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Confusões globais

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Wladimir Pomar – Ao lado das con­fu­sões a res­peito da crise ca­pi­ta­lista e da pre­tensa con­fron­tação entre as cor­po­ra­ções fi­nan­ceiras “mul­ti­na­ci­o­nais” e “trans­na­ci­o­nais” como con­tra­dição prin­cipal deste mo­mento his­tó­rico, há ou­tras con­fu­sões ron­dando o mundo. Como exemplo, podem-se citar as que dizem res­peito ao en­fra­que­ci­mento da uni­po­la­ri­dade norte-ame­ri­cana, à vi­a­bi­li­dade ou não da re­versão da ten­dência de queda da taxa de lucro do ca­pital através do “na­ci­o­na­lismo in­dus­tri­a­lista”, e ao papel da “mul­ti­po­la­ri­dade”.

É ver­dade que as “fis­suras da glo­ba­li­zação ca­pi­ta­lista”, que al­guns re­duzem ao “glo­ba­lismo ne­o­li­beral”, são cada vez mais evi­dentes, fa­zendo crescer a “in­se­gu­rança” do sis­tema ca­pi­ta­lista. Al­guns até mesmo su­põem inu­si­tado que, dentro da nação ca­pi­ta­lista he­gemô­nica, os EUA, haja cada vez menos oferta de tra­balho e sejam ex­cluídas fra­ções do pró­prio ca­pital fi­nan­ceiro. De­duzem que isso de­sem­boca no des­gaste da glo­ba­li­zação e, in­clu­sive, do ca­pi­ta­lismo como sis­tema. Por­tanto, tarde ou cedo, a eco­nomia global ten­deria a uma re-re­gu­lação a nível mun­dial, com mu­danças em pro­fun­di­dade, em meio a tem­pes­tades que po­riam tudo de ca­beça para baixo.

Por isso mesmo é im­pres­si­o­nante que a eleição de Trump seja con­si­de­rada um “motim po­pular elei­toral” e “uma das in­su­bor­di­na­ções po­lí­ticas mais es­pe­ta­cu­lares”. Se­quer há atenção ao fato de que Trump teve 3 mi­lhões de votos a menos do que os da can­di­data der­ro­tada, co­lo­cando a nu a na­tu­reza eli­tista e cor­po­ra­tiva do sis­tema elei­toral da “de­mo­cracia ame­ri­cana”. Também é im­pres­si­o­nante que tal “eleição” seja con­si­de­rada, além de um sinal de apro­fun­da­mento da crise, uma “im­pul­si­o­na­dora do co­lapso da he­ge­monia ne­o­li­beral”, tendo como “alvo comum” “re­chaçar a glo­ba­li­zação das grandes cor­po­ra­ções glo­bais, o ne­o­li­be­ra­lismo e o es­ta­blish­ment po­lí­tico que os res­palda”.

Em ou­tras pa­la­vras, a glo­ba­li­zação ca­pi­ta­lista é vista por al­guns apenas como “ne­o­li­beral” e “de­sin­dus­tri­a­li­zante”. Deixam de lado seu viés “in­dus­tri­a­li­zante” global e fazem com que o sis­tema cor­po­ra­tivo fi­nan­ceiro apa­reça como to­tal­mente des­vin­cu­lado dos sis­temas de pro­dução in­dus­trial e agrí­cola e de cir­cu­lação das mer­ca­do­rias. Es­quecem que já faz tempo que o sis­tema fi­nan­ceiro subs­ti­tuiu os se­tores in­dus­trial e co­mer­cial como fração he­gemô­nica do ca­pital, sem nunca deixar de ser o or­ga­ni­zador, re­gu­lador e di­ri­gente das de­mais fra­ções do sis­tema ca­pi­ta­lista como um todo.

A partir da crise dos anos 1970, o pro­blema chave desse sis­tema, co­man­dado pela fração fi­nan­ceira e tendo como epi­centro os países de­sen­vol­vidos, passou a ser o nível de de­sen­vol­vi­mento ci­en­tí­fico e tec­no­ló­gico, ou de pro­du­ti­vi­dade, al­can­çado por ele. Por um lado, tende a con­cen­trar e cen­tra­lizar o ca­pital ao má­ximo, des­car­tando a uti­li­zação de força de tra­balho. Por outro, agrava a ten­dência de queda da taxa de lucro e torna cada vez mais des­tru­tivas e de­ses­ta­bi­li­za­doras suas crises cí­clicas.

