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Águas agitadas para o barco de São Pedro

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REVISTA IHU ON-LINE – Francisco está determinado a aposentar-se no dia em que sentir suas forças faltarem; enquanto isso, os seus apoiadores na Cúria Romana e nas Igrejas locais em todo o mundo estão encorajando-o a ficar o maior tempo possível. Sua visão da Igreja como uma comunidade, não como uma monarquia, está transformando as conferências episcopais e o Colégio dos Cardeais; suas várias reformas no comando da Igreja são impulsos e iniciativas que precisam de tempo para ter efeitos em cascata e para se estabilizarem.

Mas mais do que mudanças de estruturas ou direito canônico ou até mesmo de pessoas, Francisco está tentando promover uma nova mentalidade e uma nova atitude entre os fiéis. O papa que escolheu o nome do Pobrezinho de Deus, São Francisco de Assis, apela aos católicos para que sejam testemunhas ativas do Evangelho, não apenas crentes passivos. O que ele mais precisa para permitir que a nova forma de pensar, de posicionar-se e de crescer, é tempo. E o tempo – disso estão bem cientes tanto seus aliados como seus adversários – está se exaurindo.

É uma tarefa difícil e exigente dirigir uma comunidade de 1,3 milhões de homens e mulheres. Durante a sua recente viagem a Mianmar, Francisco precisou ter um dia inteiro de descanso em Yangon, Myamar, interrompido apenas por um encontro de 15 minutos com o chefe do exército. No mês passado, o Papa argentino comemorou seu 81º aniversário. Aos 82 anos, o Papa Bento planejava se aposentar; aos 83 deixava o palácio apostólico…

No entanto, Francisco está mais dinâmico do que nunca. O Sínodo sobre a Juventude em outubro deste ano é um dos compromissos mais importantes da sua agenda. Já está planejando uma viagem para a Índia. Em maio, receberá em Roma o Patriarca ecumênico Bartolomeu I. Em agosto haverá uma curta viagem para a Irlanda. E, olhando mais adiante, perfila-se é o grande tema da China: as negociações com Pequim procedem “lenta e pacientemente”, como apontado pelo Papa. A segunda metade do pontificado está começando.

Olhando para trás, pode-se dizer que alguns resultados notáveis foram alcançados. A reforma da Cúria continua, e o governo central da Igreja tornou-se, em certo sentido, um pouco mais restrito. Esse foi um dos maiores problemas que os cardeais tinham apontado durante suas reuniões oficiais pré-conclave antes da eleição de Francisco. Seis Pontifícios Conselhos que existiam antes (Leigos, Família, Justiça e Paz, Cor Unum, Migrantes, Operadores sanitários) foram fundidos em dois Dicastérios: um para os Leigos, família e vida, sob a orientação do Cardeal Kevin Farrell e um para a Promoção do Desenvolvimento humano integral, sob o Cardeal Peter Turkson. Isso significa uma Cúria Romana com menos “príncipes” de manto púrpuro.

Enquanto isso começou uma cautelosa descentralização. Os bispos locais agora têm o direito, sob certas circunstâncias, de declarar nulo e sem efeito um casamento sem a aprovação de Roma. As Conferências Episcopais têm o direito de revisar os textos litúrgicos sem esperar a aprovação formal (recognitio) de Roma: basta uma ratificação (recognitio). E, na esteira do Jubileu da Misericórdia, os sacerdotes de todo o mundo – não apenas aqueles escolhidos pelos bispos – estão agora autorizados a conceder a absolvição aos que confessam ter feito aborto, incluindo os sacerdotes cismáticos da Fraternidade de São Pio X.

