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Unificação da resistência palestina: até quando?

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Luiz Eça – De­pois de duas ten­ta­tivas frus­tradas, o Hamas e o Fatah, por fim, as­si­naram um acordo de re­con­ci­li­ação.

Assim ter­mina uma du­a­li­dade de poder entre os mo­vi­mentos pa­les­tinos que en­fra­quecia a causa pela in­de­pen­dência do seu país. Agora, a luta dos pa­les­tinos po­derá ser mais efe­tiva.

In­fe­liz­mente, não foi este a ver­da­deira razão que levou os dois mo­vi­mentos a bus­carem uma uni­dade frente a Is­rael, unindo Gaza e a Pa­les­tina ocu­pada (Cis­jor­dânia) sob um só go­verno.

Ra­zões po­lí­ticas cir­cuns­tan­ciais foram o leit motiv que le­varam Hamas e Fatah a es­que­cerem seus agravos, na busca de uma reu­ni­fi­cação que atendia aos in­te­resses par­ti­dá­rios (caso do Hamas) e par­ti­cu­lares (caso de Abbas, chefe do Fatah).

Mo­tivos prag­má­ticos

Ad­mi­nis­trar Gaza tor­nava-se um peso in­su­por­tável para o Hamas. De­pois de vencer as elei­ções pa­les­tinas de 2007, ele ex­pulsou os mem­bros do Fatah da re­gião. Is­rael, os EUA e o Reino Unido não acei­taram a vi­tória do Hamas, que Te­la­vive con­si­dera ter­ro­rista, apesar da afir­mação ofi­cial dos lí­deres do mo­vi­mento de terem aban­do­narem essas prá­ticas ile­gais.

Em con­sequência, Is­rael fe­chou sua fron­teira com Gaza, im­pe­dindo im­por­ta­ções, ex­por­ta­ções, vi­a­gens para tra­ta­mento mé­dico ou es­tudos, iso­lando a re­gião do mundo.

E os EUA e o Reino Unido eli­mi­naram seus sub­sí­dios, fun­da­men­tais para a po­pu­lação local.

Na se­mana pas­sada, Tony Blair – ex-pri­meiro-mi­nistro do Reino Unido – re­co­nheceu que er­rara ao apoiar a de­cisão do pre­si­dente Ge­orge W. Bush de cortar a ajuda e as re­la­ções econô­micas com o Hamas.

Se­gundo Blair, o certo seria ne­go­ciar com o Hamas para tentar con­vencê-lo a re­co­nhecer Is­rael e re­nun­ciar à vi­o­lência. Mas, “ob­vi­a­mente foi muito di­fícil, Is­rael se opôs bas­tante a isso (The Lobby fun­ci­onou)”.

Nos anos se­guintes a 2006, cons­tantes bom­bar­deios is­ra­e­lenses, es­pe­ci­al­mente nas três guerras contra Gaza, des­truíram a in­fra­es­tru­tura de ser­viços pú­blicos, além de hos­pi­tais, es­colas, mes­quitas, edi­fí­cios do go­verno, casas de ha­bi­tação, fá­bricas, ofi­cinas e lojas.

Os pro­me­tidos au­xí­lios feitos por di­versas po­tên­cias e pela Tur­quia, em par­ti­cular, che­garam de forma mí­nima. Hoje, o povo dispõe de apenas 4 horas diá­rias de energia e muitas vezes é obri­gada a beber água im­pró­pria para con­sumo.

E, ainda mais grave: o de­sem­prego chega a de­sa­ni­ma­dores 80%. A mai­oria da po­pu­lação de­pende da ONU e ou­tras en­ti­dades para so­bre­viver.

Re­la­tório da ONU de 2015, diz que, se as coisas não mu­darem logo, em 2030 não ha­verá con­di­ções de vida em Gaza.

Con­texto atual

Neste ano, a si­tu­ação se agravou com cortes pela Au­to­ri­dade Pa­les­tina (do­mi­nada pelo Fatah) na energia elé­trica e de 30% a 70% nos sa­lá­rios dos pro­fis­si­o­nais de saúde. Tudo para ar­ruinar a imagem do Hamas junto ao povo, res­pon­sa­bi­li­zando-o por essas mal­dades.

