Marcello Scarrone – “A proximidade entre o português arcaico e as línguas do grupo banto resultou no português que falamos hoje”
Em Angola, ela é Yeda “Mun-tu” Castro. Na Nigéria, é Yeda Pessoa “Olobumim” Castro. Vem de longe a relação da etnolinguista e professora da Universidade do Estado da Bahia com a cultura africana. Ainda criança, em Feira de Santana, Yeda viu-se com o desejo de decifrar a incompreensível língua falada pelos negros. Desejo que a levou a desbravar um caminho em tudo pioneiro: mestrado na Nigéria, doutorado no Zaire e a descoberta de uma herança linguística fundamental para o português falado no Brasil.
Se nos orgulhamos de falar “cantano”, devemos agradecer ao gosto das línguas banto pelas vogais. Vem da mesma fonte africana o costume de abolir os plurais, como em “as criança” e “os menino”. A conversa de Yeda Pessoa de Castro com a RHBN foi cheia de exemplos saborosos assim. Além de suas muitas descobertas acadêmicas a respeito da participação da cultura africana na constituição da nossa língua, ela fala de preconceito e intolerância religiosa, defende criticamente as cotas raciais e relembra mais de meio século de intensa atuação na área – que a levaram a saias justas como a de ser acusada pelo movimento negro de ser uma “branca ocupando lugar de negro”, mesmo quando defendia precocemente a adoção de disciplina obrigatória sobre a cultura afro-brasileira nas escolas.
Omitida durante muito tempo na história oficial brasileira, a afrodescendência venceu a batalha da língua.
Revista de História – Todo brasileiro é culturalmente negro, como disse Gilberto Freyre?
Yeda Pessoa de Castro – Não podemos generalizar. A cultura brasileira é em parte negra, mas depende do grau de presença africana pelas várias regiões. Mas a língua portuguesa que falamos, sim: esta é culturalmente negra. Ela é resultado de três grandes famílias linguísticas: a família indo-europeia, com a participação dos falantes portugueses, a família tupi, com a participação dos falantes indígenas, e a família níger-congo, com a participação dos falantes da região subsaariana da África.
RH – Por que a participação da família africana é tão importante?
YPC – Durante três séculos, a maior parte dos habitantes do Brasil falava línguas africanas, sobretudo línguas angolanas, e as falas dessas regiões prevaleceram sobre o português. Antes se ignorava essa participação, se dizia que o português do Brasil ficou assim falado devido ao isolamento, à predominância cultural e literária do português de Portugal sobre os falantes negros africanos analfabetos. Eles realmente não sabiam ler ou escrever português, mas essas teorias eram baseadas em fatores extralinguísticos. Eu introduzi nessa discussão a prevalência e a participação dos falantes africanos, sobretudo das línguas níger-congo, que são cerca de 1.530 línguas. As mais faladas no Brasil foram as do Golfo do Benim e da região bantu, sobretudo do Congo e de Angola.
RH – São as chamadas de ioruba?
YPC – Ioruba são as línguas antes chamadas de sudanesas. Hoje as chamamos de línguas da África ocidental, ou línguas oeste-africanas. Destas, as mais faladas no Brasil foram o ioruba, que geralmente chamamos de nagô, e a língua fon, do grupo ewe-fon, que nós chamamos de jeje.
RH – Como se interessou pelas línguas africanas?
YPC – Desde pequena, na fazenda dos meus tios, em Feira de Santana, eu via aquelas rezas, havia muitos negros na região, via aqueles cantos, benzeduras, quando ficava doente tomava daquelas mezinhas que eles faziam com ervas. Em Salvador eu cresci num bairro popular, de famílias pobres como era a minha. A escola onde estudei, Nossa Senhora de Fátima, tinha uma diretora, professora Minervina, uma mulher negra, grande, que me impressionava, e no trajeto de minha casa para a escola havia muitos, muitos negros. Eu não conseguia entender o que eles diziam, aquelas palavras misteriosas. E prometi para mim mesma: “um dia vou saber o que eles estão dizendo”. Então fui fazer Letras, para ter a possibilidade de matar essa curiosidade. No curso tinha um professor, Nelson Rossi, que influenciou muito as pesquisas sobre dialetologia, e me interessei em estudar a participação dos falantes africanos na formação do português do Brasil. O professor Rossi disse: “Ah, não se preocupe que isso tudo já foi estudado por Jacques Raimundo [autor de O elemento afro-negro na língua portuguesa (1933)], Renato Mendonça [autor de A influência africana no português do Brasil (1935)], nos anos 30”.
RH – Começou sua pesquisa por onde?
