WLADIMIR POMAR – Como nunca, em toda a sua história, o capitalismo, tanto no mundo quanto no Brasil, realiza uma constante, perene, perseverante, múltipla, sofisticada, competente (e quantos mais adjetivos possam ser utilizados para apreciar tal competência) luta ideológica para demonstrar sua superioridade e sua eternidade.
Seu problema, porém, não consiste em qualquer defeito na difusão de sua matriz ideológica central de defesa. Isso é, de manutenção, concentração e centralização da propriedade privada. Consiste em que, como explicou Marx, ao concentrar e centralizar essa relação econômica e social chamada capital, de forma cada vez mais avassaladora, o próprio capitalismo transforma em instrumentos progressivamente inoperantes todo seu arsenal de promessas “inclusivas”.
Suas promessas de “mercado perfeito”, “superioridade do mercado”, “capitais sociais”, “capitais culturais”, e outros supostos mecanismos de superação de “privilégios injustos” chocam-se com a voracidade de apropriação dos lucros e com as crises que tal voracidade cria. Situação cada vez mais evidente nos países capitalistas desenvolvidos. Nesse sentido, vale a pena relembrar o que disse Bernie Sanders, em artigo recente publicado em El Pais (01/07/2016).
Como pré-candidato do Partido Democrata dos Estados Unidos, ele teve a audácia de se apresentar como “socialista” naquele país e, tão importante quanto isso, de nos apresentar um quadro claro daquele capitalismo desenvolvido. Segundo ele, essa “economia, cada vez mais globalizada, estabelecida e mantida pela elite econômica do mundo, está falindo as pessoas em toda parte. Por incrível que pareça, as 62 pessoas mais ricas do planeta têm tanta riqueza quanto a metade mais pobre da população mundial, cerca de 3 bilhões de pessoas”.
Sanders visitou 46 estados norte-americanos e escutou, inúmeras vezes, “as dolorosas realidades… despercebidas pela elite política e pela mídia”. Segundo ele, nos “últimos 15 anos, foram fechadas 600 mil fábricas e desapareceram mais de 4,8 milhões de trabalhos manufatureiros bem pagos”. “Apesar do grande aumento da produtividade, a média dos homens trabalhadores nos Estados Unidos recebe hoje 726 dólares menos do que em 1973, enquanto a média das mulheres trabalhadoras ganha 1.154 dólares menos do que em 2007, após ajustar a inflação do período”.
Sanders assegura que “47 milhões de estadunidenses vivem na pobreza… 28 milhões não possuem seguro médico… milhões… estão lutando com níveis escandalosos de dívidas estudantis”. E acrescenta que talvez “pela primeira vez na história moderna, nossa geração mais jovem provavelmente terá um padrão de vida menor do que a de seus pais”. Mais alarmante, ainda segundo Sanders, é que “milhões de estadunidenses com uma educação deficiente terão uma esperança de vida menor que a geração prévia, pois sucumbem ante a desesperação, as drogas e o álcool”.
Enquanto isso, “o um por cento mais rico tem tanta riqueza quanto os 90% dos mais pobres; 58% de todo rendimento novo está sendo apropriado por esse 1%”. A “economia global não está funcionando para a maioria das pessoas em nosso país, nem no mundo. Este é um modelo econômico que desenvolveu a elite econômica para beneficiar a elite econômica”.
Evidentemente, Sanders não entende que aquilo que supõe serem aberrações da “elite” está relacionado a leis internas do próprio modo de produção, circulação e distribuição do capital. Ele, como muitos outros, supõe que a situação que descreve se deve às maquinações daquela elite de 1%. Na verdade, tal 1% também é resultado do processo de desenvolvimento dos meios de produção (tecnologias e ciências) do capital, que impõe a seus proprietários privados uma competição brutal e desumana, tanto no terreno econômico quanto no terreno social, aqui incluído o aspecto cultural. Sobram os capitalistas mais competitivos, ao mesmo tempo em que ocorre uma crescente substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto das máquinas, o chamado desemprego estrutural.