Pas­sando a ad­mi­nis­tração para o go­verno Abbas, o Hamas se livra de um en­cargo que não tem re­cursos para exercer bem, fi­cando à von­tade para atuar mi­li­tar­mente, através do seu exér­cito de 25 mil ho­mens. Sem contar as van­ta­gens da sua par­ti­ci­pação po­lí­tica no novo go­verno de união a ser for­mado.

Esse novo go­verno pas­sará a ad­mi­nis­trar as duas partes que com­põem a Pa­les­tina: a Cis­jor­dânia, sob ocu­pação is­ra­e­lense e o es­treito de Gaza, atu­al­mente sob o con­trole do Hamas.

Mah­moud Abbas – chefe do Fatah – pre­side a cha­mada Au­to­ri­dade Pa­les­tina, que ad­mi­nistra a Cis­jor­dânia de forma bas­tante li­mi­tada, pois dispõe de poucos po­deres, e assim mesmo em parte da re­gião, toda ela go­ver­nada efe­ti­va­mente por Is­rael.

Pe­rante a ONU e ou­tras en­ti­dades in­ter­na­ci­o­nais, quem re­pre­senta a Pa­les­tina é a ad­mi­nis­tração de Abbas, função que ele ocupa há 13 anos. O pe­ríodo que de­veria durar seu man­dato já venceu há muito tempo e ele só se mantém de­vido à se­pa­ração entre as áreas do­mi­nadas pelo seu Fatah e pelo Hamas. Com a uni­fi­cação, Abbas não teria mais jus­ti­fi­ca­ções para con­ti­nuar pre­si­dindo a Au­to­ri­dade Pa­les­tina.

Novas elei­ções de­verão ser pro­gra­madas e o Hamas es­pera vencê-las, as­su­mindo a Au­to­ri­dade Pa­les­tina, com o ter­ri­tório au­men­tado pela in­clusão de Gaza.

Por sua vez, Abbas vê na uni­fi­cação o for­ta­le­ci­mento da sua po­sição di­ante dos EUA, de Is­rael e mesmo da Eu­ropa, pois pas­sará a re­pre­sentar toda a po­pu­lação pa­les­tina, não apenas a da Cis­jor­dânia.

Além disso, ga­nhará pontos junto a Trump, que apoiou a ideia da Pa­les­tina unida. No caso existe uma au­tên­tica sim­biose, pois a The Do­nald in­te­ressa va­lo­rizar Abbas, já que con­si­dera o líder do Fatah al­guém fácil de ma­no­brar, ao con­trário do Hamas, um mo­vi­mento ra­dical com his­tó­rico de re­beldia a Tio Sam. Abbas e Trump acre­ditam que, sendo re­e­leito o atual pre­si­dente da Au­to­ri­dade Pa­les­tina, o Hamas fora do poder seria ra­pi­da­mente es­que­cido pelos ha­bi­tantes de Gaza.

Não se sabe se Abbas irá se can­di­datar a pre­si­dente ou apoiar um aliado. No en­tanto, lhe in­te­ressa ex­plorar a união, apre­sen­tando-se como seu ar­qui­teto e líder na tran­sição. Bem que ele pre­cisa, em todas as re­centes pes­quisas seu pres­tígio apa­rece em baixa.

As exi­gên­cias de Is­rael

É pre­vi­sível que, com a troca da guarda em Gaza e a subs­ti­tuição do Hamas por Abbas e seu mo­de­rado Fatah, os EUA e a Eu­ropa vol­tarão a en­viar ajudas fi­nan­ceiras con­sis­tentes, ali­vi­ando a si­tu­ação ter­rível do povo de Gaza. E, é claro, me­lho­rando subs­tan­ci­al­mente a imagem de Abbas.

Como era es­pe­rado, Is­rael é contra. Para seu go­verno de ul­tra­di­reita, é uma má no­tícia o au­mento da mus­cu­la­tura dos pa­les­tinos, con­sequência da uni­fi­cação. O ga­bi­nete mi­nis­te­rial de Ne­tanyahu emitiu um ukase no qual im­punha 7 exi­gên­cias ao Hamas e ao Fatah para Te­la­vive aceitar a co­a­lizão dos dois grupos.