Nessas con­di­ções, mesmo que o ca­pital dos países avan­çados só hou­vesse glo­ba­li­zado a po­lí­tica ne­o­li­beral de ex­por­tação de ca­pi­tais fi­nan­ceiros es­pe­cu­la­tivos, que des­ca­pi­ta­li­zaram e de­sin­dus­tri­a­li­zaram os países que se su­bor­di­naram ao Con­senso de Washington (como foi o caso do Brasil), a cen­tra­li­zação do ca­pital em poucas mãos e o de­sem­prego es­tru­tural nos países cen­trais, assim como os tre­mores de crises glo­bais, con­ti­nu­a­riam avan­çando. Tais pro­blemas estão re­la­ci­o­nados à ele­vação da pro­du­ti­vi­dade e à cres­cente ex­plo­ração da mais-valia re­la­tiva criada pela força de tra­balho de­cres­cente. Nesse sen­tido, não é es­tranho que a con­cor­rência ca­pi­ta­lista tenha se acen­tuado e que par­celas das fra­ções in­dus­triais, co­mer­ciais e fi­nan­ceiras não só te­nham sido en­go­lidas por ou­tras que se or­ga­ni­zaram em cor­po­ra­ções mul­ti­na­ci­o­nais e trans­na­ci­o­nais.

A ver­da­deira no­vi­dade nesse pro­cesso avas­sa­lador de con­cen­tração e cen­tra­li­zação in­terna e de glo­ba­li­zação ex­terna do ca­pital, pre­visto por Marx em O Ca­pital, con­siste em que os Es­tados de di­versos países atra­sados em seu de­sen­vol­vi­mento ca­pi­ta­lista te­nham de­ci­dido in­dus­tri­a­lizar-se, apro­vei­tando-se da busca in­ces­sante do ca­pital em deter a queda da taxa de lucro através da ex­plo­ração de força de tra­balho mais ba­rata.

Tal ex­plo­ração, por outro lado, só é pos­sível com a ex­por­tação de ca­pi­tais na forma de plantas in­dus­triais seg­men­tadas ou com­pletas, e é isso que está na origem da de­sin­dus­tri­a­li­zação e da ace­le­ração do de­sem­prego dos países ca­pi­ta­listas cen­trais, mais in­ten­sa­mente nos EUA e mais mo­de­ra­da­mente nos eu­ro­peus, mesmo antes da crise global de 2008.

Con­tra­di­to­ri­a­mente, aquela pos­si­bi­li­dade também está na origem da in­dus­tri­a­li­zação ace­le­rada da China, Índia, Vi­etnã e ou­tros países pe­ri­fé­ricos. Por­tanto, bem vistas as coisas, a glo­ba­li­zação do ca­pital contém tanto o as­pecto ne­o­li­beral, de des­monte das fi­nanças e dos par­ques in­dus­triais de al­guns países re­tar­da­tá­rios, quanto os as­pectos de­mo­crá­tico li­beral e/ou so­ci­a­lista de mer­cado de ou­tros países re­tar­da­tá­rios, in­ten­si­fi­cando a con­cor­rência econô­mica e co­mer­cial global, des­mon­tando a uni­po­la­ri­dade norte-ame­ri­cana e in­ten­si­fi­cando a mul­ti­po­la­ri­dade. Que a he­ge­monia fi­nan­ceira tenha con­tri­buído para levar o mundo a essa si­tu­ação faz parte da na­tu­reza con­tra­di­tória do de­sen­vol­vi­mento do pró­prio ca­pital.

Assim, a crise global ir­rom­pida em 2008, que con­tinua sem so­lução e atinge in­dis­tin­ta­mente países de­sen­vol­vidos, países em de­sen­vol­vi­mento e países em de­ses­tru­tu­ração, apenas traz à tona todas as novas con­tra­di­ções do de­sen­vol­vi­mento do ca­pi­ta­lismo como sis­tema. E, como não po­deria deixar de ser, gera re­a­ções so­ciais e po­lí­ticas di­fe­ren­ci­adas.

Os votos em Trump e Le Pen, por exemplo, ex­pres­saram uma re­ação con­trária à crise e à forma de ca­pi­ta­lismo de­sin­dus­tri­a­li­zante in­terno e in­dus­tri­a­li­zante ex­terno, tendo como so­lução o “ca­pi­ta­lismo na­ci­o­na­lista e in­dus­tri­a­lista”. No caso dos EUA, acre­ditam que tal forma de ca­pi­ta­lismo tem his­tória e base so­cial na luta contra o an­tigo im­pe­ri­a­lismo bri­tâ­nico e seu sis­tema fi­nan­ceiro. Mas não se dão conta de que isso sig­ni­fica passar um borrão sobre a his­tória do de­sen­vol­vi­mento do modo de pro­dução, cir­cu­lação e dis­tri­buição ca­pi­ta­lista e so­nhar com a volta à in­dús­tria for­dista e ao re­nas­ci­mento da falsa po­lí­tica ex­te­rior iso­la­ci­o­nista.