YPC – Comecei em Salvador, levantando esse vocabulário, essa fala, mas tive a felicidade de poder sair do Brasil. Valia a pena sair do Brasil naquele momento, anos 60, muito conturbados, não é? Fui para a Nigéria, para a cidade de Ibadan, era uma zona de língua ioruba e na vizinhança se falava fon, jeje. Então fiz um trabalho sobre ioruba e fon. Até aquele momento era concepção vigente que a maior influência que havia no Brasil era a da presença ioruba/nagô.
RH – Não se conhecia a influência bantu?
YPC – Nina Rodrigues, quando estudou a influência africana no Brasil, fez um trabalho primoroso com os dados etnográficos que existiam. As pessoas o acusam de racista, mas eram as teorias vigentes na época. Quem garante que amanhã ou depois alguém não irá dizer que nós também somos racistas, e que essa teoria não vale nada? Nina começou a estudar a população negra africana em Salvador no momento em que havia uma grande concentração de falantes ioruba, ficou impressionado e afirmou que a mais importante influência africana no Brasil era ioruba. E ficou impressionado com outra coisa: naquela época ioruba era uma língua escrita, e o prestígio da escrita em comparação com as línguas europeias a fez prevalecer sobre outras línguas que não tinham escrita até aquele momento. Ele a achou uma língua literária, de uma cultura superior, fez tantos elogios à língua ioruba e aos falantes ioruba que o Brasil terminou dividido em duas grandes influências: ioruba na Bahia e o resto. Para Nina, o resto é o resto, não tem legitimidade, para Pierre Verger também. Nesse meio-tempo a influência iwe-fon ficou esquecida. Meu estudo sobre ioruba e iwe-fon foi a primeira dissertação de mestrado de um brasileiro numa universidade africana. Só mais tarde, em 76, quando voltei a Salvador e fui ao Caribe também, comecei a perceber que havia muito mais coisas que não eram ioruba. Havia bantu. Esqueceram que a maioria, 75% dos cerca de 4 milhões de negros escravizados no Brasil, era de procedência bantu. Por que essa população foi silenciada? Então apareceu a oportunidade de ir para o Zaire, o antigo Congo belga, numa universidade maravilhosa. Mobutu, que era o ditador do país, ele próprio um ignorante, fazia questão de mostrar que havia cultura, que havia uma grande universidade, a Universidade Nacional do Zaire, Unaza. E lá escrevi meu doutoramento.
RH – O que descobriu?
YPC – Nós não temos um falar crioulo do português, como no Caribe, na Guiana ou em outras regiões onde os portugueses foram os colonizadores. Mas percebi uma coisa: Angola e Moçambique também não têm falar crioulo. Por quê? Devia haver um link, não só uma coisa extralinguística, mas algo de tipo intrínseco, que impediu que emergisse um falar crioulo em Angola, em Moçambique e no Brasil. E eu vi que foram as mesmas línguas que entraram em contato: o português arcaico e as línguas do grupo bantu, especialmente as do Congo e de Angola, pois o tráfico com Moçambique foi muito menor e posterior. No Congo descobri o que aconteceu no Brasil: a proximidade que houve por acaso entre o português arcaico e as línguas do grupo bantu, que resultou no português que falamos hoje.
RH – No que resultou a combinação dessas línguas?
YPC – As línguas do grupo bantu não têm grupos consonantais, não têm uma sílaba fechada por consoante. O resultado é que nosso português é riquíssimo em vogais, afastado do português lusitano, muito baseado nas consoantes. O baiano fala cantando? Todo brasileiro fala cantando – aliás “cantano”, porque a gente sempre evita consoantes. A parte sonora da palavra é a vogal, e nós fazemos questão de cantar. No futebol nós dizemos “gou”, em Portugal dizem golo, para acentuar a consoante. Nossa língua é vocalizada, nós colocamos vogais até mesmo onde elas não existem. Pneu: nós usamos duas sílabas. Ritmo: nós dizemos três sílabas. Não sei por que as gramáticas insistem em dizer que “ritmo” tem duas sílabas, quando tem três. Fui ver a estrutura silábica do português arcaico e a formação silábica e o processo fonológico das línguas faladas em Angola e no Congo, e reparei numa extrema coincidência: é o mesmo tipo de estrutura silábica: consoante-vogal-consoante-vogal o tempo inteiro. Houve o mesmo tipo de encontro do português arcaico com essas línguas, que eram faladas majoritariamente no Brasil. Em vez de haver um choque, em vez da necessidade de emergir outro falar, um falar crioulo, não: houve simplesmente uma acomodação, devido às coincidências dessas estruturas linguísticas.
RH – Que outras características nosso português herdou?
