogado que tem um blog chamado “Endireita Londrina”, dizendo que estávamos estimulando a erotização infantil e trabalhando a ideologia de gênero – o que, aliás, precisamos discutir porque não existe ideologia de gênero – e ensinando pornografia. Tudo porque um dos grupos, que estava trabalhando a questão da orientação sexual, levou uma drag queen para fazer uma performance na hora do intervalo. Foi uma série de atividades, mas o enfoque foi na performance da drag e em um pedaço de um filme chamado O homossexual não é perverso, perverso é o ambiente onde ele vive, de 1971. Um professor do próprio colégio fez o recorte, ele é amigo desse advogado Felipe Barros, que se apresenta como um defensor da família, da moral, da fé. A drag fez uma dança e três trocas de roupas, estava com todas as roupas. Isso está sendo chamado de pornografia. Essa atividade aconteceu no turno em que temos só alunos de ensino médio. E, em todo o trabalho que foi feito, foi feita uma arrecadação de fraldas geriátricas; professores e alunos falaram sobre o que pensam sobre drogas, direitos, deveres, diversidade sexual. Foi um semestre nesse trabalho que culminou nessas apresentações. Nós respondemos que não infringimos nenhuma lei, que trabalhamos com o conteúdo do MEC e que o foco foi o respeito à diversidade – rompermos com o machismo, homofobia, preconceito contra o idoso, responsabilidade ambiental, respeito ao outro. Fizemos esse trabalho com adolescentes, não havia crianças na escola. Eu fui muito ameaçada na página do advogado. O processo está correndo e seremos chamados pra nos defender. Já abrimos um processo contra o professor e contra o advogado. Esse advogado orienta estudantes a filmar as aulas pra denunciar os professores, como na lei da mordaça. Nas redes sociais, sofremos muito ataque, assim como na página dele. Alguns dizendo que não servimos nem pra dar aula para animais. As defesas que foram feitas nas páginas foram excluídas. As manifestações homofóbicas, machistas e racistas na escola são recorrentes. Trabalhar esses temas é fundamental. Nós vivemos em uma sociedade bastante preconceituosa e excludente, e a escola é o reflexo desse contexto.”
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