Silvia Hunold Lara – Nos últimos meses, um grupo de historiadores decidiu se manifestar publicamente em defesa da democracia.
Fazendo uso de meios de comunicação alternativos, criou nas redes sociais o grupo Historiadores pela Democracia, produziu vídeos e textos, além de um manifesto em defesa do governo legítimo que está sendo deposto por meio de um golpe.
Há ali gente de tendências diversas, tanto do ponto de vista político como profissional.
O que os une é a certeza de que o Legislativo e o Judiciário, com apoio dos grandes meios de comunicação, associaram-se para afastar do poder a presidente democraticamente eleita que, apesar da crise e de vários erros (incluindo relações ambíguas com a corrupção), vinha se mantendo na defesa de direitos básicos estabelecidos na Constituição.
Em 7 de junho, uma parte desse grupo foi ao Alvorada, prestar sua solidariedade a Dilma Rousseff, afastada da presidência sob a alegação de ter cometido “crimes de responsabilidade” que, aliás, também foram praticados por seus antecessores e por vários governadores e prefeitos.
O Legislativo fez uso de mecanismos constitucionais e o Judiciário estabeleceu o ritual do processo.
A aparente legalidade não esconde, entretanto o golpe articulado por forças retrógradas que se instalaram no poder e esforçam-se por dar uma guinada ultra liberal na economia, diminuir conquistas dos trabalhadores, limitar políticas sociais e restringir direitos humanos.
Os historiadores não foram os primeiros nem os únicos profissionais a se manifestar, nem a denunciar o golpe em curso.
Mas chamaram a atenção de dois dos principais jornais do sudeste brasileiro: um publicou um editorial agressivo contestando a qualidade profissional dos participantes do grupo (“O lugar de Dilma na história”, O Estado de São Paulo, 14/06/16), e o outro um artigo, assinado por um de seus articulistas habituais, criminalizando o movimento (Demétrio Magnoli, “Formação de Quadrilha”, Folha de São Paulo, 25/06/16).
Ambos têm uma ideia bem tacanha do que seja o ofício do historiador.
O primeiro afirma que o papel da história é “o de reconstituir o passado para entender o que somos no presente”.
O segundo diz que “o historiador indaga o passado, formulando hipóteses que orientam a investigação e reconstrução da trama dos eventos”.
Pois aí está o problema: o papel do historiador nunca foi o de “reconstituir” o passado.
Analisando os documentos produzidos pelos diversos sujeitos que participam de um acontecimento ou fazem parte da sociedade, nós interpretamos o passado, procurando explicá-lo.
Essa explicação nunca é unívoca, posto que deve compreender as diversas forças que produziram os “fatos”.
Nem tampouco é singular: a história – como aprendem os alunos desde o primeiro ano do curso – não se escreve com verbos regulares e, geralmente, usa o plural.
Isso acontece com o passado histórico que, pela sua própria natureza, como o presente, é prenhe de tensões e vozes dissonantes.
O mesmo se dá com o trabalho dos historiadores, que só se realiza no diálogo com interpretações e explicações diversas.
Ao supor a unicidade da história e dos profissionais que denunciam o golpe, os dois jornalistas produzem um efeito de verdade muito útil para a defesa de suas posições.
O Estado de São Paulo acusa os Historiadores pela Democracia de serem “intelectuais a serviço de partidos que se dizem revolucionários”, registrando que todos aqueles profissionais estão a serviço do “lulopetismo”.
O articulista da Folha de São Paulo os coloca como militantes de um Partido totalitário.
O primeiro recorre a um neologismo depreciativo.
Ele faz par com outros, mais recentes, como “esquerdopata”, “petralha”, “feminazi”.
São substantivos coletivos que servem claramente para desqualificar todos os que não pensam como o emissor do discurso.
O uso varia conforme a ênfase que se queira dar: contra uma opção político-partidária, contra os que defendem princípios democráticos e/ou libertários ou os direitos das mulheres e de outras minorias.
Como se em cada um desses registros só coubesse uma forma única de ser e de pensar.
O tratamento coletivo e pejorativo serve, assim, a uma visão incapaz de abarcar a pluralidade.
O mesmo acontece quando se tenta explicar que a atitude desses historiadores estaria sendo conduzida por um Partido, com “P” maiúsculo.
Tal fantasmagoria só revela a completa ignorância do colunista em relação à diversidade de posições desses profissionais da área de História – alguns dos mais competentes e destacados, no Brasil e no exterior.
Além de associar dessemelhantes, o colunista da Folha acusa os Historiadores pela Democracia de possuírem “alinhamento ideológico” próximo ao “alinhamento corporativo” dos juízes do Paraná que tiveram seus salários divulgados em uma reportagem.
Como se trata de um atentado contra a liberdade de imprensa, ele analisa contradições entre a pretendida defesa dos valores democráticos por associações de magistrados e o assédio judicial cometido contra os jornalistas.
Aqui, o golpe e o “sequestro do sistema de justiça” podem ser denunciados.
Estranhamente, o articulista não associa os historiadores aos jornalistas, mas sim aos juízes, invertendo completamente a lógica mais elementar.
São os juízes que estão recorrendo a estratagemas e brechas do sistema legal para cassar, na prática (como diz o próprio Magnoli) os direitos dos jornalistas.
Se isso pode ser admitido nesse caso, por que não concordar com aqueles que denunciam que, “na prática”, o que se assiste é à produção lenta e gradual de um golpe contra a democracia?
Ao xingar, acusar e desqualificar, juntando desiguais sob o signo de comportamentos deploráveis, o colunista se aproxima – ele sim – mais dos juízes do que de seus colegas jornalistas.
O que, na manifestação dos Historiadores pela Democracia teria incomodado tanto os autores desses dois textos e seus patrões?
A pista está nos títulos.
O lugar que todos nós ocupamos na história não está nas mãos dos historiadores, nem terão esses profissionais uma só verdade sobre ela, como já expliquei.
Como são partidários de uma história unívoca e “verdadeira”, temem que a narrativa histórica não lhes faça “justiça”.
Historiadores do presente e do futuro certamente lerão os documentos produzidos ao longo desse processo e poderão mostrar, com base neles, as forças atuantes, seus protagonistas, os vencedores e vencidos, e aqueles que ficaram em cima do muro.
Todos nós temos um lugar – e aqueles que lutaram pela pluralidade e pela diversidade poderão estar juntos, mesmo sendo diferentes.
O nome disso é democracia.
Os que usam malabarismos retóricos para criminalizar os que não pensam como eles estão fora deste campo.
Ao imaginar uma quadrilha, usar neologismos pejorativos e maiúsculas generalistas, imputam ao outro unicidades que buscam apenas intimidar.
Certamente exageros e figuras de linguagem fazem parte da disputa de ideias e argumentos.
Mas nesses textos há mais que isso.
A história tem exemplos dolorosos desse tipo de comportamento – basta lembrar textos e atitudes de alguns jornalistas, militantes e intelectuais da Alemanha ou da Itália nos anos 1930.
O nome disso é fascismo.
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