Política

O dia em que Bolsonaro tomou posse na presidência do Brasil

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Luiz Eduardo Soares – Chovia muito em Brasília e nas principais capitais do país. O dia nasceu como nascem os dias primeiro de janeiro. No Rio, por exemplo: gente tropeçando em latinhas de cerveja, lixo acumulado nas calçadas e gatos pingados emborcados na areia. A tempestade que acabou com a festa deu uma trégua e abriu sua escotilha de bronze, deixando passar uns raios de sol fraquinhos. As homenagens a Iemanjá, talvez as últimas, ainda boiam no mar escuro, mas as velas se apagaram. A turma do subúrbio já voltou pra casa, a viagem é longa. Nos apartamentos ao longo da orla, a classe média curte a ressaca do champagne morno e barato. São tempos bicudos. Contra todos os indícios e contariando as previsões, eis aí o ano da graça de 2019.

Jair Bolsonaro toma posse no fim da manhã gélida do planalto central, apesar do verão. O Congresso está disposto a aclamar a nova cara do poder e abre as portas para os patriotas que vieram em caravana de todo o país. Casa cheia. Nas galerias, todo mundo veste a camisa da seleção brasileira, sopra vuvuzelas e entoa o hino da campanha vitoriosa: “sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor ô, ô.” Senhoras e senhores erguem terços, bíblias e panelas, o novo símbolo nacional.

Sem alarde, Lula pede asilo ao Uruguai. Acompanhado por seus assessores mais próximos, refugia-se na embaixada no fim da tarde de 31 de dezembro. Dilma fizera o mesmo, logo após o segundo turno das eleições. Alguns militantes consideraram as decisões precipitadas, mas não demorariam a rever suas avaliações. Ciro Gomes divulga nota, afirmando que fica para resistir. Como a mídia noticia esses episódios sem destaque e com certa ironia, a comoção popular é reduzida.

No dia 2, os jornais estampam sua adesão: “Discurso de posse dissipa especulações e aponta caminho modernizador”; “O Brasil agora está livre para crescer em ordem”. Nas colunas de opinião, especialistas afirmam que é hora de superar preconceitos e falsos temores, esquecer ideologias e antigos rancores, e trabalhar pelo crescimento do país. Analistas econômicos celebram o entusiasmo do mercado: o ministro da fazenda, recém-empossado, anunciou a disposição de privatizar a Petrobrás, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica. O BNDES seria “desinflado”.

Nos dias seguintes, o quadro se tornaria mais claro: DEM, PMDB e PSDB, com o endosso da maioria dos governadores recém-eleitos, em declaração conjunta, proclamam que estão unidos pelo Brasil, superando divergências menores. O crescimento não se dará sem sacrifícios, dizem, por isso, mais do que nunca, chegara o momento de unir o país. Sendo assim, comprometem-se a apoiar o novo governo sem exigir qualquer contrapartida, por mero patriotismo. Estava encerrada a era do toma-lá-dá-cá.

Em programas de debate, nos canais por assinatura, cientistas políticos e consultores aplaudem o elevado senso de responsabilidade cívica e política que essas lideranças demonstravam. E já que o momento era de reformas, prometiam fazer a sua parte, revendo e atualizando o conceito “presidencialismo de coalizão”. Os prognósticos dos editorialistas dos principais jornais coincidiam: “Livres das cadeias do passado, o céu é o limite para a sociedade brasileira”.

Na conta dos sacrifícios estava a substiuição, na mídia, da liberdade inconsequente pela liberdade com responsabilidade. Mas não haveria fiscais ou censura. Bastaria o senso de responsabilidade patriótica de cada um. Constava também da lista de sacrifícios a tolerância provisória com o que talvez parecesse excesso, aos olhos do mundo. Por essa razão, tornara-se tão importante a missão do ministro do exterior, intelectual renomado, respeitado nas altas rodas do país, com bom trânsito internacional, mesmo em círculos progressistas.

No dia 5 de janeiro de 2019, o presidente concede sua primeira entrevista coletiva, na qual explica a ausência de negros e mulheres no ministério: “o importante é que os ministros sejam competentes e patriotas. Preocupação com a cor só alimenta o racismo, em um país miscigenado como o nosso, e preocupação com sexo é coisa da esquerda.” Sites de oposição fizeram troça da frase, provocando algum desconforto no Planalto, sobretudo depois que algumas prisões foram consideradas políticas pela imprensa estrangeira.

Na segunda semana de mandato, o “capitão do time”, como o presidente se autointitulava, é convidado por Trump a visitar a Casa Branca e se empolga, em cadeia de rádio e televisão: “Cumprindo os compromissos de campanha, a segurança e a família serão prioridades em meu governo. Os empregos virão com o tempo, não é uma coisa que se resolva de um dia para o outro. Depende da retomada do crescimento, o que já está em marcha, graças às medidas corajosas que começamos a tomar. Os investimentos estrangeiros estão chegando em um volume jamais visto. Isso porque o mundo inteiro sabe que vamos livrar o Brasil de seu passado estatista e de sua mentalidade arcaica”.