Algumas mulheres – embora ainda muito poucas – têm tido acesso a posições mais altas na Cúria. Gabriella Gambino, professora de bioética, e a juíza Linfa Ghison foram nomeadas em novembro passado subsecretárias do novo Dicastérios para os Leigos, família e vida. A acadêmica e ex-embaixadora EUA junto a Santa Sé, Mary Ann Glendon, é membro do Conselho de Administração do Banco do Vaticano. A socióloga britânica Margaret Archer é presidente da Pontifícia Academia das Ciências Sociais. A comissão sobre as mulheres diaconisas tem “silenciosamente” enviado suas conclusões ao Papa, que está atualmente examinando o assunto.

Francisco também atuou para atender os desejos dos cardeais eleitores em relação ao Instituto para as Obras de Religião (IOR), mais conhecido como o Banco do Vaticano. Cada uma das suas cerca de 18.000 contas foram examinadas por uma agência independente. Todas as chamadas “contas externas” controladas por políticos ou empresários que não tinham nada a ver com a atividade da Igreja foram bloqueadas ou fechadas.

Moneyval, a agência do Conselho da Europa contra a lavagem de dinheiro, concluiu que o Vaticano agora superou suas fraquezas e inseriu-se em um quadro de legalidade e regulamentação. A Santa Sé adotou a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção; e o Vaticano finalmente assinou acordos de cooperação com vários países para reprimir conjuntamente os crimes financeiros.

O papado de Francisco trouxe uma nova atmosfera para a vida pastoral das Igrejas locais. A Igreja afrouxou sua obsessão secular em questões de moralidade sexual. A pílula anticoncepcional, a convivência antes do casamento, o divórcio, as relações homossexuais não pairam mais sobre a paisagem como princípios não-negociáveis. Os párocos sentem-se aliviados: já não são mais obrigados a sustentar situações pastorais impossíveis.

A Igreja não é uma alfândega, declarou Francisco, mas um hospital de campanha. A Eucaristia não é para os perfeitos, mas para os pecadores em busca do caminho certo. Suas palavras e suas ações têm animado a vida do povo de Deus ainda mais do que suas encíclicas e trouxeram a mensagem da misericórdia de Deus muito além dos confins da Igreja.

Quando se abre o segundo ato do papado de Francisco, no entanto, podemos ver como está sendo onerado por dificuldades e problemas. O ano passado trouxe um contragolpe em uma área sensível, o sistema financeiro do Vaticano. O Cardeal George Pell, Prefeito da Secretaria de Economia, apressadamente deixou Roma em junho para retornar à sua Austrália natal para enfrentar históricas alegações de abusos sexuais. Em dois meses, ele terá que comparecer em Melbourne para uma audiência que pode durar vários meses.

Em Roma, o “Ranger” (apelido de Pell, copyright do Papa Francisco) era conhecido por sua determinação implacável para lançar luz sobre os emaranhados feudais dos diversos balanços das despesas internas dos vários departamentos e múltiplas administrações do Vaticano. Tinha sido Pell a revelar que várias centenas de milhões de euros estavam “escondidas” nas contas da administração do Vaticano sem estarem registradas no balanço oficial da Santa Sé.

Pell era odiado pela burocracia da Cúria e seus barões. Ninguém está agora continuando seu trabalho. Não foi nomeado pelo papa nenhum vice-prefeito durante a ausência de Pell e ninguém em Roma aposta no retorno de Pell. Esse vazio não é um sinal positivo. Enquanto isso, o primeiro Auditor Geral na história do Estado do Vaticano, foi demitido. Alguém disse que havia “contratado uma empresa externa para investigar as atividades e a vida privada dos funcionários da Santa Sé”.

O fato de um profissional altamente respeitado ser dispensado de seu cargo gerencial sem ter sido tornada pública qualquer evidência, parece um passo para trás na batalha para a transparência nas finanças do Vaticano. Meses se passaram e também nesse caso, não foi anunciada nenhuma substituição. Depois, em novembro passado, o vice-diretor do Banco do Vaticano, Giulio Mattietti, foi demitido, novamente com uma explicação sumária. Esses também são sinais ruins.

