Sociedade

Uma cruz em chamas

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Cristina Burneo Salazar – Na se­mana do dia 6 ao dia 10 de no­vembro, Cris­tina Burneo Sa­lazar, in­te­lec­tual e es­cri­tora equa­to­riana, vi­sitou a Uni­ver­si­dade de São Paulo como do­cente con­vi­dada pela fa­cul­dade de le­tras mo­dernas. En­quanto de­sen­volvia sua dis­cussão na USP, a do­cente e seu grupo acom­pa­nharam os dois ata­ques pú­blicos à fi­ló­sofa Ju­dith Bu­tler, que en­con­trava-se na mesma ci­dade e cujo tra­balho es­tava in­cluído no pro­grama de es­tudos de Sa­lazar. Os ata­ques à fi­ló­sofa se davam por conta do seu tra­balho sobre te­oria de gê­nero e te­oria fe­mi­nista, algo que fez aca­dê­micas fe­mi­nistas em toda a Amé­rica La­tina se sen­tirem obri­gadas a de­fender a pauta, di­ante da des­le­gi­ti­mação do seu campo sob o nome pe­jo­ra­tivo de “ide­o­logia de gê­nero”. Desta coin­ci­dência provêm a se­guinte re­flexão.

As aulas do nosso se­mi­nário foram na sala 160 do prédio da Le­tras, na USP. Na mesma hora em que co­me­çá­vamos nosso dia por lá, na­quela quarta-feira (8), Ju­dith Bu­tler era ata­cada pela pri­meira vez em sua che­gada a São Paulo. Em sala, nos dis­pu­semos a co­mentar “Marcos da Guerra”, seu vo­lume de 2009, que aborda entre ou­tras coisas a pre­ca­ri­e­dade como con­dição cons­ti­tu­tiva da vida atual. Bu­tler atendeu a um con­gresso or­ga­ni­zado pela Fi­lo­sofia da USP. Nós, nessa mesma uni­ver­si­dade, olhamos as ima­gens dos ata­ques en­quanto nos dis­pú­nhamos a abordar o tra­balho da fi­ló­sofa. Nesse mo­mento, nossa lei­tura ad­quiriu uma carga po­lí­tica ines­pe­rada: lemos e ade­rimos cri­ti­ca­mente ao tra­balho de al­guém que, de acordo com um pro­testo pú­blico, “deve ser quei­mada como bruxa”. Ora, se ela deve ser quei­mada, quer dizer que existem bruxas? O que isso quer dizer?

Vimos uma re­pre­sen­tação de Bu­tler do lado de fora do Sesc Pom­péia. O corpo da bo­neca é de tela negra e leva um sutiã rosa – pro­vável evo­cação da queima de su­tiãs de 1968, de­talhe pop – e seu rosto está co­roado com um chapéu de bruxa. O grupo queima a Bu­tler-bo­neca, em­po­lei­rada pela turba, e atira seu corpo em com­bustão das al­turas até o centro da mul­tidão, ex­ci­tada por seu pró­prio ato. Uma fo­gueira e a in­ti­mi­dade entre nós e nossas re­pre­sen­ta­ções. Queimar a bo­neca, querer queimar a Bu­tler ou, mais pre­ci­sa­mente, querer queimar a pa­lavra “gê­nero”. Queimar uma pa­lavra.

É irô­nico, to­davia, que nesse ato vi­o­lento o grupo não se dê conta de que está co­me­tendo o que para eles pode ser uma he­resia: a es­tru­tura in­te­rior da ca­beça de Bu­tler é de ma­deira e tem a per­feita forma de uma cruz. Ao gerar a com­bustão, essa con­fecção de capas e te­cidos de­sa­pa­receu con­su­mida e em seu lugar surgiu di­ante dos nossos olhos uma cruz em chamas. Aquilo que arde como aci­dente deste outro que arde pro­po­si­tal­mente: o corpo da bruxa. A cruz e a vi­o­lência da queima, in­dis­so­ciá­veis, uma dentro da outra.