Al­gumas, com uma ou outra di­fi­cul­dade, de­verão ser aten­didas: re­torno dos corpos de sol­dados is­ra­e­lenses mortos e de civis presos, re­co­nhe­ci­mento de Is­rael que já foi feito pelo pes­soal de Abbas e que o Hamas vai acabar to­pando; parar com o ter­ro­rismo o Hamas já parou, basta dizer que entre os três únicos as­sas­sí­nios de civis is­ra­e­lenses no úl­timo ano ne­nhum foi co­me­tido por al­guém do Hamas.

Pro­va­vel­mente, os is­ra­e­lenses con­si­deram “ter­ro­rismo” os lan­ça­mentos de fo­guetes de Gaza contra seu país. O que é al­ta­mente dis­cu­tível, já que a mai­oria deles foi em re­ta­li­ação a ata­ques is­ra­e­lenses.

Há ou­tras exi­gên­cias também acei­tá­veis, cujo sim­ples enun­ciado dá para mos­trar como Abbas é bem visto por Is­rael. De­pois de 10 anos pre­si­dindo a Au­to­ri­dade Pa­les­tina sem con­se­guir ab­so­lu­ta­mente nada para o povo pa­les­tino, ele tinha mesmo de ser apre­ciado pelo go­verno de Ne­tanyahu.

Daí o mo­tivo de o pri­meiro-mi­nistro e os mem­bros do seu ga­bi­nete exi­girem que Abbas con­trole to­tal­mente a se­gu­rança em Gaza, in­clu­sive as pas­sa­gens para Is­rael e o Egito e o com­bate ao con­tra­bando, e todas as ajudas fi­nan­ceiras e em equi­pa­mentos só sejam for­ne­cidas a Gaza através do ami­gável líder do Fatah.

Nu­vens pe­sadas in­vadem esse céu de bri­ga­deiro, quando se ana­lisa certas exi­gên­cias que pintam como ina­cei­tá­veis.

De­sar­ma­mento do Hamas é o mesmo que ar­rancar as garras de um tigre. Em caso de atritos com Is­rael, Gaza fi­caria à mercê do exér­cito de Ne­tanyahu, pois não teria de en­carar forças mi­li­tares ar­madas.

Con­ti­nuar o des­monte da es­tru­tura do Hamas na Cis­jor­dânia ini­ciada pelo ob­se­quioso Abbas é outra bomba contra o mo­vi­mento re­vo­lu­ci­o­nário. Supõe-se que os che­fões de Is­rael se re­ferem a fá­bricas de ex­plo­sivos, equi­pa­mentos de co­mu­ni­ca­ções e coisas assim. O ló­gico é que, pas­sando Abbas de ini­migo a aliado, essa in­fra­es­tru­tura de­veria se in­cor­porar à de­fesa da Pa­les­tina uni­fi­cada, não des­truída já que, com Ne­tanyahu ou algum po­lí­tico si­milar, con­ti­nuará sendo uma ameaça.

Por fim, um ul­traje: rom­pi­mento das re­la­ções com o Irã. Seria um aten­tado à so­be­rania do fu­turo Es­tado pa­les­tino, antes mesmo de ser for­mal­mente criado como go­verno de Gaza e da Pa­les­tina hoje ocu­pada.

O Irã tem aju­dado o go­verno de Gaza nas áreas mi­litar e econô­mico-fi­nan­ceira. Na­tural que os pa­les­tinos va­lo­rizem suas re­la­ções com o go­verno de Teerã e queiram mantê-las. Isso Ne­tanyahu não ad­mite. Ele exige que os pa­les­tinos bri­guem com um bom amigo so­mente para atender aos in­te­resses po­lí­ticos de Is­rael.

É mais uma forma de re­duzir os meios para os pa­les­tinos en­fren­tarem even­tuais pres­sões is­ra­e­lenses. É pos­sível que Abbas en­gula tal exi­gência.

An­te­ci­pando-se a uma pro­vável re­cusa dos pa­les­tinos a fa­zerem tudo o que ele exige, o pri­meiro-mi­nistro is­ra­e­lense já de­clarou que com o Hamas aliado ao Fatah, Is­rael não ne­gocia a paz.

