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Freyre: “nas senzalas da Bahia de 1835 havia mais gente sabendo ler do que nas casas-grandes”

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Cynara Menezes – A quem interessa a persistência do mito de que todo africano que veio escravizado para o Brasil era “selvagem”?

Um dos mitos mais persistentes sobre a escravidão é a de que os negros que foram trazidos à força para o Brasil vieram exclusivamente para trabalhar na lavoura e na cozinha das casas-grandes e executar todo o serviço pesado que os sinhôs e sinhás se recusavam a fazer. Claro, interessa às elites brancas disseminar que os negros se tornaram escravos, ainda na África, porque não tinham condições intelectuais de resistir, que eram “selvagens”. A história, porém, é outra.

Muitos dos negros escravizados, ao contrário de seus donos, eram alfabetizados. Já possuíam um ofício especializado em sua nação de origem e foram trazidos para cá com essa função. Quem faz o alerta sobre a generalização é Gilberto Freyre, no clássico Casa Grande & Senzala(1933). “Nada mais anticientífico que falar-se da inferioridade do negro africano em relação ao ameríndio sem discriminar-se antes que ameríndio; sem distinguir-se que negro. Se o tapuio; se o banto; se o hotentote. Nada mais absurdo do que negar-se ao negro sudanês, por exemplo, importado em número considerável para o Brasil, cultura superior à do indígena mais adiantado”, escreve Freyre.

O autor pernambucano, citando Roquette-Pinto, conta que os bandeirantes se depararam no século 18 com quilombos onde os negros haviam ensinado a língua portuguesa aos cafuzos que lá viviam e a fabricar tecidos, criar galinhas e plantar o algodão. “Todos os caborés(mestiço de negro e índio) de maior idade ‘sabiam alguma doutrina cristã que aprenderam com os negros. Todos falavam português com a mesma inteligência dos pretos, de quem aprenderam’”.

Freyre questiona as teses pseudocientíficas em voga no Brasil e no mundo naquele momento sobre as características físicas e climáticas e sua influência sobre as raças, e se concentra em fatos históricos para fugir ao erro de se generalizar o africano como uma só figura de “peça da Guiné” ou “preto da Costa”.

“A verdade é que importaram-se para o Brasil, da área mais penetrada pelo Islamismo, negros maometanos de cultura superior não só à dos indígenas como à da grande maioria dos colonos brancos –portugueses e filhos de portugueses quase sem instrução nenhuma, analfabetos uns, semi-analfabetos na maior parte. Gente que quando tinha de escrever uma carta ou de fazer uma conta era pela mão do padre-mestre ou pela cabeça do caixeiro. Quase que só sabiam lançar no papel o jamegão; e este mesmo em letra troncha. Letra de menino aprendendo a escrever”.

Importaram-se para o Brasil negros maometanos de cultura superior não só à dos indígenas como à da grande maioria dos colonos brancos, portugueses e filhos de portugueses quase sem instrução, analfabetos uns, semi-analfabetos na maior parte.

Ele cita o abade Étienne Ignace Brazil, em seu trabalho de 1909 sobre a revolta dos Malês na Bahia, para quem este levante, em 1835, foi motivado também pela opressão de uma cultura adiantada, a dos negros, por outra, menos nobre, a dos brancos. O chefe da polícia da província da Bahia, Francisco Gonçalves Martins, impressionado com tantos escritos feitos por escravos, salientou em seu relatório que quase todos os envolvidos sabiam ler e escrever em caracteres desconhecidos que “se assemelham ao árabe”. “É que nas senzalas da Bahia de 1835 havia talvez maior número de gente sabendo ler e escrever do que no alto das casas-grandes”, acrescenta Freyre. Não é exagero. Segundo o censo de 1872, 79,44% da população livre da Bahia era analfabeta.

MANUSCRITO EM ÁRABE DA REVOLTA DOS MALÊS EM 1835

“Antônio, escravo Hauçá, pescador, disse que sabia escrever em árabe, mas só escrevia ‘orações segundo o cisma de sua terra’. Ou seja, não escrevia coisas subversivas, políticas, só orações. Acrescentou que ‘quando pequeno em sua terra andava na escola’. O escravo nagô Gaspar, preso com grande quantidade de escritos árabes, amuletos, um tessubá (o rosário malê) etc., disse ter sido ele autor dos escritos, e que aprendera o árabe em sua terra. Ele leu trechos do que havia escrito, embora alegasse não saber traduzir para o português. Observamos em todas essas declarações as lembranças de uma educação muçulmana na África, às vezes lembranças de quando eram ainda crianças”, disse o historiadorJoão José Reis, da UFBA, sobre participantes da revolta.