Quando se quer queimar a Bu­tler, a ideia é queimar o que não foi lido, o que não se co­nhece sobre gê­nero, aquilo que é pre­fe­rível ig­norar acerca do fe­mi­nismo. Um dos sig­ni­fi­cados his­tó­ricos de “ig­no­rante” é “ob­so­leto”: ficar fora do tempo, haver en­ve­lhe­cido. Em gestos que re­correm ao pas­sado con­ce­bido como imo­bi­li­dade – manter a fa­mília, velar por uma ordem, blo­quear as mu­danças – estes grupos querem queimar algo que não co­nhecem. Como isto é pos­sível?

O so­ció­logo sul-afri­cano Stanley Cohen chamou de “pâ­nico moral” algo si­milar a isto. Re­nun­ciar ao ar­gu­mento, so­bre­di­men­si­onar e de­fender o tabu. Em pâ­nico, não é ne­ces­sário co­nhecer para agir. Esse medo da mu­dança ori­gi­nado na ig­no­rância de­li­be­rada tem efeitos reais: põe risco à vida das pes­soas, ameaça e le­gi­tima a vi­o­lência para pro­teger-se do outro. Um pro­nun­ci­a­mento de Bu­tler e uma nova e ex­tensa ex­pli­cação da sua vi­sita a São Paulo e sua pos­tura sobre todo o ocor­rido pode ser lida aqui (https://​goo.​gl/​k7yqFW).

Entre as for­mulas do pâ­nico destes grupos se en­contra aquela que afirma que a “ide­o­logia de gê­nero” des­trói a fa­mília, ma­ni­pula a se­xu­a­li­dade e faz do aborto um es­porte. A tal “ide­o­logia de gê­nero” não existe e é uma fa­bri­cação dos la­bo­ra­tó­rios do Va­ti­cano – é pos­sível ras­trear esse pro­cesso na carta de João Paulo II di­rigiu à nós, mu­lheres, em 1995.

Já a “te­oria de gê­nero”, essa sim de­fen­dida por Bu­tler, pelo con­trário, am­plia o con­ceito de fa­mília ques­ti­o­nando seus fun­da­mentos, não ma­ni­pula a se­xu­a­li­dade senão que a “des­bi­o­lo­giza”, a re­con­si­dera com se­ri­e­dade e em re­lação com a tec­no­logia, os di­reitos das mu­lheres e a His­tória dos iní­cios e fi­nais da vida – so­ci­a­li­zando-a.

O pâ­nico traduz estas ela­bo­ra­ções teó­ricas e po­lí­ticas em fór­mulas apo­ca­líp­ticas para des­le­gi­timá-las, caindo ir­re­me­di­a­vel­mente em uma re­dução que cir­cula como ver­dade. E não, não se trata de li­ber­dade de ex­pressão porque estas fór­mulas são re­pe­tidas com fins dis­cri­mi­na­tó­rios e, por­tanto, pe­ri­gosos.

Em seu aci­onar an­sioso, o pâ­nico nos im­pede de olhar que as re­tó­ricas di­vi­só­rias e cria falsos an­ta­go­nismos. Os fun­da­mentos do re­gime po­lí­tico que co­nhe­cemos como pa­tri­ar­cado foram sendo dis­tri­buídos sobre todos os corpos, todos os afetos, todos os mundos. As mu­lheres an­ti­fe­mi­nistas, os ho­mens te­me­rosos de sua se­xu­a­li­dade e os lí­deres da mas­cu­li­ni­dade frágil não veem que esse re­gime também os gol­peou. Não o veem no Brasil as mul­ti­dões fa­ná­ticas; não o veem no Peru os se­gui­dores do Bispo Ci­priani; não o veem no Mé­xico nem no Equador aqueles que mar­cham sob o lema de “não se meta com meus fi­lhos”; não o veem na Es­panha os pro­te­tores de es­tu­pra­dores em ma­nada; não o veem em ne­nhum lugar do mundo aqueles que fi­zeram do “gê­nero” uma pa­lavra de­mo­ni­zada.

Quando fa­lamos, do ponto de vista po­lí­tico, de fe­mi­nismos, “gê­nero” e fa­mília, fa­lamos sobre a rein­venção do amor, a re­cu­pe­ração do corpo, a re­no­vação da nossa ideia de pa­ren­tesco. Não é uma pa­lavra que des­trói, nem é uma in­dús­tria e nem um re­ci­pi­ente para salvar na cor­reção po­lí­tica qual­quer cons­ci­ência li­beral.

