Internacional

Colômbia: um estado débil e dois países fortes

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RAUL ZIBECHI – As duas Colômbias que se chocaram no último dia 2 de outubro encarnam mundos que se temem. Uma realidade que antecede, em muito, o posicionamento ideológico e vem justificar distâncias culturais sobre as que tomam forma em diferenças políticas. Esses dois mundos puderam mais do que as longas negociações entre Governo e FARC em Havana, sobrevoaram o apoio internacional massivo aos acordos de paz e desbarataram a mais séria e firme tentativa de superar uma guerra que leva 52 anos.

O “Sim” tinha tudo a seu favor, com o respaldo que havia recebido tanto do Governo quanto da oposição de esquerda moderada, agrupada no Polo Democrático, e até mesmo dos governos da região e dos organismos financeiros internacionais, passando por diversos movimentos sociais. A própria diretora geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Christine Lagarde, havia prometido em Cartagena, durante a assinatura dos acordos de paz entre governo e guerrilha, abrir uma linha de crédito especial para a Colômbia de 11 bilhões de dólares no caso de uma vitória do “Sim”.

Todo o mundo acreditou na veracidade das pesquisas que prognosticavam até 60% de votos favoráveis aos acordos de paz. Mas ganharam os partidários do “Não”, com o Centro Democrático de Álvaro Uribe, ex-presidente e ex-aliado do atual presidente Juan Manuel Santos, à cabeça.

Uribe pode ser considerado o principal vencedor da consulta. Contudo, não pode ser visto como fator determinante da derrota do “Sim”. A habilidade do ex-presidente consistiu em captar a bronca e o rancor da metade dos colombianos com as FARC, uma antipatia que seu governo (2002-2010) contribuiu como poucos a potencializar, aliando-se com as forças armadas e uma parte substancial do empresariado, em particular criadores de gado – e também com paramilitares e narcotraficantes.

Explicar uma surpresa

Uma parte considerável das análises sobre o resultado do referendo pôs a ênfase em questões pontuais vinculadas a acertos e erros da campanha. “Enquanto a campanha do Não seguiu de forma unificada as diretrizes do uribismo, a do Sim foi mais dispersa”, sustentou um dos jornais mais prestigiados do país (El Espectador, 4 de outubro de 2016). O diário aludia à multiplicidade de apoios que recebeu o Sim, e afirmou que se todos os que apoiavam a paz tivessem feito uma campanha unificada os resultados seriam diferentes.

Entre os argumentos menos sólidos apareceu o que atribui a passagem do furacão Matthew pela costa do Caribe à abstenção de mais de 100 mil eleitores na região mais favorável à paz. As mesmas premissas defendem aqueles que se queixam da baixa participação, de não mais de 37%. Devemos recordar que as eleições na Colômbia, desde sempre, se caracterizaram pela baixa participação. Em todo caso, deveriam pensar nas razões pelas quais a dirigência política possui tão mirrada credibilidade.

A publicação La Silla Vacia (“A cadeira vazia”, nome que faz referência à ausência de Manuel Marulanda em El Caguán, durante as negociações de paz dos anos 90), uma das mais sólidas análises da política colombiana, esgrimiu cinco razões que explicariam o fracasso do “Sim”. A primeira consiste em haver subestimado a rejeição da população às FARC, que Uribe soube capitalizar ao lançar a consigna de que o Sim equivalia a dizer que “ser gatuno tem seu preço a pagar”. Durante a campanha o ex-presidente exibiu anúncios simulando cartazes a favor de “Timochenko presidente”, aludindo que o Sim levaria longe o atual líder das FARC, até a presidência da República.

A segunda razão seria haver subestimado a rejeição que Santos suscita. Com efeito, o governo tem menos de 30% de aprovação, pelo qual o presidente “se transformou desde o início em um lastro para o plebiscito” (La Silla Vacia, 3 de outubro de 2016). Logo destaca que os partidários do Não tiveram a habilidade de não se opor à paz, mas apostar em um “acordo melhor”.

A publicação atribui às FARC e ao governo atitudes de soberba. Ou seja, o presidente exibiu um estilo caudilhista e autoritário, enquanto a guerrilha mostrou tudo, menos humildade. Em Cartagena, durante a cerimônia da assinatura dos acordos de paz da semana passada, Timochenko “saiu do cenário como uma estrela de rock”, exibindo sua “superioridade moral” que causou desgosto a muitos, observou a revista. Os dirigentes da guerrilha nunca entenderam que se tratava de conquistar a vontade dessa outra metade do país, que só a conhece através da publicidade negativa de seus inimigos, agregou.

Por último, o semanário aludiu ao proverbial conservadorismo dos colombianos: católicos e homofóbicos. Uribe fez chamados para resgatar a “família tradicional”, enquanto que o procurador Alejandro Ordóñez assegurou que os acordos de Havana pretendiam mudar instituições sagradas, como o matrimônio. O governo não pôde convencer a Igreja Católica, em uma reunião que manteve com várias centenas de pastores cristãos, de que as denúncias não eram verdadeiras (Semana, 2 de outubro de 2016).

Campo e cidade

O certo é que a sociedade colombiana vive há décadas em profunda e crescente polarização que teve seu ponto de partida no assassinato do líder liberal Jorge Eliécer Gaitán, em 9 de abril de 1948, início de uma guerra civil entre liberais e conservadores que criou as condições para o nascimento das FARC nos anos 60. Mas essa guerra não afetou a todos os colombianos por igual, mas em primeiro lugar os moradores das zonas rurais.