Um dos pontos que Gilberto Freyre questiona é o fato de os historiadores do século 19, influenciados por Spix e Martius, limitarem a procedência de escravos ao grupo banto, quando veio para cá, afirma, “o melhor da cultura negra da África”, inclusive elementos da elite. Estas teorias equivocadas reforçaram a concepção que ainda perdura, difundida pela direita, da “selvageria” dos negros escravizados. Foi o eugenista Nina Rodrigues, segundo o autor pernambucano, quem revelou a vinda de um número similar de sudaneses. As línguas dos negros, portanto, eram variadas: além do banto, falava-se gege, hauçá, nagô e iorubá.

Um dos pontos que Freyre questiona é o fato de os historiadores do século 19 limitarem a procedência de escravos ao grupo banto, quando veio para cá, afirma, “o melhor da cultura negra da África”, inclusive elementos da elite

Fisicamente também se diferenciavam. Havia os pretos “de raça branca” ou Fulas, “gente de cor cóbrea avermelhada e cabelos ondeados quase lisos”, fruto da mistura entre sangue hamítico e árabe. Os hauçás eram igualmente mestiços de hamitas e talvez de berberes. Os Mandingo, que vieram em várias levas, tinham sangue árabe e tuaregue. A cor variava de um pardo escuro, chocolate, até o “negro retinto” da Guiné. Alguns eram altíssimos e outros mais baixos e encorpados. Os narizes também diferiam, mais largos ou mais estreitos, assim como os cabelos, mais encarapinhados ou encaracolados e até lisos.

“Os escravos de cultura negra mais adiantada foram um elemento ativo, criador, e quase que se pode acrescentar nobre na colonização do Brasil; degradados apenas pela sua condição de escravos”, escreve Gilberto Freyre. “Longe de terem sido apenas animais de tração e operários de enxada, a serviço da agricultura, desempenharam uma função civilizadora.” E não só em relação a técnicas agrárias, diz o historiador: a mineração de ferro no Brasil foi aprendida dos africanos. “Seu é o mérito da primeira indústria de preparo direto de ferro, nas forjas rudimentares de Minas Gerais, fruto natural da ciência prática infusa nesses metalúrgicos natos que são os africanos”, diz João Pandiá Calógeras em Formação Histórica do Brasil (1930), citado por Freyre.

“Os primeiros fornos de mineração de ferro em Minas Gerais eram africanos. Os negros sabiam, tinham a tradição milenar de exploração de ouro, tanto do ouro de bateia dos rios quanto da escavação de minas e corredores subterrâneos. Boa parte da ourivesaria brasileira tem raízes africanas”, confirmou o historiador Alberto da Costa e Silva em 2015 em entrevista à BBC. “De maneira geral, quando se estuda a história do Brasil, o negro aparece como mão de obra cativa, com certas exceções de grandes figuras, mulatos ou negros que pontuam a nossa história. O negro não aparece como o que ele realmente foi, um criador, um povoador do Brasil, um introdutor de técnicas importantes de produção agrícola e de mineração do ouro.”

Longe de terem sido apenas animais de tração e operários de enxada, a serviço da agricultura, os negros desempenharam uma função civilizadora

“Muitas técnicas, senão a maior parte delas, usadas e indispensáveis nas várias etapas do processo mineratório –extração, remoção e beneficiamento– foram trazidas pelos escravos africanos, como bateia, canoas e carumbé. Cumpre lembrar que o processo de fundição do minério aurífero e de ferro, com utilização de fornalhas e foles, já era conhecido e usual no continente africano, como na África Central, hoje Zimbábue, antes de 1500. Nas palavras de Davidson Basil este fato ‘revela a capacidade inventiva dos africanos, pois o princípio básico destas fornalhas não diferia do dos fornos modernos’”, dizem as historiadoras Tania Maria Souza e Liana Reis nesta pesquisa sobre as técnicas mineratórias dos séculos 18 e 19.


ESPANHÓIS TRABALHANDO NA FORJA REAL NO SÉCULO 16 COM A AJUDA DE UM NEGRO

O etnólogo alemão Max Schmidt “observou no Mato Grosso que muitas das práticas ligadas à criação do gado eram de origem africana. Também os instrumentos de ferreiro. Teriam sido transmitidas aos mestiços de índios com brancos pelos escravos negros”. Os quilombolas tiveram a “ação civilizadora” de retransmitir a língua que aprenderam dos portugueses e as práticas agrícolas que trouxeram de sua terra natal, “quase sempre elevando a cultura das populações indígenas”.