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É outro o poder desta pa­lavra, e sim, pode ser um “abra­ca­dabra”: a pa­lavra po­de­rosa das bruxas. As bruxas foram mu­lheres sá­bias per­se­guidas, foram de­fen­soras da terra e su­jeitos co­mu­ni­tá­rios por sé­culos. A his­to­ri­o­grafia que Silvia Fe­de­rici des­creveu em “Ca­libán e a bruxa” serve muito bem para ver que, na queima da bo­neca de Bu­tler, são atu­a­li­zados os medos do saber e da li­ber­dade que esse saber ou­torga ao corpo e à co­mu­ni­dade. A caça às bruxas está muito longe do fol­clore, pelo con­trário, cons­titui uma forma exem­plar de cas­tigo que vol­tamos a ver em cena como há 800 anos. Hoje, se chama “ide­o­logia de gê­nero” o ob­jeto a ser ca­çado.

Em uma con­fe­rência dada em 3 de fe­ve­reiro em uma uni­ver­si­dade na Ar­gen­tina, Bu­tler se re­feria a ne­ces­si­dade de re­fletir para ima­ginar um mundo onde a vida seja mais “vi­vível”. “A re­flexão por si só não muda o mundo, mas o mundo não pode mudar sem uma in­ter­venção crí­tica. Abrir as ca­te­go­rias cons­truídas há muito tempo fará do mundo um lugar me­lhor para se viver”. A te­oria, dizia Bu­tler, não se opõe à po­lí­tica, mas gesta um outro ritmo, mais me­di­tado, porém nunca de­sin­te­res­sado pelo que se passa em nossos corpos e no es­paço so­cial.

As opi­niões teó­ricas são também parte de um pro­cesso his­tó­rico e cons­ti­tuem, so­bre­tudo, uma luta contra a ma­neira bá­sica e ele­mentar de pensar o corpo ou o gê­nero, ex­pli­cava Bu­tler na­quela oca­sião. Com efeito, os pro­cessos his­tó­ricos se abre­viam em de­fi­ni­ções, mas essas ela­bo­ra­ções não estão ja­mais se­pa­radas da re­a­li­dade. O medo do “gê­nero” é o medo de pensar, porque a pa­lavra tem o poder de voltar a no­mear. O con­trário, temer a mu­dança, querer con­servar es­quemas de afeto que nos sub­metem a re­nun­ciar o pensar não tem outro nome senão “obs­cu­ran­tismo”. A te­oria de gê­nero, a re­flexão e a práxis fe­mi­nista, fazem isto: acender a ima­gi­nação crí­tica para que ou­tras vidas sejam pos­sí­veis.

As 363 mil as­si­na­turas contra a pre­sença de Ju­dith Bu­tler em São Paulo cons­ti­tuem uma von­tade co­le­tiva de su­primir a di­fe­rença ou, pelo menos, de re­primi-la. Essas mi­lhares de as­si­na­turas são di­ri­gidas a Bu­tler ao mesmo tempo que fazem de sua pessoa um sím­bolo com o qual en­vi­amos a men­sagem. As mai­o­rias am­pa­radas no anel so­cial do “somos muitos que pen­samos assim” re­al­mente não pa­recem parar para pensar, pois fa­zendo isso, ha­ve­riam visto que Bu­tler vi­a­java a um con­gresso sobre de­mo­cracia onde não iria se re­ferir ao tra­balho em que ela­borou sua te­oria do gê­nero.

O con­gresso que ela atendeu em São Paulo se cha­mava “The Ends of De­mo­cracy” (Os fins da de­mo­cracia, em tra­dução livre). Os “fins” – fi­nais ou fi­na­li­dades? – da de­mo­cracia. Cer­ta­mente, deixar de pensar nos expõe mais à pri­meira opção, a de fim, de en­cer­ra­mento, de ponto final da de­mo­cracia. Deixar de pensar seria o mesmo que deixar que o mundo nos seja ar­re­ba­tado pelos ob­so­letos, por aqueles que nos mos­traram, em um ato de tor­peza, uma cruz em chamas. E di­ante disso tudo, como não re­sistir?

http://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/12961-uma-cruz-em-chamas

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