Pode pa­recer es­tranho que da lista das 7 exi­gên­cias não constem os pontos mais im­por­tantes para Is­rael: a ma­nu­tenção de quase todos os as­sen­ta­mentos, a con­ti­nu­ação de Je­ru­salém in­teira como ca­pital de Is­rael e a proi­bição dos pa­les­tinos ex­pulsos pelo exér­cito de Is­rael re­cu­pe­rarem as pro­pri­e­dades que lhes foram to­madas.

Tudo isso não de­pende de ne­nhuma ação ou ati­tude pa­les­tina, pois re­pre­senta um status quo que Is­rael não ad­mite ser al­te­rado. Por­tanto, não é uma exi­gência a ser cum­prida por eles, basta quer aceitem.

É de se crer que todas estas di­ver­gên­cias sejam do co­nhe­ci­mento da equipe de Trump, que está es­tu­dando a pro­posta ”sal­va­dora do pre­si­dente”.

Pelo menos o Hamas não dei­xará sem res­posta as 7 exi­gên­cias dos sá­bios de Sião (per­doem pelo tro­ca­dilho). Como al­gumas de­verão ser con­tes­tadas, é bem pos­sível que haja uma con­trar­ré­plica.

The Do­nald e seus ali­ados vão per­ceber que o Hamas, uma vez unido ao Fatah, terá de ser con­si­de­rado na pro­posta em que estão tra­ba­lhando há tanto tempo… Isso po­derá ser um ele­mento com­pli­cador.

Domar o Hamas, usando os po­deres de Abbas, ou tentar uma aco­mo­dação ou mesmo forçar ideias que o mo­vi­mento ra­dical re­jeite, tudo isso está na de­pen­dência do que Trump de­cidir. Di­fícil saber o ca­minho que ele vai se­guir, são in­son­dá­veis os de­síg­nios do mer­cu­rial The Do­nald.

Longe da paz

Seja como for, serão ne­ces­sá­rios novos con­tatos entre a equipe da Casa Branca e os lí­deres do Fatah e também do Hamas.

A julgar pela ve­lo­ci­dade com que esses as­ses­sores do pre­si­dente es­tavam le­vando para con­cluir sua pro­posta, po­demos cotar mais meses, meses e meses de an­gus­tiosa es­pera. E mais um bom nú­mero de meses para Trump ava­liar e en­ri­quecer a pro­posta com o pro­duto do seu QI cam­peão.

Dá para prever muitas chances de o Hamas e chefes mais co­ra­josos do Fatah le­van­tarem um certo nú­mero de con­tes­ta­ções.

O que adiará ainda mais a cri­ação da “pro­posta sal­va­dora” do mo­rador da Casa Branca.

Tudo po­derá voltar ao marco zero. O que é exa­ta­mente o que Ne­tanyahu e ali­ados de­sejam. Mas não po­demos afirmar que as coisas vão acon­tecer assim.

O que você deve ter sen­tido pela lei­tura deste co­men­tário é que di­ver­gên­cias ra­di­cais se­param o Hamas e o Fatah.

Todas elas partem de uma co­lo­cação bá­sica: en­quanto Abbas e a mai­oria do Fatah acre­ditam que a in­de­pen­dência da Pa­les­tina só sai com o apoio pa­ternal de Washington, o Hamas sus­tenta que ja­mais acon­te­cerá sem uma con­fron­tação com Is­rael, não ne­ces­sa­ri­a­mente mi­litar (in­viável).

Par­tindo desta di­ver­gência cen­tral, existem di­versas ou­tras di­ver­gên­cias, quando se ana­lisa pro­postas sobre itens con­cretos.

Também com base nas vi­sões opostas entre Hamas e Fatah, cada um deles, já no início do pro­cesso de reu­ni­fi­cação, pro­cura ga­rantir po­si­ções mais fortes para seu mo­vi­mento e im­pedir que o outro faça o mesmo.

Se nada mudar, não há por que ter muito oti­mismo na con­ti­nui­dade da união Fatah-Hamas. A menos que, antes de co­me­çarem a ne­go­ciar com Is­rael e Trump, os dois con­cordem numa mesma es­tra­tégia para nor­tear suas ações por uma Pa­les­tina livre.

http://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/12919-unificacao-da-resistencia-palestina-ate-quando

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