Ele continuou: “O mais urgente, a revolução na segurança pública, terá início amanhã: as zonas perigosas serão ocupadas pelas Forças Armadas. E eu aproveito para avisar aos bandidos, traficantes e a toda essa corja: vamos esmagar vocês. Quem enfrentar os representantes da lei vai morrer. Uma grande limpeza vai começar”.

No mesmo dia, mais cedo, o ministro da Educação convocara todos os secretários estaduais e municipais da área para iniciar o que ele denominou mutirão para fazer uma faxina, varrendo das escolas os comunistas e suas ideias pervertidas.

Respondendo a questionamentos, em Genebra, o ministro do exterior foi enfático: “Direitos humanos não podem ser obstáculo à luta contra o crime.”

O ministro da Justiça, eminente jurista, douto membro de família tradicional, concorda: “É preciso restituir ao Estado sua autoridade. Sem ordem, não há progresso.” Paralelamente, em perfeita sintonia, o general, ministro da Segurança Pública, reafirma: “Erros sempre acontecem, são naturais. Não se fazem omeletes sem quebrar ovos. O importante é alcançar o objetivo: liquidar o crime no Brasil”.

Nas favelas o bicho pega. Perde-se a conta das vítimas.

Nos primeiros 20 dias, o Congresso, que ainda era o mesmo eleito em 2014, não teve dificuldades em revogar o Estatuto do Desarmanento, reduzir a idade de imputalbilidade penal para 16 anos, proibir o aborto em todas as circunstâncias, mesmo em caso de estupro, e suspender os entraves à devastação ambiental na Amazônia. Deputados não reeleitos pulariam direto do Congresso para o governo, tão logo os recém-eleitos tomassem posse. Essa manobra conferiu ainda mais poder ao Executivo para aprovar sua agenda radical.

As ações no campo da segurança, cujo significado foi ampliado, alcançaram personagens alheios às páginas policiais. Em 21 de janeiro, Gilherme Boulos foi preso e o MTST, declarado ilegal, assim como o MST. João Pedro Stedili foi considerado foragido e passou a ser caçado pela inteligência do exército, a ABIN e a polícia federal. As acusações: ambos articulavam movimento de desestabilização das instituições democráticas, das quais não estavam excluídas ações terroristas. Disso davam prova vínculos identificados dessas lideranças e de ativistas desses movimentos com um grupo estudantil carioca, que teria se envolvido com black-blocs, em 2013.

Em 22 de janeiro, Caetano Veloso e Paula Lavigne, auto-exilados em Nova York, leem carta aberta à imprensa mundial, denunciando a derrocada da democracia no Brasil.

No dia 23 de janeiro, com a prisão de frei Beto e dos jornalistas Dorritz Harazimm e Mario Sergio Conti, o tempo fecha. A ABI, a OAB, associações de juízes, de promotores e defensores públicos assinam manifestos denunciando o retrocesso. Os partidos de oposição se reunem em torno de uma plataforma emergencial: o retorno à democracia –embora um racha enfraquecesse essa movimentação: tendências mais à esquerda questionavam a palavra de ordem burguesa e propunham “socialismo já”. Outras se esquivavam da polêmica, buscando abrir diálogo com o alto comando das forças armadas em nome da soberania nacional, ameaçada pelo entreguismo em curso. Sindicatos convocam greve geral com adesão das organizações estudantis.

Nenhuma iniciativa teve desdobramento. Em 25 de janeiro de 2019, ladeado pelo ministro da Justiça e pela cúpula do ministério da Defesa, o presidente declara estado de sítio, adiando sine die a posse dos novos congressistas, eleitos em 2018 -até então prevista para ocorrer em 1 de fevereiro-, e colocando na ilegalidade partidos de esquerda. O brado do planalto ecoa como uma sinfonia eufórica e metálica de panelas: “Para varrer o crime e a corrupção, não basta invadir favelas; é preciso limpar a política”. Ao fim do pronunciamento oficial, diante de um pelotão de repórteres, o presidente vocifera, emocionando os indignados com o mar de lama da política: “Sem partido!”

Como foi possível chegar até lá?

As distopias podem ajudar a prevenir tragédias. Espero que esta nos ajude a pensar e agir, preventivamente, sem menosprezar riscos que, hoje, talvez pareçam inexistentes pelo absurdo que representariam, mas cuja consequência por vezes surpreende. Trump é a prova.

http://justificando.cartacapital.com.br/2017/12/04/o-dia-em-que-bolsonaro-tomou-posse-na-presidencia-do-brasil/

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