DAVID BARCHARD – Ser acordado à meia noite por notícias de uma tentativa de golpe era provavelmente a última coisa que alguém poderia esperar na Turquia, numa sexta-feira. Sim, concorda-se em geral que o país está em situação política delicada, enfrentando desafios armados do Daesh (Estado Islâmico), dos militantes curdos e, segundo o governo, de um movimento dirigido por um clérigo exilado, que vive desde 1999 na costa leste dos Estados Unidos. Além disso, continua à deriva de um sistema político autoritário, de viés islâmico, e diversos parlamentares oposicionistas parecem em vias de enfrentar processos judiciais – ou prisão – por opiniões expressas em discursos.
Mas quando, por volta das onze da noite, o primeiro-ministro Binal Yildririm anunciou que uma intentona estava aparentemente em curso, a incredulidade foi geral. Os militares já dominaram a vida do país, uma força pretoriana que os políticos institucionais não puderam (ou talvez não quiseram) enfrentar. Mas quando os islâmicos chegaram ao poder, em 2002, os militares não se levantaram – apesar de sua evidente contrariedade. E entre 2008 e 2012, seu poder foi reduzido por meio de uma série de prisões e processos por conspiração. O próprio presidente Erdogan, ao final, envolveu-se na disputa.
Testemunhei o último grande golpe militar na Turquia, em 12 de setembro de 1980. Foi anunciado um pouco antes da alvorada. Sua organização e desdobramentos foram planejados com extremo cuidado. No momento da deflagração, os políticos já haviam sido presos e afastados. A lei marcial entrou em vigor imediatamente, em todo o país. Uma junta foi anunciada e empossada. Havia tanques em todas as esquinas e um toque de recolher geral.
Acima de tudo, o golpe militar de 1980 ocorreu num momento em que a política do país estava completamente bloqueada; a economia em ruínas; os cidadãos comuns pediam um governo forte e estabilidade – por isso, aceitaram a mudança, ao menos num primeiro momento, com grande alívio; inclusive porque os militares sublinharam que tudo estava ocorrendo “dentro da cadeia de comando”.
Nada disso ocorreu agora. Os organizadores agiram, estranhamente, no final da noite, ao invés do início da madrugada. Não foram capazes de bloquear a TV e as mídias sociais. Assumiram o controle de alguns pontos – as pontes que cruzam o Estreito de Bósforo – mas fracassaram quando tentaram bloquear a estação terrestre de satélites Gölbsi, na periferia de Ankara. Por isso, a população pôde saber que 42 pessoas foram mortas, na batalha pela estação. Os golpistas parecem não ter prendido políticos – muito menos o presidente e o primeiro-ministro.
Eles também não tinham a aparência de legitimidade que nasce, na Turquia, do controle da cadeia de comando. O chefe do comando geral, general Hulusi Akar, foi capturado e preso. Muitos outros generais recusaram-se a se somar ao golpe. Em uma ou duas horas, estavam emitindo apelos contra a quartelada. Parece que a força aérea, normalmente considerada o braço mais radical dos militares, não se envolveu, e os líderes do golpe eram oficiais com grau de coronel ou inferior – inclusive um conjunto de tenentes, muito jovens para terem peso no exército. Tentaram tornar pública a declaração de constituição de uma junta, denominada “Conselho de Paz”, que, no entanto, não tinha assinaturas. Falou-se em lei marcial, mas ela não chegou a ser implantada.
Tornou-se claro, ao contrário, que os golpistas enfrentavam oposição não apenas dos 50% do eleitorado turco – islâmicos conservadores – que apoia o presidente Erdogan, mas também de liberais e da classe média que se opõem fortemente a ele. Os jovens turcos cresceram com memórias – às vezes narrativas exageradas – do golpe militar de 1980, da repressão contra a esquerda que veio em seguida, dos julgamentos em massa, da tortura e das mortes sob tortura. Os militares, vale dizer, promoveram uma liberalização da economia, mas a memória de sua aspereza persiste. Ninguém atiraria flores aos tanques turcos, num golpe deflagrado hoje.
E, na Turquia de 2016, o clero islâmico também joga um papel mais aberto que no passado. Nas primeiras horas da manhã de sábado, os minaretes e as mesquitas emitiram um chamado especial à oração, chamando os fiéis a defender a pátria.
O presidente Erdogan, em férias num hotel em Marmaris, costa sudoeste, retomou rapidamente a iniciativa, apesar da falta de apoio em seu entorno. Deu entrevistas à TV, usando a câmera de seu celular – e no meio da noite havia encontrado um pequeno avião para levá-lo de volta a Istambul.
O fato de ele poder fazer tal viagem em meio a uma tentativa de golpe revela a falta de planejamento e a aparente falta de apoio dos golpistas, entre o conjunto dos militares. Boa parte do exército e toda a força policial (na Turquia, uma instituição em geral pró-islâmica) permaneceram leais ao governo. Houve banho de sangue em escala considerável – 265 pessoas morreram até agora, em conflitos em Ancara e Istambul. Houve bombardeios nas proximidades do palácio presidencial, matando cinco pessoas, e a Grande Assembleia Nacional também foi alvejada.
O primeiro-ministro Yildririm diz que mais de 2800 oficiais foram até agora detidos, entre eles cinco generais. A agência turca de notícias, dirigida pelo governo, diz que dez membros do Conselho de Estado, a instância administrativa mais alta, foram presos, e mais de 2700 juízes foram removidos. Novas prisões e julgamentos inevitavelmente virão. É mais provável que, em vez de se diluir, a tendência ao autoritarismo se aprofunde.
Mas a Turquia livrou-se de um governo militar, dirigido pelo que teria sido provavelmente um regime de jovens oficiais – ou, ainda pior, um mergulho provável em guerra civil entre apoiadores e oponentes do governo eleito –, num momento em que ainda luta de modo áspero contra o terrorismo.
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