Vladimir Safatle – “É coisa de quando não tínhamos condição de fazer testes, ver o que acontecia no cérebro. Hoje a pessoa vai me falar de inconsciente? Onde fica?”. As colocações do neurocientista Ivan Izquierdo, publicadas nesta Folha há algumas semanas, têm ao menos o mérito da clareza, além de expressar certa ironia, o que sempre acaba por produzir condescendência. Ela partilha, no entanto, um conjunto de dogmas que, para um setor da comunidade científica, parece valer como evidência natural.
Essa discussão poderia se restringir aos muros das universidades e laboratórios se não colocasse em questão algo que diz respeito a todos, mesmo que nem todos o saibam. Pois, ao fim e ao cabo, trata-se de saber como nós falamos de nós mesmos. Afirmar que o inconsciente é uma hipótese vazia não implica apenas tirar o emprego de centenas de psicanalistas. Significa também modificar de forma decisiva a maneira com que nós nos descrevemos, a maneira com que compreendemos a estrutura de nossas ações e a dinâmica de nossos sofrimentos e desejos.
Poucas foram as teses que influenciaram tanto a maneira como nós definimos a nós mesmos quanto a de que somos sujeitos atravessados por algo que nos causa e que não se submete à estrutura representacional de nossa consciência, algo que coloca continuamente questões sobre nossa identidade, a autonomia de nossas ações e a unidade de nossa personalidade. Nesse sentido, dizer que o inconsciente não existe equivaleria a dizer que não precisamos mais nos ver dessa forma descentrada.
Mas vejamos o que dizer das afirmações sobre a inexistência do inconsciente presente na referida entrevista. Dos dogmas pressupostos pelas colocações do neurocientista, um é deveras interessante, a saber, se não é localizável, então não existe. Se não posso responder à pergunta “onde fica?”, então não há sentido algum em falar de inconsciente. Isso pode passar por rigor científico em certas hostes, mas há razões para duvidar de tal materialismo sensualista e seu afã localizacionista.
Pois talvez estejamos aqui diante do que o filósofo inglês Gilbert Ryle um dia chamou de “erro de categoria”. Trata-se de um erro similar àquele do estudante que vai à USP pela primeira vez, é apresentado à biblioteca, à praça do Relógio, às salas de aula e, ao final, pergunta: “Bem, vim aqui, vi a biblioteca, a praça, o bunker da reitoria mas, afinal, onde está a USP?”. Sim, onde está o inconsciente se não posso localizá-lo como posso, por exemplo, localizar a região cerebral responsável pela empatia? Bem, talvez não seja possível localizá-lo porque ele não está lá à maneira que a mielinização dos axônios no sistema nervoso central está.
Alguns estão acostumados a pensar que o inconsciente seria algo como uma caixa de Pandora para onde iriam conteúdos mentais recalcados, desejos censurados e motivações reprimidas. Mas notem que o lado forte da hipótese de Freud não estava nessa cisão entre a consciência e certos conteúdos mentais. Por exemplo, ao falar sobre os sonhos, Freud insistia que deveríamos perceber como eles eram compostos de três níveis distintos: conteúdos manifestos (aquilo que me vem imediatamente à memória quando narro o sonho que tive), conteúdos latentes (aquilo que é revelado quando os sonhos são interpretados) e o “trabalho do sonhos”, ou seja, a maneira com que o sonho distorce, compõe, condensa e desloca seus materiais.
Esse último nível era, na verdade, o que permitia falar em inconsciente e foi por esse caminho que boa parte da psicanálise pós-freudiana trilhou.. Pois “inconsciente” eram as leis que determinam da estrutura do pensamento, o modo de pensar, seus caminhos, suas associações e repetições. Como se houvesse leis que agem em nós, que determinam a forma de nossos pensamentos e nossas relações à nossa revelia. Leis construídas a partir da incidência subjetiva das experiências sociais e que acabavam por se organizar como uma linguagem privada.
Foi pensando em algo semelhante que um antropólogo como Claude Lévi-Strauss, para quem o inconsciente era uma hipótese extremamente profícua, podia lembrar que essa noção era socialmente trivial. Por exemplo, quando estabelecemos escolhas matrimoniais, não temos consciência das leis do incesto. No entanto, elas agem em nós definindo, de forma muda, a configuração de nossas escolhas. Em dimensões fundamentais da vida, não agimos, mas somos “agidos” por desejos que nos atravessam e isso é o que nos faz, como dizia T.S. Eliot, diferentes de homens ocos.
Talvez seja esse estranhamento que alguns acreditam melhor apagar com uma boa imagem de pet scan. Isso pode parecer novo, mas é só um retorno ao materialismo do século 18.
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2016/07/1791738-os-homens-ocos.shtml
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