Matheus Pichonelli — O Brasil se assusta ao ver que tudo o que sempre ocorreu às escondidas agora é gravado e viralizado. Falta entender o que não está no vídeo
Quando o crime é comprovado, a loucura, sempre ela, é a justificativa para a barbárie, sempre ela, para justificar os crimes da civilização
Uma amiga desapareceu ao fim do colegial. Tinha acabado de se tornar mãe. Nunca mais tivemos notícias dela.
Duas amigas se mataram desde o fim da faculdade. Uma delas estudava comigo desde a segunda série do fundamental. Era uma das jovens mais inteligentes da turma, mas poucos queriam saber disso – alta, loira, magra, foi a representante da escola num concurso de beleza durante a viagem de formatura.
Perto dos 30, enforcou-se pouco depois de desmanchar o noivado. Os amigos dos amigos diziam, à boca pequena, que a relação havia desandado porque ela ficara estranha demais desde que o irmão morrera, cerca de dois anos antes, num acidente de carro. Ela tinha depressão.
As tragédias envolvendo nossas amigas são uma espécie de tabu em qualquer roda de conversa. De alguma forma, preferimos atribuir à insanidade, ao desespero, ao ato incalculável o que chamamos de absurdo ou loucura. “A vida segue”, diz a prudência quando precisamos eliminar o sofrimento ou o entendimento – quase sempre consequência um do outro.
Em nosso prédio, muitos casais tiveram filhos de uns tempos pra cá. Os homens, depois de cinco dias, voltamos aos trabalhos. As mulheres se encontram na área comum com seus carrinhos, trocam sorrisos, cumprimentos, as primeiras impressões.
A maioria tem olheiras, sorrisos cansados, suspiros. Muitas deixam para depois, ou para nunca mais, o retorno ao trabalho – e à qualquer possibilidade de autorrealização fora dos afazeres do lar.
Em casa, as perguntas chegam tímidas, discretas. “O que ele tem? Gripe?”. As exigências são sempre direcionadas à mãe. Inclusive o dever de sorrir. “Não é mágico?” Com as lupas vêm as dicas. Se faltou leite, faltou fé. Faltou amor. Faltou milho – a mãe e seu estômago não suportam milho, pipoca, canjica e derivados, mas suportam menos a acusação de negligência.
O coitado vai ficar com o pai. A mãe – “é doida?” – vai arejar as ideias com uma caminhada no parque. Volta mais cedo porque uns marmanjos a seguiram depois de oferecerem gracejos, ruídos e sons com a língua. “Quem mandou sair de casa?”
O pai, explicam os mais velhos, tem alguns genes mal desenvolvidos que inibem a sensibilidade ao choro, à fome, à sujeira. São, em compensação, responsáveis por sair à caça durante o dia para trazer a presa à noite – às vezes com o hálito da embriaguez e da amargura por não ser mais o bebê da casa.
Bons tempos aqueles – tudo em nós, os meninos, era lindo. A barrigudinha. A flatulência. O arroto à mesa. O cabelo despenteado. A roupa suja. A calça do avesso – um charme. Até a briga na saída da escola. A resposta atravessada aos professores – é da idade, é da natureza, é da rebeldia.
Na brinquedoteca, as crianças discutem. O mais novinho, desavisado das leis da natureza, pede para brincar de cozinha e toma um pescotapa do pai. Meninos, ensina o pai (e também os professores), gostam de aventura – de lama, de corre, de bola, de polícia, de ladrão. Meninas gostam de boneca, de panela e de vestido – ai se chegar em casa suja de lama, diz mãe natureza na voz dos pais.
Gostam também dos contos de fadas. Vamos ler um? “A Princesa e a Ervilha”. O príncipe queria se casar, mas não havia ninguém no reino que fosse da sua estatura. Numa noite de muita chuva, uma princezinha bate à porta do castelo e pede abrigo. A rainha desconfia: deve ser golpe.
Coloca uma ervilha embaixo de uma sequência de colchões na cama onde a jovem passará a noite. Se for uma princesa de verdade, pensa, ela vai se incomodar. Pois só uma princesa de verdade tem a pele sensível o suficiente para perceber uma ervilha entre tantos colchões. A princezinha passou no teste: reclamou, pela manhã, que dormiu como se estivesse deitada sobre pedras. Estava apta a se casar com o príncipe.