YPC – A eliminação dos plurais, por exemplo. Marcamos o plural pelo artigo que antecede o substantivo, mas o substantivo fica no singular: “os menino”, “as criança”, isso é normal no Brasil. Por quê? Porque nas línguas do grupo bantu o plural das palavras se faz por prefixo. A linguagem popular do Brasil, em qualquer região, tem as mesmas características: evitar grupos consonantais, substantivo sempre no singular, além da dupla negação, “eu não sei não”: isso é africano, o português de Portugal jamais diz isso. Também começar a frase com pronomes átonos: me diga, me fala, a gente começa a frase usando próclise. A mesóclise do português desapareceu na linguagem do Brasil: “dir-te-ei”, ninguém diz isso.
RH – Em que situações o português do Brasil é mais africano?
YPC – O nível mais próximo que tínhamos de vestígios de línguas africanas é o das linguagens religiosas: a dos vissungos em Minas Gerais, a do candomblé da Bahia, a da umbanda. A linguagem estava lá, não mais como competência linguística, mas como competência simbólica. Esta foi outra descoberta do meu trabalho: a competência simbólica. Quando as pessoas recebem uma entidade, vamos dizer, Oxum, rainha das águas (eu também sou filha de Oxum), há a saudação “Olele ô”. O que é “Olele ô”? Não interessa, a saudação é aquela. Isso é competência simbólica. No mês de Maria [maio] se reza a ladainha num suposto latim, que não é mais latim: “Regina Coeli, Aleluia, Regina bofetarum”, em vez de profetarum. As pessoas estão cantando para a rainha, então não tem importância: é a competência simbólica. Assisti a um caso muito curioso numa cerimônia no Pelourinho. Era uma trezena – porque na Bahia trezena são três dias, não treze, é um tríduo – uma trezena de Santo Antônio, e teve uma cena inteiramente amadiana [de Jorge Amado]. Lá tinha traficantes, prostitutas, tinha tudo. Primeiro, eles fizeram uma roda de santo para fazer uma feijoada de Ogum, e cantaram com sistema lexical africano. Quando terminou, fomos cantar para santo Antônio: ele estava num cantinho do altar, com aquelas flores azuis e brancas de papel crepom, e eles começaram a cantar a ladainha em latim acompanhada de tambor. O trecho “Agnus Dei qui tollis peccata mundi” foi cantado “Agnus dê clitóris peccata mundi”. Agnus passou a ser uma entidade que nos deu clitóris. Dizem que quem não sabe rezar xinga Deus, eu não concordo. Quem não sabe rezar que continue rezando dentro de sua competência simbólica, a competência linguística não tem nenhuma importância.
RH – A língua se transforma segundo o estrato social?
YPC – O nível que vem depois da linguagem popular é o do falar mais cuidado, este que nós estamos usando aqui, e com tom regional. E enfim o português literário do Brasil, o português escrito, que obedece aos padrões da norma da língua portuguesa como um todo. À medida que você se aproxima desse nível, a influência africana diminui, devido à escolaridade. Quando somos menos alfabetizados, falamos mais africanizado. Quando somos mais alfabetizados, falamos mais aportuguesado. Mesmo assim não se consegue inibir esses traços, que estão na constituição do português do Brasil.
RH – É positiva a mobilização da sociedade e do Estado brasileiros por maior reconhecimento das nossas heranças africanas?
YPC – Sim, inteiramente. Quando era diretora do Centro de Estudos Afro-Orientais da Bahia, em 82 ou 83, propus à Secretaria de Educação do Estado – e os movimentos negros me apoiaram nisso – a introdução de uma disciplina obrigatória nos currículos do Ensino Médio: Estudos Africanos (geografia, língua, literatura, história, antropologia, sociologia). A proposta foi aceita: em 84, 85, já tinha uma norma do então secretário de Educação da Bahia, professor Valdo Boaventura, determinando a introdução dessa disciplina nos currículos. Eu fui a predecessora da lei que seria aprovada bem mais tarde, em 2002, de Lula. E acho as cotas muito positivas, mas não se pode aprovar uma pessoa que se diz afrodescendente se for ignorante naquilo que pretende fazer. É muito importante que a população negra entre na universidade para abalar a estrutura, trazendo um novo discurso, uma nova visão, um novo colorido, que entre para abalar a concepção de que a universidade é uma instituição branca. Mas não se pode fazer isso indiscriminadamente. Há um tempo, fiz parte de uma banca examinadora que tinha duas candidatas, uma que não era negra e uma negra, e a segunda fez a opção de entrar pelas cotas. Só que o discurso dessa candidata foi pífio e o trabalho que ela escreveu era de uma pessoa quase analfabeta. Quem passou? Ela. Para que haja cotas é preciso que também haja o mérito.
