Laura Carvalho – Em Staff Note do FMI intitulado “Accounting Devices and Fiscal Illusions”, de 2012, o autor divide em quatro categorias os artifícios que têm sido usados nos diversos países para cumprir metas fiscais de curto prazo às custas de uma piora futura no orçamento.
A primeira consiste na geração de receitas que elevam gastos futuros. O artigo cita as incorporações de sistemas privados de previdência por vários governos europeus, que foram contabilizadas como receita apesar da obrigação futura de pagamentos de aposentadorias.
Na segunda são geradas receitas imediatas que reduzem receitas futuras. A nota do FMI inclui aí as privatizações, na medida em que o governo arrecada com a venda de ativos, mas passa a não contar com possíveis lucros daí originados.
Na terceira modalidade são reduzidos os gastos hoje, mas também as receitas futuras. A nota cita as concessões ao setor privado para investimentos em infraestrutura, que reduzem os investimentos públicos, mas também retiram do governo, por exemplo, as receitas obtidas com pedágio (líquidas dos custos de manutenção).
Por fim, o quarto tipo de manobras inclui as reduções de gastos que elevam gastos futuros, os chamados adiamentos de pagamentos. O artigo menciona, entre outras, uma ocasião em que o governo norte-americano adiou na última semana do ano o pagamento de benefícios de saúde do Medicare, passando estas despesas para o ano seguinte.
Ainda que o ex-secretário do Tesouro Nacional pareça ter lido a nota do FMI como cartilha, nenhum dos artifícios contábeis —muitos deles de cunho político—, que dificultam a avaliação da trajetória da dívida, gerou ameaça de impeachment aqui no Brasil ou lá fora.
O que distingue, então, o caso das pedaladas?
Primeiro, ao invés de atrasar o pagamento aos beneficiários, o governo adiou o pagamento à Caixa, que por sua vez pagou os benefícios em dia. Menos grave? Não necessariamente, pois pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) não é crime a população financiar o governo enquanto não recebe seus benefícios, mas é crime um banco do governo financiar o próprio governo.
O critério é duvidoso, já que o mesmo banco é um dos 12 dealers que podem comprar títulos da dívida pública no mercado primário.
E o que complica ainda mais: os fluxos de pagamentos do Tesouro para a Caixa e da Caixa para os beneficiários nunca coincidem no tempo. Por isso o Tesouro paga juros à Caixa pelos dias em que o saldo em sua conta de suprimento é negativo, e recebe juros pelos dias em que é positivo.
Quantos dias de atraso caracterizam um crime?
A LRF não esclarece, e o TCU julgou que, pela primeira vez, os dias de deficit foram numerosos o suficiente para serem interpretados como empréstimo.
Ainda que a tal conta de suprimento tenha terminado o ano com saldo positivo, e ao final o Tesouro tenha recebido mais juros do que pagou.
De todo modo, se o governo paga juros quando atrasa, a manobra sequer serve bem ao propósito de ilusionismo fiscal.
O caso é, portanto, revelador do rigor seletivo tão típico do Brasil de hoje: além da falta de transparência, julga-se seletivamente até o amadorismo.
Caso a pena adequada fosse mesmo o impeachment, motivos para isso não faltariam nunca. Nem aqui, nem nos Estados Unidos e, muito menos, na China.
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/laura-carvalho/2015/10/1694108-rigor-seletivo.shtml
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