O castelo é da princesa, e ele está repleto de revistas com dicas para ter o corpo perfeito, para agradar, para não envelhecer jamais. O mundo é do príncipe: ele está nos livros, nas arquibancadas, no esporte popular, nos festivais, nos filmes, nas chamadas dos sites pornô, nos shows, nas letras – “esse cara sou eu” diz a melô do stalker com selo de canção romântica – nos pôsteres, nas delegacias, nos cargos de comando, nas colunas de opinião, no Congresso – generoso, faz as vezes de cabo eleitoral da filha e da conjugue e é homenageado nas grandes votações.
Quem está ali sem licença de outro homem ouve nos corredores que só não é estuprada por que não merece. Quem está livre para dizer o que dá na telha, porque desde cedo aprendeu de quem é o mundo, pode homenagear inclusive torturador que violentava mulheres na ditadura. Azar de quem não leva na brincadeira.
O estupro e a tortura têm algo de comum: o delinquente só reconhece a vítima como um corpo do qual se pode arrancar o que se quer sem reconhecer a sua dor, a sua vontade, a sua capacidade de sentir e pensar. Se ficasse em casa – em vez de contestar, em vez de lutar, em vez de existir – nada disso teria acontecido.
A cada 11 minutos, um caso de estupro é notificado no país, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O número é subestimado – boa parte das vítimas tem receio, medo ou vergonha de fazer a denúncia.
Muitos dos crimes acontecem dentro de casa e são praticados pelas pessoas mais próximas – o vizinho, o tio, o pai, o marido. Muitas das vítimas são adolescentes. Quando decidem falar, passam por uma bateria de perguntas para provar que não se trata de um delírio – marmanjos do Congresso querem orientar a vítima a procurar a delegacia antes de buscar ajuda no hospital para que ninguém saia por aí delirando dizendo em voz alta o que ninguém, em consciência, tem orgulho de relatar.
Quando o crime é comprovado, a loucura, sempre ela, é a justificativa para a barbárie, sempre ela, para justificar os crimes da civilização.
Nas rodas de conversa, os homens de família, desconfiados das intenções de quem sai às ruas em protesto contra a tal cultura do estupro – só podem ser partidários deste ou daquele governo; só podem estar tentando chamar a atenção; só podem estar levando algum – demonstram valentia para tratar dos criminosos. Prisão perpétua. Pena de morte. Estupro corretivo.
No grupo de mensagens instantâneas, compartilham as ideias para salvar o mundo dos bárbaros com as velhas piadas dos tempos do fundão da sala. Compartilham também vídeos e comentários a respeito da novinha da vizinhança. Da sweet child da novela. A piada do humorista metido a militante. E do militante metido a humorista. O comentário político segundo o qual a ideia de representatividade é bobagem – o critério deve ser a competência, e competência, ensinam os filósofos desde a Antiguidade, tem gênero.
O que não pode ter gênero é a ideologia – já pensou o horror se os professores começarem a dizer, em sala de aula, que meninas podem ter os mesmos direitos e anseios dos meninos? Que elas não estão condenadas à servidão, ao confinamento do lar, à obediência, aos cuidados com o vestido, com os cabelos ou com as ervilhas debaixo do colchão? Já imaginou se, em vez de transtornos, desenvolvem a autoestima em sala de aula? E as ferramentas para rebater quem tenta, de cima para baixo, referendar hierarquias desde o nascimento até o mercado de trabalho, passando pelas relações afetivas e familiares?
Melhor tirar o horror da vista. Chamar de barbárie. Atribuir ao baile funk, à favela, à ausência de valores desses pontos fora da curva que saíram da proteção da civilização por sua conta e risco.
Nas últimas semanas, o Brasil se assustou ao saber que tudo aquilo que sempre ocorreu debaixo dos panos agora é gravado, viralizado e exibido como troféu. Falta entender o que não está no vídeo. O primeiro passo é deixar de atribuir à “loucura” tudo o que criamos e não ousamos reconhecer.
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