Em outro âmbito problemático, a Pontifícia Comissão para a Proteção dos Menores não parece estar em sua melhor forma. Perdeu dois membros proeminentes, que eram os dois únicos sobreviventes de abusos sexuais por parte de padres: Marie Collins e Peter Saunders. Collins renunciou após ter acusado o cardeal Gerhard Müller (então ainda Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé) de “falta de cooperação”. Em 2015, o papa aceitou uma proposta feita pela comissão para instituir um tribunal especial que teria processado os bispos acusados de serem “negligentes” em casos de abuso sexual. No ano passado, verificou-se que o cardeal Müller – e outros na Cúria – tinham sabotado o projeto.

Não há dúvida sobre a política de “tolerância zero” de Francisco em casos de abusos sexuais pelo clero, mas também não há dúvida sobre a resistência passiva de muitas conferências episcopais em várias partes do mundo no que diz respeito a esta linha. Ainda não é aceito em todos os países que um bispo deva ser obrigado a comunicar às autoridades civis ocorrências de abusos sexuais por parte do clero.

Francisco, dirigindo-se pessoalmente à comissão de setembro do ano passado, prometeu que no futuro todo padre culpado de abuso sexual seria reduzido ao estado laico.

As avaliações sobre o papa argentino continuam a ser muito positivas, e não apenas entre os católicos. Bem além das fronteiras confessionais, Francisco é reconhecido como uma autoridade moral e um líder geopolítico.

Suas posições sobre a migração, os refugiados, a crescente desigualdade entre ricos e pobres, sobre o tráfico de seres humanos para fins sexuais e a “nova escravidão” que explora milhões de trabalhadores, e sua repetida ênfase na estreita relação entre a deterioração ambiental e a crescente injustiça, tiveram um grande impacto sobre o público.

Dentro da Igreja, no entanto, continua uma espécie de guerra civil. Os adversários dizem que Francisco é um comunista, feminista, populista, ou que está tão à mercê do espírito do mundo a ponto de ter dramaticamente afastado o sagrado do papado, traindo a tradição e a lei divina. Seria um erro considerar a Cúria Romana como o único centro de oposição. Certamente, o aparato da Cúria sente-se parcialmente frustrado e confuso, porque sente que sob Francisco está perdendo sua aura quase militar do chefe do estado maior do catolicismo. Mas a ampla resistência a Francisco tem raízes em muitas partes do mundo nas Igrejas locais.

“Nenhum papa nos últimos 100 anos teve que enfrentar tamanha oposição entre os bispos e o clero”, disse Andrea Riccardi, o historiador da Igreja e fundador da Comunidade de Santo Egídio.

Durante as duas sessões do Sínodo sobre a Família, em 2014 e em 2015, ficou claro que a maioria dos bispos – a maior parte deles escolhida nas últimas três décadas pelo Papa João Paulo II e Bento XVI por sua obediência incondicional a Roma – não estava preparada para apoiar uma estratégia de reforma clara. No final, os reformadores descobriram estar em minoria.

Há muitas razões para a resistência às reformas de Francisco. Alguns bispos são simplesmente fiéis conservadores em âmbito teológico, e outros estão ligados à tradição por uma preferência ao “sempre foi feito assim”; estão preocupados com as rápidas mudanças na sociedade e se sentem mais confiante em permanecer trilhando caminhos que já conhecem. A mesma coisa pode ser dito para o novo clero; os jovens sacerdotes são muitas vezes os mais rígidos em sua decisão de resistir às reformas de Francisco.

Juntos, esses bispos e padres criam uma espécie de pântano, dificultando o progresso do papa e atrasando o trabalho dos novos bispos que ele nomeia.

Em seu encontro anual de Natal com os membros da Cúria Romana, em 2016, Francisco lamentou as “resistências ocultas que nascem de corações amedrontados ou endurecidos que se alimentam de palavras vazias de espírito dissimulado de quem com palavras diz que está pronto para mudar, mas quer que tudo permaneça como está”. De forma ainda mais contundente, denunciava “também as resistências malévolas, que brotam de mentes distorcidas e se apresentam quando o demônio inspira más intenções (muitas vezes ‘sob pele de cordeiro’)”.