O Grupo Memória Histórica denunciou que o conflito causou a morte de 220 mil pessoas entre 1958 e 2012, das quais mais de 80% foram civis. Em paralelo, o Registro Único de Vítimas indicou que até março de 2013 haviam sido registrados 25 mil desaparecidos e quase 6 milhões de desabrigados, em um país de 48 milhões de habitantes. Desaparecidos e desabrigados provêm das áreas rurais que votaram majoritariamente pela paz, como Chocó, Cauca, Guaviare, Nariño, Caquetá, Vaupés, Meta e Putumayo, onde o Sim se impôs com certa folga. Por isso se diz que as vítimas da guerra votaram afirmativamente.

Ao contrário, nas grandes cidades e zonas urbanas triunfou o Não. Como assinala a jornalista Constanza Vieira, “A Colômbia exibiu seu peculiar transtorno de dupla personalidade, que faz que se fale de dois países: o mais desenvolvido, predominante nos Andes, que votou majoritariamente pelo Não. E o país da periferia, com menor densidade populacional, votou pelo Sim, junto com Bogotá, uns 8 milhões de habitantes” (lps, 3 de outubro de 2016).

O interessante, e verdadeiramente complexo, é que o país “moderno” deu as costas para a paz e se aliou com o ultradireitista Uribe, salvo Bogotá, que experimentou um processo de democratização após duas décadas de governos progressistas.

As razões desta suposta discrepância entre modernidade e atitude política conservadora seriam basicamente duas. A primeira se relaciona com os cenários de guerra. Para os citadinos o conflito é algo que acontece longe da sua vida cotidiana, entre contendentes com os quais não têm o menor contato. Esta população não só não sofre a guerra, mas ainda “se informa” por meios de comunicação sempre controlados por uma aliança entre o Estado militarista e empresários amigos dos militares.

Contudo, nas cidades se respira prosperidade, por um lado, e pobreza em outro extremo. Mas em um país como a Colômbia uma e outra não se olham, muito menos se relacionam. Há os 60%, maioria de colombianos que não vota e parece pertencer à metade mais pobre da população, o que explica o pequeno peso de uma esquerda que, ademais, há tempos está desconectada da realidade.

A segunda explicação tem a ver como peso das “igrejas de garagem”, que proliferaram a tal ponto nos últimos 20 anos que o governo tentou controlá-las através de um registro. De acordo com este “cadastro”, há três anos, data do último controle, havia na Colômbia 5071 igrejas não católicas anotadas pelo Ministério do Interior (Caracol, 17 de janeiro de 2014). A cada dia se apresentam 3 novas igrejas, além das que funcionam de forma “ilegal”.

Em sua imensa maioria se tratam de pequenos templos evangélicos ou pentecostais que atendem a dezenas de pessoas. Provavelmente têm uma incidência similar a das igrejas neopentescostais no Brasil, que contam com poderosos meios de comunicação, grandes templos e uma numerosa bancada de deputados e senadores. Mas na Colômbia o fenômeno não conta com estudos que permitam conhecer a quantidade de fieis que abarcam, nem suas características. Se sabe que ingressaram nessas igrejas informais, há apenas 3 anos, cerca de 10 bilhões de pesos colombianos, cinco vezes mais que o orçamento estatal para educação (Dinero.com, 24 de setembro de 2013).

Essas milhares de igrejas se mostraram contrárias aos acordos de paz. Uma das escassas investigações acadêmicas sobre este fenômeno, realizada pelo jornalista Ricardo Sarmiento, divide as igrejas em três categorias: as locais ou “de garagem”, com sede única, quase sempre pentecostais e que influenciam pessoas das redondezas de onde estão instaladas; as que têm várias sedes em Bogotá e em diferentes regiões do país; e as “megaigrejas”, que pertencem a congregações internacionais.

Este universo em expansão geométrica tem uma poderosa influência sobre o comportamento dos setores populares. Fundamentalmente, as pequenas “igrejas de garagem”, que estão radicadas em bairros periféricos, funcionam em casas de família e encarnam um “protestantismo informal que cresce sem necessidade de apoio econômico de fora”, segundo afirma em um informe o sociólogo William Beltrán. Podemos considerá-las como “uma forma de resistência social” dos mais pobres, porque “propiciam espaços de organização comunitária para desabrigados e marginalizados que encontram no seio dessas comunidades a possibilidade de reestruturar o sentido de sua existência e sua identidade”.

O outro refúgio dos pobres são as Forças Armadas, que captam jovens em busca de um sentido a suas vidas e um salário seguro, como pode ser constatado em uma volta por qualquer cidade colombiana. “Se o presidente Santos, de verdade, quer fazer a paz com todo o país deve oferecer aos militares, e a Uribe, e aos interesses e medos que ele representa, um acordo que os contemple”, escrevia bem antes do referendo o jornalista Héctor Abad Faciolince (El Espectador, 30 de julho de 2016).

“Temo que aqui seguirá a guerra se alguns militares e civis recebem mais penas e vergonhas que a guerrilha. Se Santos define um trato especial para militares e civis implicados no conflito (e só ele tem o poder de fazer isto), acredito que até o Centro Democrático votaria pelo Sim no plebiscito. Aqui há certa direita que não descansará até ver presa ou morta a cúpula guerrilheira; e há uma certa esquerda que não estará contente até ver Uribe e seus amigos presos. Tanto a essa direita quanto a essa esquerda é preciso desarmá-las com um perdão especial”, concluiu Abad.

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