Sociedade

Tortuosos caminhos

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CÉSAR BENJAMIN – Aproveitando o ano eleitoral, o presidente Fernando Henrique anunciou o apoio do governo federal a um conjunto de medidas politicamente corretas, com destaque para o reconhecimento civil da união de pessoas de mesmo sexo e a reserva, para negros, de 20% das vagas no serviço público. A primeira medida, proposta há alguns anos pela então deputada Marta Suplicy, é um avanço: duas pessoas adultas podem decidir quem desejam amar e com quem vão viver, e qualquer união estável deve ser geradora de direitos, respeitando-se a vontade expressa por ambas as partes. A mesma clareza não se aplica, a meu ver, à segunda medida, também defendida por grande parte da esquerda. É que o combate ao racismo frequentemente envereda por tortuosos caminhos.

A construção do conceito de “raças humanas” foi o empreendimento mais importante da ciência europeia no século XIX. Nessa época, uma parafernália de métodos estatísticos e de sistemas de medição de cada parte do corpo lançou as bases de uma antropologia física que tentou classificar os grandes grupos humanos de modos que estabeleciam correlações entre características aparentes e aptidões. O trabalho consumiu décadas, envolveu cientistas prestigiosos e produziu grande quantidade de resultados numéricos aparentemente respeitáveis, com suas respectivas interpretações. O sentido desse esforço era óbvio. Ele visava a estabelecer bases biológicas que legitimassem a expansão colonial das potências europeias, então em pleno vapor. O colonialismo passava a ser uma expressão da supremacia natural de povos mais aptos.

No século XX, com o desenvolvimento da genética e da biologia molecular, o estudo do corpo humano ultrapassou larga- mente os aspectos morfológicos mais aparentes, como a cor da pele, que serviram de base para as classificações anteriores. Passamos a comparar os organismos a partir do conhecimento de estruturas muito mais íntimas e mais fundamentais. Os resultados demoliram as bases conceituais das pesquisas anteriores. Ficou demonstrado que, ao longo da evolução, os grupos humanos conservaram uma semelhança espantosa. Compartilham a mesma herança, com variações insignificantes.

As diferenças genéticas que se encontram entre duas pessoas escolhidas aleatoriamente em um mesmo grupo (dois nigerianos, por exemplo) não diferem estatisticamente das diferenças existentes entre duas pessoas de distintos grupos (um nigeriano e um sueco, por exemplo). Do ponto de vista genético e bioquímico não se descobriu nenhum critério válido para juntar e separar as pessoas. Criou-se um consenso de que as diferenças observáveis na linguagem, nos costumes, nos valores, nos atributos morais, nas atitudes estéticas, etc., não são biologicamente determinadas.

Desde então, o conceito de “raças humanas” foi remetido ao museu onde estão expostas à galhofa as afirmações de que a Terra é plana, de que habitamos o centro do Universo, de que os corpos graves tendem ao repouso e outras ideias que (des)organizaram o pensamento da humanidade ao longo da história. Afirmou-se, em seu lugar, a unidade essencial da nossa espécie. É claro que isso não esgota o problema. Pois, apesar de cientificamente inepto — por não corresponder a nada que exista no mundo biológico —, aquele conceito continua a existir como fato ideológico e cultural. Creio que pelo menos três motivos ajudam a entender por que este cadáver permanece insepulto e continua a perambular pelo mundo.

O primeiro: a classificação de grupos humanos tendo como base a cor da pele (e outros atributos associados, como a forma do cabelo) é visível aos olhos e, como tal, “evidente”. Brancos são brancos e negros são negros. Porém, há muito tempo a ciência aprendeu a desconfiar de “evidências”. Também não é “evidente” que o Sol gira em torno da Terra? Não é “evidente” que a Terra é plana? O processo de conhecimento é sempre a superação de evidências. O mesmo ocorreu neste caso. O que determina a cor de uma pessoa é a quantidade de uma proteína, chamada melanina, que todos temos na pele. Assim, quando usamos a cor da pele como critério de classificação, estamos afirmando que as pessoas devem ser agrupadas e separadas conforme a quantidade de melanina que seu organismo produz. Mas a melanina é apenas um dos 80 mil ou 100 mil (não se sabe muito bem) diferentes tipos de proteínas que compõem nosso corpo. Surge a questão: por que ela, e não outra proteína qualquer, deve ser usada como referência?

