Sociedade

‘Um garoto assassinado pela polícia é filho de todos nós’, diz cineasta

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Eliane Trindade – Estela Renner é mãe de três filhos, mas chamou para si a responsabilidade de “maternar” toda as crianças da humanidade, usando para isso o seu ofício de cineasta.

Como diretora do documentário “O Começo da Vida”, em cartaz e também disponível na Netflix e na plataforma Videocamp, a paulistana de 42 anos colocou no mundo este novo rebento artístico imbuída da missão de ressignificar a primeira infância, definidora de toda a nossa existência, de acordo com a neurociência.

Além de colocar “luz, câmera, ação” na fase da vida que vai do zero aos seis anos de idade, o filme é um convite para plateias ao redor do mundo refletirem sobre a tarefa de cada um no cuidado e no desenvolvimento de todas as crianças da nossa imensa aldeia planetária.

“Estamos cuidando bem dos primeiros anos de vida, que definem tanto o presente quanto o futuro da humanidade?”, indaga Estela, sócia da Maria Farinha Filmes.

Com o foco na produção de obras cinematográficas que levantem debates capazes de transformar realidades, a documentarista vai além: “Não podemos pensar que é suficiente fazer um bom trabalho com os nossos filhos. Temos que fazer um bom trabalho com os filhos de todos”.

Uma tarefa ainda mais desafiadora e espinhosa em um mundo de desigualdades e de violência.

Estela cita os casos dos dois garotos mortos pela polícia em São Paulo em junho: Ítalo, 10, alvejado por um policial militar após furtar um carro no Morumbi; e Waldik, 11, atingido por um guarda-civil metropolitano também durante uma perseguição.

“Você está vendo essas crianças? Temos que nos responsabilizar também pelo filho do outro”, defende a cineasta. “Não é produtivo sentir culpa.”

Nos casos recentes de homicídio envolvendo crianças (pessoas de até 12 anos, segundo a lei), esse outro se materializou nas figuras das duas mães enlutadas, uma ex-presidiária (mãe de Ítalo) e uma ajudante de cozinha (mãe de Waldik).

“É muito fácil ser empático com a dor da criança, mas é difícil ter empatia com a dor da mãe. Tem muito julgamento”, reconhece Estela. “Os pais dessas crianças são tratados como selvagens, quando muitas vezes não damos a eles condição nenhuma para serem cuidadores.”

Como numa espiral sem fim, outras mães paulistanas choram diante de juízespedindo que seus filhos adolescentes permaneçam na Fundação Casa, onde cumprem medida socioeducativa após terem cometido infrações.

É um apelo desesperado para evitar que morram ou matem ao voltar às ruas. Esse grito de impotência e de socorro dá a dimensão de um drama que não está circunscrito ao ambiente doméstico.

“O Começo da Vida” destaca a importância de a sociedade e o governo criarem as condições para que a parentalidade seja exercida.

“Quando o filme diz que é preciso uma vila para cuidar de uma criança, precisamos de uma vila também para cuidar do adulto que vai cuidar daquela criança”, entende a diretora.

LIÇÃO DE DESAMOR

Uma das cenas que mais marcaram Estela durante as filmagens do documentário foi a de uma mãe que cria 12 filhos numa favela declarar que só consegue dizer “Eu te amo” para algum deles quando está drogada.

“Eu desaprendi a amar”, conclui Simone, em relação à numerosa prole. Um desamor vivenciado desde pequena ao presenciar o pai bater na mãe, o que a teria levado a buscar refúgio nas drogas a partir dos 11 anos.

Ao se tornar mãe, ela dá início a um novo ciclo de carências, agora na pele do adulto que não consegue cumprir o seu papel de cuidador.

Um dos 50 especialistas ouvidos no filme, Jack Shonkoff, diretor do Centro para a Criança em Desenvolvimento, da Universidade Harvard, defende a necessidade de se criar oportunidades para que pais e mães tenham qualidade de vida com os filhos.

Segundo ele, o problema é que muitas vezes os políticos querem ajudar as crianças, mas não querem apoiar os adultos nessa empreitada vital para o futuro da humanidade.

Uma das mensagens mais poderosas do documentário está na boca de um ganhador do Prêmio Nobel de Economia. “Cuidar dos bebês é o melhor investimento que pode ser feito na humanidade”, diz o economista James Heckman.

Ele cita estudo que realizou nos EUA segundo o qual cada dólar investido nos primeiros anos de vida resulta num retorno de sete a dez dólares para o Estado, levando-se em conta recursos gastos em centros de detenção e recuperação. “É um retorno maior que qualquer investimento em bolsa”, prossegue o Nobel.

CAPITAL AFETIVO

E o principal capital a ser investido aqui é o afetivo, salienta a cineasta. “Ele está falando de amor. Eu pedi para ele usar essa palavra, pois queria traduzir para uma mãe que, ao interagir, brincar e estimular o seu bebê, ela está exercendo a maior revolução da neurociência e nem sabe.”

Estela e sua trupe viajaram por nove países (Argentina, Brasil, Canadá, China, Estados Unidos, França, Índia, Itália e Quênia) para mostrar a universalidade dos sentimentos independente de diferenças culturais e socioeconômicas.

O projeto, que já nasceu internacional, contou com o apoio das fundações Maria Cecília Souto Vidigal, Alana e Bernard van Leer e do Unicef. Após exibição do documentário em uma sessão especial da ONU, em junho, o filme atingiu um público de 100 milhões de pessoas.

A poderosa mensagem de que a humanidade pode vivenciar um recomeço se começar a investir de verdade em cada uma de suas crianças vai se desdobrar em uma série em seis episódios, a ser exibida pelo canal pago GNT.

As mais de 80 horas de filmagens ganham desdobramentos em temas como políticas públicas, torna-se pai e mãe, o bebê e suas capacidades, infância negada e educação.

“Se tem uma coisa que também precisa mudar é o sistema educacional. A criança nasce com tantas virtudes e potência, e a gente enjaula ela. Você viaja pelo interior e quando vê um local cercado de grades é uma escola, que virou irmã gêmea de prisão”, lamenta Estela.

Ao longo dos três anos de filmagens, a diretora e sua trupe foram derrubando muros e abrindo portas para se conectar com famílias de todos os tipos e cores, em favelas e mansões.

Uma conexão que, segundo Estela, deu-se ao brincarem no chão com os protagonistas mirins de “O Começo da Vida”. “O chão tem muita presença no documentário. A gente está sempre deitado com a câmera, em todos os países pelos quais passamos. É muito pó, muito grão de areia.”

E foi “debaixo do barro do chão”, como canta Gilberto Gil, percorrendo quatro continentes, que a diretora construiu um mosaico para mostrar a força formadora e transformadora do amor materno e paterno.

Sentimentos, compromissos e conexões que podem ser exercidos por pais e mães, mas também por qualquer outra figura que chame para si o papel de cuidador de uma criança: uma babá, uma avó, um funcionário de creche ou abrigo, uma vizinha.

“Nessas andanças, conheci todos os sentimentos”, conclui a cineasta. “O que sobrou do filme é uma conexão profunda com todo o mundo. Somos todos um.”

http://www1.folha.uol.com.br/colunas/redesocial/2016/07/1788407-um-garoto-assassinado-pela-policia-e-filho-de-todos-nos-diz-cineasta.shtml

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