ANDRÉ DE OLIVEIRA – Famílias reagem ao que chamam de difamação póstuma dos garotos mortos em São Paulo
Na casa de tijolos de concreto cinza expostos, no bairro de Cidade Tiradentes, extremo-leste de São Paulo, a angústia e a revolta já secaram as lágrimas do luto. Ao redor da mesa de jantar de metal da cozinha, os pais, irmãs, primos, tias e amigos de Waldik Gabriel Silva Chagas prometem: ele não será esquecido, sua breve história não será manchada. A irmã mais velha, Aline Silva, 27 anos, mostra o celular com a mão trêmula: “Olha a cachorrada que estão fazendo com ele na Internet, tão dizendo que ele fez por merecer, que era um bandido. Ele era só uma criança!”. A imagem na tela dosmartphone, publicada em uma página de Facebook, mostra o menino com cigarro na boca, colar de brilhante no pescoço e relógio dourado no pulso. “Tão falando que ele gostava de ostentar, mas eles confundem ostentação de adulto com brincadeira de criança. Essa foto que está circulando era uma brincadeira dele. É só uma criança imitando o que os mais velhos fazem”, diz outra irmã, Patrícia Silva, 21.
Waldik, o Biel, como era chamado por familiares e amigos, morreu neste sábado depois de ser baleado na nuca por um policial da Guarda Civil Metropolitana (GCM) de São Paulo. O menino, de 11 anos, estava no banco traseiro de um carro, modelo Chevette, roubado. Segundo a família, com ele iam mais dois menores de idade, entre 12 e 15 anos. Era por volta das 22h30 da noite quando Biel foi atingido depois de uma perseguição pelas ruas do bairro. Em seu depoimento, o policial Caio Muratori, 42 anos, autor dos disparos, disse ter atirado em revide a tiros feitos de dentro do carro. Uma perícia preliminar, contudo, não achou indícios de que isso realmente tenha ocorrido: não foi encontrada pólvora ou arma no interior do veículo e os vidros, com exceção do condutor, estavam todos fechados. Além disso, segundo documento obtido pela Folha de S. Paulo, os dois colegas de Muratori, que estavam dentro da viatura, dizem não saber precisar se houve troca de tiros.
“Você viu, mãe, o que o Marcelo Rezende está falando na televisão? Que alguém tinha que dar anticoncepcional para a senhora!”, exclama indignada Jaqueline Silva, 22 anos, também irmã de Biel. “Você tá vendo como é? É muito fácil ficar falando esse tipo de coisa sem tentar entender a vida dos outros. Eu queria que o Marcelo Rezende viesse aqui para ver como é ser pobre em Cidade Tiradentes. Ele lá sabe como foi que eu tive cada um dos meus filhos?”, diz Orlanda Silva, 47 anos, mãe do menino e de mais oito filhos. Diariamente, Orlanda, que é auxiliar de cozinha, sai de casa antes das 5h da manhã e volta depois das 22h. Só para chegar ao bairro de Anália Franco – também na Zona Leste –, onde trabalha, leva cerca de duas horas no transporte público. “Meu filho era carinhoso, às vezes rebelde, mas rebeldia de criança. Eu passava o tempo que podia ao lado dele”, diz Orlanda. No dia em que morreu, Biel empinou pipa de manhã, assistiu televisão à tarde, tomou sorvete em um mercadinho e escapuliu da cama, por volta das 22h. Seria a última vez que sairia da cama sem ter permissão.
Cidade Tiradentes, onde a família toda vive, fica a 35 quilômetros da Praça da Sé, no centro de São Paulo. O cenário, formado por conjuntos habitacionais, casas de alvenaria, barracos, pequenos comércios e muros intermináveis de fábricas é cinza a perder de vista. E como foi a infância do Biel nesse lugar? “Como foi não. Como estava sendo. Ele ainda era criança”, corrige rápido uma de suas amigas que ouve a conversa ao redor da mesa. “Não tem muito o que dizer. Ele era como todos os outros: a gente andava de bicicleta, empinava pipa, jogava bola”, diz. “Ele era carinhoso, sempre foi, e gostava muito de assistir a filmes, uma das últimas fotos dele, inclusive, é no cinema do shopping Itaquera”, diz a irmã Jaqueline, já abrindo o celular para mostrar o retrato. A imagem é muito diferente da que estava sendo divulgada no Facebook e causou tanta indignação na família.