Não veio da África, portanto, apenas gente para trabalhar na cozinha, em canaviais e cafezais, como aparece nas novelas de época. “Vieram-lhe da África ‘donas-de-casa’ para seus colonos sem mulher branca; técnicos para as minas; artífices em ferro; negros entendidos na criação de gado e na indústria pastoril; comerciantes de panos e sabão; mestres, sacerdotes e tiradores de reza maometanos”, assegura Gilberto Freyre.

O etnólogo alemão Max Schmidt “observou no Mato Grosso que muitas das práticas ligadas à criação do gado eram de origem africana

O escritor pernambucano divide os negros que vieram para cá em nove grupos distintos:

  1. hotentote, caracterizada pela criação de gado, pelo uso de bois no transporte de fardos, pela utilização de suas peles no vestuário, pelo largo consumo de sua carne etc.
  2. boximane, pobre, nômade, sem animal nenhum a serviço do homem a não ser o cachorro, sem organização agrária ou pastoril, mas grandes pintores;
  3. a área de gado da África oriental (banto), com agricultura, indústria pastoril, trabalhos em ferro e madeira;
  4. área do Congo (também de língua banto), economia agrícola, caça e pesca, domesticação da cabra, do porco, da galinha e do cachorro, mercados onde se reúnem para a venda de produtos agrícolas e de ferro, artistas ocupando um lugar de honra na comunidade;
  5. Horn Oriental, com atividade pastoril, utilização de diversos animais (vaca, carneiro, cabra, camelo), organização influenciada pelo islamismo;
  6. Sudão oriental, área ainda mais influenciada pela religião maometana, língua árabe, abundância de animais a serviço do homem, vestuário de panos semelhantes aos berberes;
  7. Sudão Ocidental, região de grandes monarquias ou reinos, sociedades secretas influenciadoras da vida política, agricultura, criação de gado e comércio, notáveis trabalhos artísticos em pedra, ferro, terracota e tecelagem;
  8. área do deserto (berbere);
  9. área egípcia.

A influência do islamismo veio para o Brasil junto com os escravos, “florescendo no escuro das senzalas”, diz Freyre, citando o abade Étienne. Vieram mestres e pregadores para ensinar a ler o Alcorão em árabe, e funcionaram aqui escolas e casas de oração maometanas. O ambiente que precedeu a revolta dos Malês em 1835 foi “de intenso ardor religioso entre os escravos. (…)Escravos lidos no Alcorão pregavam a religião do profeta, opondo-se à de Cristo, seguida pelos senhores brancos no alto das casas-grandes. Faziam propaganda contra a missa católica dizendo que era o mesmo que adorar pau; e aos rosários cristãos, com a cruz de Nosso Senhor, opunham os seus, de 50 centímetros de comprimento, noventa e nove contas de madeira, terminando com uma bola em vez da cruz”.



NEGRA SEPARANDO FIBRAS DE ALGODÃO NO SENEGAL NO SÉCULO 18. GRAVURA DE RENÉ CLAUDE GEOFFROY DE VILLENEUVE

O fato de terem vindo para cá muitas vezes nus tampouco significa que andassem sem roupa em suas nações de origem e sim que foram despidos de suas vestes ao serem escravizados. Tanto é que os trajes de influência árabe persistiram até hoje: de onde vêm os turbantes e os panos da costa usados pelas baianas de acarajé? Suas figas, pulseiras, braceletes, colares? Os Malês, por exemplo, embora os negros andassem de peito nu na Salvador da época, saíram para sua revolta vestidos com túnicas tipicamente muçulmanas.

Se muitos negros vinham para o Brasil sabendo ler e escrever, a desigualdade educacional que ainda existe foi legada a seus descendentes pelas leis discriminatórias do império. A Constituição de 1824, por não considerar os escravos “cidadãos”, lhes negava o acesso à instrução pública. Em 1854, o Regulamento da Instrução Primária e Secundária no Município da Corte só permitia o acesso às escolas à população livre e vacinada, não portadora de moléstias contagiosas. Para manter os negros sob o jugo dos brancos, os escravos eram expressamente proibidos de estudar nas escolas públicas.

São estas distinções feitas já em cativeiro e não por uma origem intelectualmente “inferior” que explicam a desvantagem histórica dos negros em relação aos brancos. E é esta desvantagem que a política de cotas adotada durante os governos Lula e Dilma veio com a intenção de corrigir. Um povo sem instrução é um povo fácil de manipular. Será um resquício do escravagismo o ódio de nossa elite às cotas?

“Nas senzalas da BA de 1835 havia mais gente sabendo ler que nas casas-grandes”

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