RH – As universidades brasileiras ainda são muito elitistas?
YPC – Extremamente elitistas. Veja a Universidade Federal da Bahia, por exemplo. Até hoje não existe um curso de línguas africanas. Até hoje não se estuda a questão das línguas africanas no Brasil numa cidade como Salvador, onde 85% da população são afrodescendentes. Quando assumi a direção do Centro de Estudos Afro-Orientais, abri a biblioteca para o público em geral e foi um escândalo: a biblioteca da universidade é para servir à universidade, diziam. Não, eu disse, aqui é um centro de estudo de extensão da universidade, então vou trabalhar com a comunidade. Fui acusada de estar vulgarizando a universidade. Por outro lado, como eram os anos 80, quando o movimento negro foi instalado na Bahia, falaram que eu era uma branca ocupando lugar de negro. Então fiquei entre a cruz e espada. Mas como sou baiana, e todo baiano gosta de capoeirar, fui capoeirando até o fim, sem nenhum conflito.
RH – O que explica a persistência de intolerância contra religiões afro-brasileiras?
YPC – Primeiro: são religiões que não têm uma bíblia, são baseadas na oralidade. A pedagogia do mundo ocidental é toda baseada na escrita, só é legítimo o que é escrito. Como essas religiões não têm um livro sagrado, são folclore. E, como disse Edison Carneiro, cada candomblé, cada grupo desses, é uma igreja independente em si mesma. Não tem um papa que diga que tem que fazer isso ou aquilo. O segundo preconceito: eram religiões predominantemente praticadas por negros. E a comunidade negra é ligada à escravidão, ao analfabetismo, à falta de cultura, a uma série de preconceitos que nós sabemos que existem no Brasil. É uma religião sem proselitismo, ninguém faz sua cabeça para entrar no candomblé, você vai se quiser, e na hora que quiser sair, você sai. Não oferecem céu, inferno e purgatório, isso não existe para elas. São religiões livres, que aceitam os indivíduos como eles são, homossexuais ou não, traficantes ou não, não interessa: não há nenhuma norma para você participar de um candomblé, da umbanda. Isto faz frente à Igreja Católica, que está perdendo fiéis. A Igreja Universal do Reino de Deus, com a força de seu muito dinheiro, quer reconquistar exatamente esse espaço, que o “povo de santo” conquistou e ocupa na sociedade brasileira.
RH – Como vê a apropriação de manifestações afro-brasileiras pela indústria cultural?
YPC – De certa maneira, essa indústria cultural divulga traços da presença negra africana no Brasil. A questão é a maneira como divulga isso. Por exemplo, escola de samba: houve essa questão da Beija-Flor [patrocinada em 2015 pela ditadura da Guiné Equatorial] e eu fiquei estarrecida com a entrevista de um dos membros da escola, dizendo “Nós não fazemos política, de onde veio o dinheiro não interessa”. Eu me pergunto por que as entidades que geralmente se preocupam com isso não dizem nada. Os carnavais do Rio são a exibição fantástica de comunidades com pessoas pobres que compram suas fantasias para dar dinheiro aos grandes cartolas das escolas de samba. Na Bahia a coisa é mais limitada: os blocos afro e afoxé, coitados, lutam para sair no carnaval, têm que competir com Ivete Sangalo, Margareth Menezes, Carlinhos Brown. São blocos que querem apresentar o carnaval com os traços da cultura que eles preservam. O bloco Olodum recebe muito dinheiro, mas eles trabalham para isso, não recebem de nenhum ditador africano.
RH – Os países africanos e caribenhos se interessam pela cultura brasileira?
YPC – No Caribe, há um interesse muito grande pelos traços de origem africana na formação das religiões. Na Nigéria e no Benim, há muita gente da universidade interessada na troca de estudantes e de professores. Em Angola, claro: Bahia é Angola, Angola é Bahia, o interesse é enorme para estudar o que chamamos de africanias, todo o legado de matriz cultural africana nas Américas. Há dois anos a Universidade Estadual da Bahia assinou um acordo com a Universidade Agostinho Neto, a mais importante, a mais antiga de Angola, para ensinar duas línguas africanas no currículo, quicongo e quimbundu, como línguas estrangeiras. São as mais faladas, e muito próximas, como se fossem português e espanhol, antes eram uma só. Mas até hoje a UNEB não tomou nenhuma providência para introduzir esse curso, o que é uma pena. Seria a primeira universidade brasileira a oferecer um curso de línguas africanas como línguas, e não como dialetos.
http://rhbn.com.br/secao/entrevista/yeda-pessoa-de-castro
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