Biel em uma de suas últimas fotografias
“Nós não vamos ficar quietos, não vamos esquecer o Biel”, diz Orlanda Silva, 47 anos, mãe do menino, enquanto vê um pequeno cartaz de protesto que tinha acabado de ser impresso por sua irmã Rosilda Chagas, tia do garoto. “Eu acho que ele não roubou esse carro, acho que ele já estava roubado e o Biel só entrou lá, mas isso muda alguma coisa? Se ele tivesse participado do roubo, o policial também não poderia chegar atirando assim”, fala com o semblante cansado. Segundo o relato dos policiais, a perseguição teria começado logo depois de eles serem informados por um motoboy que o carro fora roubado. A prefeitura classificou a abordagem como equivocada desde o começo, já que a GCM não poderia sequer se envolver em perseguições, pois isso é atribuição da Polícia Militar. Os três agentes foram afastados, Muratori foi indiciado por homicídio culposo (quando não há intenção de matar) e, depois de pagar fiança, aguarda o processo em liberdade. Os acontecimentos são alvo de investigações tanto da Polícia Civil quanto da Corregedoria da GCM.
Biel não é exceção
O caso de Biel acontece menos de um mês depois da morte de Ítalo Ferreira de Jesus Siqueira, de 10 anos, em situação semelhante na Zona Sul da cidade. Ítalo foi morto com um tiro na cabeça por policiais militares durante uma perseguição. Segundo a polícia, depois de roubar um carro junto com outro menino de 11 anos, ele teria fugido e revidado com tiros. O caso é nebuloso, está sendo investigado pela Polícia Civil e é alvo de inquérito administrativo da Corregedoria da Polícia Militar. “A história dos dois mostra a falência completa do Estado. Falhamos com esses meninos. Apesar de ainda não estar esclarecido no caso do Waldik, o próprio roubo do carro soa absurdo. O que esses meninos esperavam fazer com o carro? Vender? Duas crianças? Eles não tinham noção do que estavam fazendo, tratar eles como bandidos e não como crianças que precisam de uma atenção especial é prova de que falhamos”, diz Welinton Pereira, da ONG Visão Mundial, que está oferecendo assistência psicológica para Cintia Francelino, 29 anos, mãe de Ítalo.
“A história dos dois mostra a falência completa do Estado. Falhamos com esses meninos. Apesar de ainda não estar esclarecido no caso do Waldik, o próprio roubo do carro soa absurdo. O que esses meninos esperavam fazer com o carro? Vender? Duas crianças?”
Na semana que vem, quando se completará um mês da morte de Ítalo, está marcado um ato em sua memória. A ideia, segundo Pereira, é que a história do menino não desapareça, que ele não vire apenas mais uma estatística. Assim como Biel, Ítalo também foi alvo de uma enxurrada de acusações: o menino não passaria de um bandido e a polícia militar teria agido corretamente. Até um ato organizado por moradores do Morumbi em defesa dos policiais militares envolvidos na morte de Ítalo foi organizado. Como relatado pelo sitePonte, mais de 20 pessoas participaram batendo continência, palmas e gritando “heróis” para policiais militares. Para o técnico de planejamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Daniel Cerqueira, os dois casos não são isolados e as estatísticas mostram que a violência, não necessariamente policial, contra o jovem – e especificamente contra o jovem mais novo – tem aumentado cada vez mais.
“Esse tipo de demonstração em favor da polícia tem sido impulsionada e manipulada por parte da sociedade e, principalmente por parte da mídia, que prega o revanchismo como solução”, diz Cerqueira. Biel não tinha passagens pela polícia, mas segundo os familiares, já apresentava alguns problemas na escola. Ítalo tinha três ocorrências menores registradas no Conselho Tutelar. Todas em 2016. “É claro que uma criança com três passagens em menos de 6 meses está enfrentando problemas. Ele deveria ter recebido atenção ali, precisava de um acompanhamento. Isso só mostra, mais uma vez, como o caso dele é exemplar, como tudo deu errado em relação a ele”, comenta Pereira, da ONG Visão Mundial.
Segundo dados da Ouvidoria das Polícias do Estado de São Paulo, revelados pelo jornal O Estado de São Paulo, mostram que desde 2010 até esta segunda-feira, 27, as policiais militares e civis mataram 191 crianças e adolescente até 16 anos. Um estudo de 2015 do IPEA mostra que o perfil do menor infrator no país tem tudo a ver com oportunidades e acesso à educação: 66% vivem em famílias extremamente pobres e 60% são negros. “Mataram um amigo meu, doeu. Mataram um amigo meu, me entristeceu. Então, Biel, Bielzinho, esteja com Deus. Minha vida perdeu o sentido, mataram um amigo meu”, cantaram no ritmo de funk os amigos de Biel que se espremiam ao redor da mesa na casa do menino. Um deles diz que Biel é o terceiro colega deles morto pela polícia. Agora, todos têm medo de que algo parecido aconteça também com eles. Em Cidade Tiradentes, não esquecer de Biel é uma forma de eles próprios se manterem vivos.
http://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/29/politica/1467237278_164214.html?id_externo_rsoc=FB_CC
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