Provavelmente por não compreender essa dinâmica do capital, Sanders acredite ser possível “rechaçar” as políticas de “livre mercado” e mover-se “no sentido de um mercado justo”. Advoga “afundar o Acordo Transpacífico”, “ajudar aos países pobres a desenvolver modelos econômicos sustentáveis”, “acabar com o escândalo internacional no qual as grandes corporações e os mais ricos não pagam bilhões de dólares em impostos aos governos nacionais” e “criar dezenas de milhões de trabalhos em nível mundial”.
E vai mais longe, conclamando o combate às “mudanças climáticas” através da transformação do “sistema energético mundial”, com a eliminação do “uso de combustíveis fósseis”, a redução do “gasto militar no mundo” e a abordagem das “causas das guerras…”. Sanders também defende que os Estados Unidos criem “economias nacionais e globais que funcionem para todos, não só para um punhado de bilionários”.
Ou seja, suas propostas são progressistas, humanistas e inclusivas. Porém, a maior parte delas é impraticável enquanto for mantido o sistema econômico, social e político estrutural do capital. Por exemplo, nenhum capital, a não ser que queira falir, pode abandonar sua dinâmica de “lucro máximo”, “sonegação de impostos”, “elevação da produtividade, com corte de empregos”, “energias sujas, mas baratas”, “guerras para manter a indústria bélica em funcionamento”, “especulação financeira global para elevar a taxa de lucro” etc. etc.
Os imperativos materiais do capital se impõem, fazendo com que sua ideologia justifique aberrações sociais e políticas como a pobreza por falta de méritos individuais, as discriminações raciais e de gênero, o formalismo democrático da ditadura liberal, o nacionalismo de grande potência, o colonialismo (mesmo disfarçado), o imperialismo, o “big stick”, o fascismo, o nazismo, as guerras quentes e as guerras frias, “o direito mundial de polícia” etc. etc. etc.
Nessas condições, os atuais países pobres, de pequeno ou nenhum desenvolvimento capitalista, só conseguirão desenvolver “modelos econômicos sustentáveis” se subordinarem as exportações de capitais dos países desenvolvidos a suas próprias necessidades industrializantes e a suas próprias leis de defesa e soberania nacional. Eles terão que combinar a ação estatal e a ação do mercado, de modo que o Estado guie o mercado, e não o inverso.
E os povos dos países capitalistas desenvolvidos só conseguirão modificar o quadro tenebroso pintado por Sanders se transformarem a propriedade privada capitalista em propriedade social e, com isso, puderem subverter toda a sua superestrutura social, política, cultural e ideológica.
Nada disso, porém, parece estar no horizonte de Sanders, nem de A Tolice da Inteligência Brasileira. Em Sanders, talvez por um sentimento de ordem tática, relacionado com a pequena força social e política do socialismo nos Estados Unidos. Em Jessé, quase certamente por considerar que a “dimensão mais essencial da vida social” seja a “dimensão institucional”, os “imperativos institucionais que internalizamos, de maneira a torná-los ‘naturais’”, a exemplo “da disciplina escolar, da autoridade familiar, dos limites da ação individual pela Lei e pela polícia, das regras de trânsito etc.”.
Jessé chega a escorregar no reconhecimento materialista de que “quem exige de nós que sejamos disciplinadores de nossos filhos em nível inaudito na história… é… o mercado capitalista competitivo, que impõe alto grau de disciplina e autocontrole para todo trabalho bem-sucedido”. Mas retorna logo à ideologia idealista de que é, “deste modo, pré-reflexivo… não percebido… que as instituições nos moldam e comandam nossas escolhas aparentemente mais íntimas”.
Sequer considera que o “alto grau de disciplina do trabalho” é imposto aos homens pelas máquinas, pelo capital constante que, ao superar o capital variável, mata a capacidade de consumo que a abundância produzida necessita para reproduzir-se e reproduzir o próprio capital.
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