Internacional

Uma elite à mercê daquilo que ela mesma criou

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Martin Wolf – Donald Trump será o candidato republicano à presidência dos Estados Unidos. Pode até se tornar presidente dos Estados Unidos. É difícil exagerar a importância e o perigo desse desdobramento. Os Estados Unidos foram o bastião da democracia e da liberdade no século 20. Se elegerem Trump, um homem com atitudes fascistas para com as pessoas e o poder, o mundo seria transformado.

Trump é misógino, racista e xenófobo. Alardeia com orgulho sua ignorância e incoerência. A verdade é qualquer coisa que lhe seja conveniente. Suas ideias políticas são ridículas, quando não horripilantes. No entanto, suas atitudes e ideias são menos perturbadoras do que seu caráter: ele é narcisista, gosta de intimidar, e difunde teorias da conspiração. É assustador considerar de que maneira um homem como ele poderia usar os poderes de que dispõe um presidente.

Andrew Sullivan, comentarista político conservador, escreveu recentemente que “em termos de nossa democracia liberal e ordem constitucional, Trump é um evento de extinção”. E ele está certo.

Poderia se provar surpreendentemente fácil para o presidente Trump encontrar pessoas dispostas a executar ordens tirânicas ou a forçar subordinados menos dispostos a fazê-lo. Ao exagerar crises ou criá-las, um aspirante a déspota pode perverter sistemas políticos e judiciais. Os presidentes da Rússia e da Turquia são habilidosos exemplos dessa prática. Os Estados Unidos contam com uma ordem constitucional enraizada. Mas até mesmo ela poderia ser quebrada, especialmente se o presidente dispuser de apoio legislativo que o torne imune a um impeachment.

Sullivan apela à ajuda de Platão, o maior dos filósofos antidemocráticos. Ele nos recorda de que Platão acreditava que quanto mais igualitária uma sociedade se torna, menos ela aceitará autoridade. Em seu lugar viria o demagogo que oferece soluções simples para problemas complexos.

Trump é o arauto que lidera os raivosos e os ressentidos ao abismo. Ascendeu, opina Sullivan, como o homem que vai enfrentar “as elites, cada vez mais desprezadas”. Além disso, a revolução na mídia facilitou essa ascensão ao eliminar “praticamente qualquer moderação ou controle de nosso discurso democrático pela elite”.

A demagogia é o calcanhar de Aquiles da democracia. Mas a democracia ateniense, sob a qual viveu Platão, não deu lugar a uma tirania interna, e sim surgiu de uma. Foi um rei macedônio que pôs fim a ela em 338 AC.

Acima de tudo, Sullivan desconsidera o papel das elites. No caso dos Estados Unidos, ele argumenta que a riqueza não é capaz de comprar a presidência. Obama derrotou Romney, por exemplo. Mas o dinheiro adquire influência em níveis mais baixos da política. O mais importante é que as elites dão forma à economia e à sociedade. Se parte da população está enraivecida, a culpa cabe às elites.

O rigoroso apego dos democratas aos direitos da mulher e, ainda mais, à causa das minorias, definidas em termos de raça, orientação sexual e identidade, transferiu a lealdade dos homens brancos de classe média aos republicanos, especialmente no velho sul do país. O elemento racial é muito claro na “síndrome da insanidade quanto a Obama”.

E os republicanos aplicaram uma trapaça contra essa categoria de simpatizantes. Precisavam dos votos dessas pessoas para aquilo que os doadores de verbas de campanha ao partido mais desejam: impostos baixos, regulamentação fraca, comércio livre e políticas liberais de imigração. Para fazer dessas causas objetivos do Partido Republicano, as elites tiveram de transformar o governo em inimigo. Também tiveram de atrair partidários conservadores em termos culturais com promessas de mudanças que dificilmente poderiam ser cumpridas.

Além disso, as elites dos dois lados prometeram mudanças econômicas que terminaram por destruir a confiança em sua competência e probidade. Para isso, a crise econômica e subsequentes resgates tiveram papel decisivo.

No entanto, àquela altura a classe média havia sofrido décadas de estagnação de renda real e declínio de renda relativa. A globalização trouxe imensos benefícios para muitos dos pobres do planeta. Mas houve perdas significativas para alguns segmentos nacionais de população. Hoje, estes últimos acreditam que as pessoas que gerem a economia e a comunidade nacional os exploram e desprezam.

Mesmo as elites republicanas se tornaram inimigas, para esse grupo, e Trump passou a ser visto como seu salvador. Não surpreende que ele seja um bilionário. César, aristocrata que liderava um partido do povo, criou o “cesarismo”: o governo do homem forte e carismático que Trump deseja ser.

Uma república saudável não requer igualdade; longe disso. Mas requer certo grau de simpatia mútua. A riqueza súbita gerada por novas atividades – conquistas militares em Roma, a criação de bancos na Florença medieval – pode corroer os elos sociais. Se a virtude cívica desaparece, uma república está madura para ser destruída.

Mudanças econômicas, sociais e políticas conduziram os Estados Unidos ao ponto no qual parte significativa da população busca um homem forte. As elites republicanas deveriam se preocupar por suas bases terem escolhido Trump de preferência a Ted Cruz e Cruz de preferência a todos os demais candidatos. A elite do partido tentou jogar com o populismo, especialmente em sua recusa intransigente a cooperar com o presidente. Pessoas melhores que eles nesse tipo de jogo os derrotaram.

Trump percebe que seus partidários não têm interesse no Estado limitado que os conservadores amam. O desejo deles é a restauração do status econômico, racial e sexual que perderam. A resposta de Trump é prometer fortes cortes de impostos, gastos sustentados e redução da dívida. Mas ele não precisa ser coerente em termos de lógica. Isso é coisa da desprezada “mídia convencional”.

Hillary Clinton é uma candidata fraca, maculada pelas falhas de seu marido e por sua posição como membro da elite, e lhe falta talento político. Ela deveria vencer, mas pode ser que não consiga. E mesmo que vença, a história não terminaria por ali.

Trump despertou novas possibilidades políticas. Mas não podemos atribuir a atual situação desconfortável dos Estados Unidos a um excesso de democracia. Foram as falhas das elites míopes que a causaram, em medida muito maior. Parte do que aconteceu foi certo, e assim não deveria ter sido evitado. Mas teria sido possível evitar muitas outras coisas. As elites republicanas jogaram lenha nessa fogueira. Será difícil extinguir as chamas.

http://www1.folha.uol.com.br/colunas/martinwolf/2016/05/1772469-uma-elite-a-merce-daquilo-que-ela-mesma-criou.shtml

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