Seguindo essa trilha, a ciência contemporânea obteve resultados surpreendentes. Se usarmos a melanina como critério classificador, os suecos Johansson e Peter pertencerão a uma “raça”, enquanto os nigerianos Kumbere e Tongo pertencerão a outra. Mas, se usarem outra proteína qualquer, nada impede que Johansson e Kumbere integrem a mesma “raça”, pela semelhança de sua composição bioquímica nesse aspecto, ao passo que Peter e Tongo integrem uma outra. O mesmo procedimento pode repetir-se quantas vezes se desejar, gerando infinitos rearranjos quando se lida com a humanidade como um todo. Havendo uma in- finidade de “raças” possíveis, é claro que não há “raça” nenhuma.

Um segundo motivo para a sobrevivência ideológica desse conceito é que tal classificação, como outras, corresponde a interesses. Pois o ato de classificar é também, necessariamente, um ato de hierarquizar: o grupo que inventa a classificação ocupa, invariavelmente, o topo da escala. (Nenhuma classificação reflete “o real”; todas são invenções, mais úteis ou menos úteis.)

O terceiro motivo é um pouco chocante: a ideia de que existam raças humanas, dotadas de diferentes aptidões, não contraria nenhuma lei da biologia. Portanto, não é absurda. Quando populações de uma mesma espécie se separam no espaço e se reproduzem isoladas ao longo de muitas gerações, elas tendem a acumular diferenças, que podem inscrever-se em seus códigos genéticos e, no longo prazo, resultar em raças diferentes. Isso ocorreu em muitas espécies animais (pastores alemães e pequineses são diferentes raças de uma mesma espécie) e também começou a ocorrer na espécie humana.

A partir de um contingente originário da África, o Homo sapiens se espalhou pelo mundo, e seus subgrupos começaram a acumular diferenças. Se o isolamento demorasse muito mais tempo, provavelmente produziria “raças” humanas. Mas, nossa espécie é muito recente, e sua divisão em subgrupos isolados não foi suficientemente longa. A humanidade cresceu, se multiplicou, se deslocou e ocupou todo o planeta. A história produziu logo um grande reencontro. Com ele, o intercâmbio genético voltou a prevalecer amplamente, interrompendo a incipiente tendência anterior. Reiniciou-se um processo de homogeneização, antes que se formassem raças diferentes. Nossa unidade humana fundamental é um fato histórico, e não uma imposição metafísica ou uma lei biológica.

A fusão de subgrupos humanos, acelerada na modernidade, foi mais radical no Brasil do que em qualquer outra parte do mundo. Sociedade recente, nascemos no exato momento em que o reencontro se acelerou. Dadas as características da colonização portuguesa e nosso papel na divisão mundial do trabalho, fomos levados a realizar um monumental processo de miscigenação, que predominou sobre outras tendências. Processo, é claro, assimétrico, como todos os demais, em uma sociedade de resto tão desigual.

Como resultado, não somos nem brancos, nem negros — somos mestiços. Biológica e culturalmente mestiços. Aqui, mais do que em qualquer outro lugar, a tentativa de constituir uma identidade baseada na “raça” é especialmente reacionária. A afirmação, que tantas vezes já ouvi, de que o Brasil é o país mais racista do mundo é uma patética manifestação de nosso esporte nacional favorito — falar mal de nós mesmos.

Os elementos culturais e ideológicos racistas, que subsistem entre nós, não interromperam nem conseguirão interromper o processo de construção de uma sociedade mestiça, cuja unidade tem sido dada pela bela capacidade de criar e recriar uma cultura de síntese. Mesmo assim, aqueles elementos precisam ser combatidos. Mas, definir quotas será o melhor caminho? Devemos fixar o que não é fixo, separar o que não está separado? Quem é negro e quem é branco no Brasil? Onde está a fronteira entre ambos? E os brancos pobres, que são muitos, como ficam?

Melhor do que copiar também nisso os Estados Unidos — uma sociedade multiétnica, mas, ao contrário da nossa, não essencialmente mestiça —, seria, por exemplo, garantir uma escola pública universal, gratuita e de boa qualidade, onde todas as crianças convivessem juntas e recebessem a mesma educação funda- mental. Crianças que brincam em play-grounds, viajam em auto- móveis vedados e estudam em escolas particulares, altamente seletivas, tendem a crescer com medo e raiva dos diferentes. Crianças que frequentam espaços públicos e têm amigos de todas as cores dificilmente serão adultos racistas.

Publicado em Caros Amigos n. 63, junho de 2002. Este artigo iniciou uma polêmica que teve continuação em outro breve texto, intitulado “Racismo não”, também publicado neste livro.

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