Par­celas sig­ni­fi­ca­tivas dos tra­ba­lha­dores e das classes mé­dias dos países ca­pi­ta­listas cen­trais têm se re­vol­tado contra seu de­sem­prego e sua queda de pa­drão de vida, re­sul­tantes dos mo­vi­mentos das “fi­nanças glo­bais” e das po­lí­ticas in­ternas ne­o­li­be­rais. Al­gumas dessas par­celas, in­cluindo cor­rentes dos mo­vi­mentos so­ciais, nu­triram ilu­sões quanto à pos­si­bi­li­dade da dos ca­pi­tais cen­trais glo­ba­li­zados ele­varem seu pa­drão de vida, mesmo à custa do em­po­bre­ci­mento dos povos pe­ri­fé­ricos. Em certo sen­tido, elas se ali­aram às po­lí­ticas dú­plices do ca­pital fi­nan­ceiro, in­dus­trial e co­mer­cial glo­ba­li­zado.

No en­tanto, nos Es­tados Unidos e de­mais países cen­trais, os re­sul­tados da glo­ba­li­zação con­sis­tiram na con­cen­tração e cen­tra­li­zação do ca­pital em 1% de suas po­pu­la­ções, em con­traste com a de­vas­tação da in­dús­tria ma­nu­fa­tu­reira, a queda dos sa­lá­rios reais, o au­mento da pre­ca­ri­e­dade la­boral e do de­sem­prego es­tru­tural, o as­salto à se­gu­ri­dade so­cial e a de­vas­tação do que antes era a classe média, seja do Ame­rican Way of Life nos EUA ou do Es­tado de Bem-Estar So­cial eu­ropeu.

Em vista disso, uma par­cela das mai­o­rias ne­ga­ti­va­mente afe­tadas tende a acre­ditar que a so­lução con­siste em voltar atrás, su­pondo que Trump está contra Wall Street. Outra par­cela, em sen­tido con­trário, crê que Wall Street está “contra” Trump porque ele dei­xaria o sis­tema ca­pi­ta­lista em es­tado de de­bi­li­dade má­xima. E al­guns torcem para que Trump leve a cabo sua po­lí­tica na­ci­o­na­lista in­dus­tri­a­lista porque isto seria um “sin­toma de de­com­po­sição” ca­pi­ta­lista que po­deria levar à “ten­tação” de cons­truir o novo, em lugar do “glo­ba­lismo fi­nan­ceiro im­pe­rial”, num mo­mento de crise e de con­fron­tação es­tru­tural inter-im­pe­ri­a­lista.

Há ainda os que en­xergam que, no li­mite, o “na­ci­o­na­lismo in­dus­tri­a­lista an­ti­o­li­gár­quico” de Trump tende a ser re­du­zido a um “con­ti­nen­ta­lismo mi­li­ta­rista”, ba­seado no “poder do com­plexo in­dus­trial mi­litar” e em sua “ameaça de guerra ter­mo­nu­clear”. Mas acre­ditam que tal “con­ti­nen­ta­lismo” seria in­capaz de dar so­lução aos pro­blemas do de­clínio norte-ame­ri­cano porque ter­mi­naria por ser con­tido ou sub­su­mido pelo “con­ti­nen­ta­lismo fi­nan­ceiro mi­li­ta­rista”, que con­du­ziria à frag­men­tação de ambos.

A pos­sível guerra mun­dial que tal “frag­men­tação” po­deria pro­duzir não pa­rece estar no ho­ri­zonte desses pen­sa­dores. Mesmo porque eles acre­ditam que, em tais con­di­ções, qual­quer “na­ci­o­na­lismo in­dus­tri­a­lista an­ti­o­li­gár­quico”, de Trump ou de países cen­trais como a Ale­manha e a França, seria ne­ces­sário para o de­sen­vol­vi­mento do “uni­ver­sa­lismo mul­ti­polar in­dus­tri­a­lista” dos Brics e do “Hu­ma­nismo Ecu­mê­nico-In­ter­re­li­gioso” (sic), mas não po­deria ser “seu motor”, nem seus “países cen­trais”.

Com isso, em lugar de es­cla­re­cerem as pos­si­bi­li­dades reais do “na­ci­o­na­lismo in­dus­tri­a­lista an­ti­o­li­gár­quico” re­solver os prin­ci­pais pro­blemas do atual de­sen­vol­vi­mento ca­pi­ta­lista e su­perar sua pre­sente crise, assim como as pos­si­bi­li­dades de de­sen­vol­vi­mento de al­ter­na­tivas ca­pi­ta­listas e so­ci­a­listas mul­ti­po­lares, ou mesmo de su­pe­ração do ca­pi­ta­lismo, essa mi­ríade de con­fu­sões torna o quadro global ainda mais ne­bu­loso, exi­gindo pa­ci­ência e per­sis­tência na aná­lise crí­tica dos em­bates em curso, in­cluindo os Brics.

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