No mês passado, em sua reunião com a Cúria de 2017, falava da existência na Cúria de uma “desequilibrada e degenerada lógica dos complôs ou dos pequenos círculos”, um verdadeiro “câncer que leva à autorreferencialidade”. E mais ainda, ele enfatizava o perigo de traidores, de pessoas escolhidas para apoiar e implementar reformas que, em vez disso, “se deixam corromper pela ambição ou pela vaidade”. Suas duras palavras foram recebidas com uma carrancuda aparência de obediência.

Quanto à oposição radical para Francisco, a Cúria escolheu o caminho de uma imprudente escalada de hostilidade ao papa, usando a exortação pós-sinodal Amoris laetitia como plataforma. Foram organizadas petições ao Colégio dos Cardeais, os “dubia” (“dúvidas teológicas”) assinadas por quatro cardeais – Raymond Burke, Walter Brandmüller, Carlo Caffara e Joachim Meisner, os dois últimos já falecidos nesse meio tempo – um falso Osservatore Romano que zombava de Bergoglio, e panfletos de escárnio nos muros do centro de Roma, que foram vistos por milhares de turistas e romanos. Foi uma guerra implacável contra ele nos sites ultraconservadores da web.

O papa nunca concordou em receber os quatro cardeais dos “dubia”. Isso pode ter sido um erro: permitiu que seus críticos na Cúria dissessem que sua porta estava aberta para qualquer um – exceto para aqueles que ousam criticá-lo. E agora, a hostilidade, seja aberta ou oculta, está crescendo. O Cardeal Burke quer “corrigi-lo”. A última “correção filial”, originalmente assinada por 62estudiosos leigos e clérigos católicos acusa-o de liderar os católicos rumo à heresia. Um recente e-book, The Dictator Pope, ataca Bergoglio afirmando que governa uma “rede de mentiras, intrigas, espionagem, desconfiança e medo”.

É uma técnica que se assemelha à do Tea Party nos EUA. Aquele movimento não conseguiu derrubar Barack Obama, mas exerceu grande influência sobre as sucessivas eleições presidenciais.

Da mesma forma, os radicais anti-Francisco objetivam deslegitimar seu pontificado dia após dia, tornando impossível para o seu sucessor continuar a estratégia de reformas. Não haverá espaço para um Francisco II!

O sucesso da segunda parte do pontificado de Francisco vai se basear sobre o sucesso de suas reformas, incluindo os progressos na reformulação da hierarquia da Igreja e o resultado de manobras em torno da sucessão, que estão silenciosamente começando nos bastidores. Por esta razão, os seus apoiadores estão gentilmente incentivando o papa a lançar uma total reorganização da Cúria romana após a dispensa do cardeal Gerhard Ludwig Müller da Congregação para a Doutrina da Fé.

Francisco nunca gostou o sistema do spoil system, mas parece urgente que um grupo encarregado da reforma seja colocado no controle da Igreja, onde a metade das pessoas ainda pertence à era Ratzinger. O que é necessário agora, insistem seus partidários, é a nomeação de sua parte, em todas as posições-chave, de bispos e cardeais que realmente apoiem sua abordagem à doutrina e à tradição.

A tradição, disse Francisco para o estudioso francês de comunicações Dominique Wolton em 2016, não é algo imutável. É a doutrina que vai em frente… a essência não muda, mas cresce e se desenvolve”. E como cresce a tradição? “Cresce como uma pessoa”, ressaltava Francisco, “através do diálogo, que é como leite para o recém-nascido. Diálogo com o mundo que nos rodeia … Se não nos empenharmos no diálogo, não seremos capazes de crescer, continuaremos a ser pequenos, seremos anões.

Este novo ano será crucial para ver como Francisco conseguirá fazer avançar o barco de Pedro ao longo dessa rota.

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