Paul Krugman – Os políticos dos Estados Unidos adoram assumir a pose de defensores dos valores familiares. Infelizmente, essa pose muitas vezes, talvez costumeiramente, revela notável hipocrisia.
E não, não estou falando do contraste entre as poses assumidas em público e o comportamento pessoal, ainda que esse contraste possa ser extremo. O que espanta mais: o fato de que um deputado republicano que presidiu por muito tempo a Câmara dos Deputados tenha cometido abusos sexuais contra rapazes adolescentes ou a pouca atenção que essa revelação recebeu?
Mas em lugar disso, estou falando de políticas públicas. Julgados com base naquilo que realmente fazemos —ou, mais precisamente, não fazemos— para ajudar crianças pequenas e seus pais, os Estados Unidos são únicos, entre os países avançados, por sua completa indiferença quanto às vidas de seus mais jovens cidadãos.
Por exemplo, quase todos os países avançados oferecem licença-maternidade e licença-paternidade para as mães e os pais de bebês recém-nascidos. Nós não. Nossos gastos públicos no cuidado com as crianças e sua educação inicial, como porcentagem da renda nacional, estão perto do sopé dos rankings internacionais (se isso serve de consolo, estamos ligeiramente acima da Estônia).
Em outras palavras, se você nos julgar pelo que fazemos, não pelo que falamos, damos muito pouco valor às vidas de nossas crianças, a não ser que estas venham de famílias afluentes. Será que mencionei o fato de que os 20% mais ricos dos domicílios dos Estados Unidos gastam seve vezes mais com seus filhos do que os demais domicílios do país?
Será que é possível deixar para trás nossa negligência quanto às crianças?
Em janeiro, os dois pré-candidatos presidenciais democratas declararam seu apoio a um programa que ofereceria 12 semanas de licença paga para as mães e pais de recém-nascidos. E na semana passada, enquanto o foco da mídia noticiosa era o amigo imaginário, ou melhor, porta-voz imaginário, de Donald Trump,Hillary Clinton anunciou um plano ambicioso para melhorar tanto o preço quanto a qualidade dos cuidados com as crianças nos Estados Unidos.
Foi um anúncio importante, ainda que tenha ficado obscurecido pelas feiuras e tolices de uma campanha eleitoral ainda mais feia e tola que de hábito. Pois a reforma nos serviços às crianças é o tipo de iniciativa de porte médio, gradativa, e passível de ser realizada, politicamente – mas ainda assim extremamente importante -, que poderia servir de peça central ao governo de Hillary. Qual é o plano, portanto?
Bem, não temos todos os detalhes ainda, mas as linhas gerais parecem bastante claras. Quanto ao custo, Hillary recorreria a subsídios e restituições de impostos para limitar as despesas familiares no cuidado com as crianças a um máximo de 10% do orçamento domiciliar – hoje, elas podem atingir até um terço do orçamento.
Enquanto isso, haveria assistência aos governos estaduais e comunidades que aumentassem o salário dos trabalhadores do setor de cuidados com a criança, e diversas outras medidas de assistência às crianças pequenas e seus pais. Tudo isso ainda deixaria os Estados Unidos na posição de menos generosos do que muitos outros países, mas seria um passo na direção das normas internacionais.
Seria factível? Sim. E é desejável? Muito.
Quando falamos de fazer mais pelas crianças, é importante perceber que isso custa dinheiro, mas nem tanto dinheiro assim. Por quê? Porque não existem tantas crianças pequenas a um só tempo, e não são necessários grandes gastos para fazer grande diferença em suas vidas. Nosso precário sistema de apoio público aos cuidados com crianças e educação inicial custa 0,4% do Produto Interno Bruto (PIB). O sistema da França, famoso pela generosidade, custa 1,2% de seu PIB. Ou seja, poderíamos subir muito na escala fazendo um investimento apenas modesto.
E seria de fato um investimento – tão investimento quanto gastar dinheiro no reparo e melhora de nossa infraestrutura de transporte. Afinal, as crianças de hoje são os trabalhadores e contribuintes de amanhã. Assim, é um incrível desperdício, não só para as famílias como para o país como um todo, que os futuros de tantas crianças se vejam prejudicadas porque seus pais não têm recursos para tomar conta delas tão bem quanto deveriam. E os cuidados com as crianças a preço acessível teriam o benefício imediato de facilitar que os pais e mães trabalhem produtivamente.
Existem quaisquer motivos para que não gastemos um pouco mais com as crianças? Os suspeitos habituais se pronunciarão, é claro, sobre os males de um governo grande, a natureza sagrada da escolha individual, as maravilhas do livre mercado, e assim por diante. Mas o mercado dos serviços para a criança, como o da saúde, funciona muito mal na prática.
E quando alguém começar a falar em livre escolha, tenha em mente que estamos falando de crianças, que não estão em posição de escolher se nascerão em domicílios afluentes, com muitos recursos, ou como parte de famílias menos prósperas que enfrentarão muita dificuldade para encontrar o equilíbrio entre trabalhar e cuidar dos filhos.
Assim, será que poderíamos parar por um instante de discutir quem saiu vitorioso do mais recente ciclo de notícias ou proferiu o melhor insulto e falar sobre a substância de uma política, aqui?
O estado dos cuidados com a criança é cruel e vergonhoso nos Estados Unidos, e ainda mais vergonhoso porque poderíamos melhorar muito as coisas sem mudanças radicais ou imensos gastos. E um dos candidatos tem um plano razoável, viável, para fazer alguma coisa quanto a essa vergonha, enquanto o outro não poderia se incomodar menos com a questão.
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/paulkrugman/2016/05/1771690-e-preciso-uma-politica.shtml
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