Sociedade

Um post no Twitter mexeu com muita gente que teve antepassados escravizados

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Matheus Pichonelli – Eu sei de onde vieram meus antepassados. Conheço as histórias que eles contavam para meu pai. Sei como era a vida na Itália. Sei em que ano chegaram ao Brasil.

Sei como chegaram à cidade onde nasci antes de eu nascer; como dividiram as terras, como se organizavam aos domingos, o que comiam, como comiam. Sei até que meu bisavô não tomava banho quando o Palmeiras perdia e que meu tataravô atribuía a calvície ao capacete usado na guerra.

O que não sabia, ao menos não tinha me dado conta até pouco tempo, é que o acesso a essas histórias é também um privilégio.

Quem alertou sobre essa questão foi a jornalista Cecília Oliveira, que no último dia 27 escreveu no Twitter: “Você está a quantas gerações da escravidão? Eu estou a quatro. Procurei e não achei dados do meu bisavô em cartórios. Ele não tinha registro de nascimento. Seu Geninho era Rei do Congado em Divinópolis (MG). Ele e meu pai morreram cedo, antes de eu saber fazer as perguntas…”

O exercício de pensar na distância em relação à escravidão chocou alguns leitores, que passaram a compartilhar histórias semelhantes no post.

Uma seguidora, por exemplo, comentou que o único documento da sua bisavó era um recibo de compra e venda, onde era bem recomendada para mucama.

“Muita gente não pensa em escravidão – ponto”, resume Cecília ao blog. “Uns não querem, outros não têm informação sobre seus parentes próximos, como eu e outros, e há também quem decida não pensar sobre, porque é muito doloroso.”

O post ajudou a mostrar como o direito à memória de nossos ancestrais não é um direito”dado”, como é para mim e meus familiares. Não em um país que só aboliu a escravidão no fim do século 19.

“Muitos descendentes de europeus que vieram para o Brasil – com subsidio do governo e com suas famílias, a convite – conseguem saber de onde seus parentes vieram. Muitas vezes até o nome das vilas. Não ter parentes sequestrados, vendidos, forçados a mudar de nome e usar sobrenomes de seus donos – já é um privilégio em si. Receber convite para mudar para o Brasil, ter a passagem paga, vir com a família e não como mercadoria, é outro”.

O post de Cecília teve mais de cem compartilhamentos e era uma mensagem replicada de um tuíte Jelani Cobb, que escreve sobre raça, justiça e cultura nos EUA – e que estava a cinco gerações da escravidão.

Quem deu início à corrente, porém, foi uma escritora americana identificada como @blurbette, que no último dia 25 contou que morava com os avós e a bisavó nascida em 1906 e cujos pais nasceram escravos. Três dias depois, quase 13 mil pessoas haviam compartilhado o tuíte dela com um exercício similar de resgate de memória.

A jornalista conta que já tinha pensado na proximidade de sua geração com a escravidão quando buscou os registros sobre seu bisavô – e não encontrou. “Só sei que ele se chamava Eugênio Rosa e que era Rei de Congado em Divinópolis.”

Segundo ela, muita gente se identificou com o post porque mais da metade da população brasileira hoje se declara negra. “A camada da população que antes não acessava a educação em todos os seus graus foram lendo mais e aprendendo mais. A criação das cotas e da lei 11.645/08 (sobre ensino da história da África) trouxe mais informação. Isso, somado à internet, fez as coisas avançarem”.

Apesar da seriedade do tema, houve quem respondesse com sarcasmo à reflexão. Um leitor chegou a perguntar se trabalhar todos os dias das 6 da manhã às 22 horas, sem carteira assinada, sem férias, sem fundo de garantia, podendo ir para casa nas folgas para ver os filhos uma vez a cada 15 dias, configurava escravidão? “Se for, estou a uma geração apenas”, disse.

Para Cecília, sempre vai ter alguém que diga que trabalha muito e que é escravizado. “Temos trabalhos insalubres, exploratórios (palavra estranha) análogos à escravidão e de fato, escravidão. São muitas variáveis, mas a escravidão mesmo – com castigos físicos, sem remuneração, privados de liberdade – são mais raros, mas ainda existem, infelizmente.”

Ela lembra da importância do Ministério Público do Trabalho no resgate de trabalhadores e a lista do trabalho escravo no país. “São iniciativas VITAIS em um país com o histórico como o nosso.”

E você? Sabe qual é a história de seus antepassados?

https://matheuspichonelli.blogosfera.uol.com.br/2019/05/28/um-post-no-twitter-mexeu-com-muita-gente-que-teve-antepassados-escravizados/

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