WLADIMIR POMAR – Voltando ao aparato fabuloso chamado Estado, que Jessé procura defender dos “patrimonialistas” e “culturalistas”, é bom lembrar que ele tem sido usado, na formação econômica e social capitalista, para diferentes funções “salvadoras” do próprio capitalismo. Primeiro, contra a luta de classes que ameaça substituí-la por outra. Depois, apesar do nariz torcido de pensadores burgueses pouco inteligentes, para salvar o capitalismo do próprio capitalismo, principalmente quando este afunda em suas crises periódicas, econômicas e financeiras, causando estragos consideráveis nas forças produtivas.
Nessas condições, por que não responsabilizar seu próprio Estado, de vez em quando, pela corrupção endêmica e/ou epidêmica do próprio capital? Bem vistas as coisas, as campanhas anticorrupção apenas afetam uma parte pequena da estrutura do Estado. No final das contas, quem paga o pato são funcionários descartáveis, o povão que se vê privado de direitos políticos, sociais e econômicos e, em alguma medida, setores do empresariado e da representação política da burguesia, considerados “amadores e incompetentes”.
Ou seja, para se legitimarem diante da opinião pública as operações contra a corrupção também precisam atacar e punir setores do próprio Estado, do empresariado e dos setores políticos da classe dominante. No Brasil, como está sendo mostrado na Operação Lava Jato, e nas congêneres que estão emergindo, embora o objetivo político tenha sido, desde o início, liquidar os direitos conquistados na Constituição de 1988 e desqualificar e destruir o PT, Lula e parte considerável da esquerda, tal “legitimação” tem sido tratada com especial atenção. É lógico que, como todo teatro de horrores, corre o perigo de virar chanchada e ser colocado em dúvida.
Bastaria que um grupo de jornalistas combativos, driblando os editores de meios do Partido da Mídia, se desse ao trabalho de tratar como matéria jornalística as formas como os executivos das empresas privadas ou estatais, assim como os políticos dos “partidos da ordem”, envolvidos em corrupção de “bilhões”, são “penalizados” ao transformarem-se em delatores. Eles recebem penas variáveis, proporcionais ao grau de suas delações, vendo-se “obrigados” a devolver alguns “milhões” e cumprir suas penas em seus resorts ou mansões próprias, numa aposentadoria nababesca. Até agora, apenas “Carta Capital”, que está fora do Partido da Mídia, tratou do assunto com alguma extensão e seriedade.
Por outro lado, o caso brasileiro atual é também um exemplo significativo de que as campanhas anticorrupção são, em geral, utilizadas para resolver disputas concorrenciais ou competitivas intercapitalistas, e para destruir conquistas democráticas estipuladas em lei, enquanto novos corruptores e novos corruptos entram em cena e mantêm o sistema em funcionamento. Basta rever, principalmente, a “luta contra a corrupção”, um dos pretextos para o golpe de 1964, e os casos escrachados de corrupção ditatorial, que vieram à luz durante e após o regime militar.
Atualmente, está em curso um processo de desestruturação, tanto de alguns oligopólios capitalistas de propriedade nacional quanto das empresas estatais (The Globe decretou, em editorial, que empresas estatais são as “principais fontes da corrupção” e devem ser eliminadas do cenário brasileiro). A tendência evidente é de que a propriedade das grandes empresas nacionais delatadas (melhor seria dizer “deletadas”) seja transferida para corporações transnacionais, e que as estatais nacionais também sejam privatizadas e desnacionalizadas.
Algo idêntico está acontecendo com ações policiais e judiciais que confrontam leis existentes. “Conduções coercitivas”, “prisões preventivas mais do que prolongadas”, “desobrigação de presumir a inocência” e outros atropelos e destruição de dispositivos legais, que possuem normas claras, estão sendo praticados justamente por aqueles que mais deveriam zelar pelas leis estipulas, incluindo tribunais superiores.
Ou seja, ao contrário do que pensa Jessé Souza, o “tema da corrupção” não é utilizado apenas “para enganar e manipular”. Embora tal tema tenha sempre sido usado como o “mote que galvaniza a solidariedade emocional das classes médias”, utilizadas “como massa de manobra para derrubar governos” que tenham projetos contrários aos setores hegemônicos das classes dominantes, ele também é usado para limpar os cenários econômicos, sociais e políticos de desafetos, concorrentes ou competidores.
Além disso, esses temas e sua história no Brasil precisam ser tomados como uma escola para a esquerda que pretende resolver a contradição, como diz Jessé, entre o “projeto de construção de uma sociedade para 20%” e o “projeto inconcluso e incipiente de um Brasil para a maioria da população”. Mesmo que achemos como sequer tentado o segundo projeto, a experiência vivida até agora mostra alguns pontos importantes para um processo de disputa futura.
Primeiro, não é possível disputar o Estado burguês sem, ao mesmo tempo, disputar o poder econômico. Ou seja, se um governo democrático e popular não tiver em mãos um aparato de empresas estatais que disputem o mercado e, portanto, o poder econômico com as empresas privadas nacionais e estrangeiras, ele sempre estará fadado a subordinar-se ao poder econômico da burguesia para definir as estratégias reais de desenvolvimento econômico e social.
Segundo, não é possível disputar o Estado burguês sem, ao menos, disputar a hegemonia ideológica sobre a sociedade. Isto é, o governo e os partidos democráticos, populares, socialistas e comunistas que o apoiam precisam conquistar o poder social e cultural. Precisam possuir um sistema de comunicação e de relação direta com as grandes massas populares do povo, disputando o coração e a mente da opinião pública, principalmente dos trabalhadores, camadas populares e classes médias, no sentido de organizá-las e fazê-las participar dos assuntos e das elaborações governamentais.
Terceiro, não é possível disputar o Estado burguês sem travar uma luta permanente contra a corrupção, tanto a realizada pelas classes dominantes e pelas outras esferas do Estado, quanto a realizada por esferas da sociedade civil, incluindo os partidos políticos e organizações sociais que sustentam os governos democráticos e populares. Se não existirem mecanismos para isso, inclusive internos, será preciso criá-los de modo que fiquem sob supervisão e controle público. A corrupção, como a história atual está demonstrando, é desmoralizante e tem o poder de destruir qualquer força política se não for combatida com vigor, interna e externamente.
Quarto, não é possível disputar o Estado burguês sem um esforço permanente pelas reformas de democratização das diversas esferas da sociedade, sejam econômicas, sociais e políticas. O que inclui reformas que democratizem a propriedade dos meios de produção, reduzam as desigualdades na distribuição da renda e da riqueza, e da formação educacional e cultural, restrinjam os preconceitos e os atentados aos direitos humanos, ampliem os direitos ao trabalho, penalizem os setores e agentes do Estado que atropelam as leis etc. etc. etc. A lista é longa e merece uma discussão mais apropriada e ampla para definir as prioridades de inclusão econômica, social, cultural e política democrática.
Sem uma definição clara, pelo menos, dessas quatro linhas básicas para a disputa do Estado burguês, qualquer tentativa de “inclusão“ das camadas populares e médias não passará de ilusão pueril.
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