Política

Capitalismo democrático. O fim de uma exceção histórica?

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Jean-Fabien Spitz – O capitalismo e a democracia pareciam fazer até recentemente um bom casamento. Mas, hoje o divórcio se consumou. O mercado vai muito bem, mas os regimes autoritários florescem no mundo como um todo e o desinteresse pelos direitos dos indivíduos continua a crescer.

Por ocasião do bicentenário da Revolução Francesa e da queda do Muro de Berlim, François Furet e muitos outros celebraram o casamento eterno do capitalismo e dos direitos humanos. Trinta anos depois, os cônjuges estão à beira do divórcio: partidos racistas e xenófobos estão às portas do poder ou já entraram em vários países da União Europeia. A Turquia está experimentando um desvio autoritário que viola as liberdades fundamentais, o Reino Unido é tomado por uma febre de retirada e rejeição de estrangeiros, os Estados Unidos finalmente, a mais antiga democracia do mundo, levaram à presidência um homem a quem o racismo não amedronta e que parece disposto a fazer quaisquer rompimentos possíveis aos princípios escritos e não escritos de uma constituição destinada a proteger as liberdades individuais de todos os cidadãos[1]. O capitalismo está melhor do que nunca e nunca o mercado estendeu tanto seu alcance, anexando vários setores da existência humana, mas esta extensão sem precedentes não traz benefícios nem aos direitos humanos, nem aos princípios do liberalismo, que são hoje objeto de uma ceticismo cada vez mais comprovado.

Deconsolidação democrática

Mais grave ainda, os cientistas políticos Yasha Mounk e Roberto Stefan Foa mostraram que grande parte dos habitantes dos países ricos foi afetada por uma “desconexão” em relação aos valores da democracia, e que essa distância ou indiferença levou a uma “Desconsolidação” democrática. Indagados sobre o valor do regime democrático, cidadãos desses países – especialmente os mais jovens – estão cada vez menos vinculados à forma democrática de governo político e cada vez mais tentados por várias formas de radicalismo. Se a importância da eleição de governantes retém ainda parte de seu valor, os componentes liberais da democracia, incluindo o respeito pelos direitos individuais e a necessidade de conduzir as mudanças políticas no contexto das formas institucionais previstas, parecem ser objeto de uma desconsideração ou, em todo caso, de um apoio menor do que anos 50 e 60. Quanto ao compromisso pela prática dos direitos políticos, eles não são mais percebidos como elementos essenciais de uma vida democrática e o desinteresse que inspiram não parece ser preenchido pela atração de novas formas não convencionais de participação cívica.

Finalmente, o uso de soluções autoritárias para resolver os problemas mais difíceis não é mais rejeitado sistematicamente como antes. 24% dos cidadãos dos EUA – de todas as idades – declaram por exemplo que seria bom para seu país ter um líder forte que não necessitasse se preocupar com o Congresso ou com eleições; enquanto percentual mais elevado ainda pensa que seria bom confiar a gestão de problemas mais complexos a especialistas[2]. Nos Estados Unidos, propostas como a que visa adiar as eleições para uma data posterior, para permitir a formação de listas eleitorais confiáveis, excluindo qualquer possibilidade de voto para não-cidadãos, não parecem mais algo escandaloso, nem tampouco atitudes que outrora atingiriam profundamente as regras do jogo político não escrito, como por exemplo, o da maioria republicana do Congresso recusando pura e simplesmente de examinar a nomeação para o Supremo Tribunal de personalidade sugerida por Barack Obama no final do seu mandato para substituir o juiz Scalia.

Para muitos, parece que a adesão aos valores “liberais” (os direitos individuais e os controles institucionais) repousou – durante o período de consolidação no pós-Segunda Guerra Mundial – em bases puramente instrumentais, isto é, na capacidade dos regimes democráticos deste período em promover uma alta contínua no padrão de vida para a maioria. Como escrevem Foa e Mounk: “Pode ser que a adesão generalizada à democracia tenha dependido de um rápido aumento nos padrões de vida das pessoas comuns “e que “os ganhos do crescimento econômico tenham se concentrado mais nas mãos dos mais ricos nas democracias que experimentam essa forma de desconsolidação do que em países onde o consenso democrático persiste”[3]. Claramente, não é de surpreender que o mundo anglo-americano – onde a distribuição justa dos frutos da prosperidade foi menos pronunciada do que em outras partes da Europa – seja o primeiro e o mais seriamente afetado pela onda de desconsolidação democrática.

A aliança supostamente inquebrantável entre, por um lado, um regime político de essência democrática baseado simultaneamente no Estado de Direito e nas liberdades individuais, mas também na soberania da vontade coletiva e, por outro lado, um regime econômico baseado na propriedade privada e  no livre contrato, parece ter sobrevivido. Enquanto esses dois regimes deveriam reforçar-se mutuamente e conferir-lhes uma base mais estável, percebemos hoje que se tratava de uma ilusão e que o reforço mútuo só existiu em momento histórico muito particular, em que o primeiro mostrou sua capacidade de domesticar o segundo e controlar seus excessos. No longo prazo, o mercado gera tais desigualdades que mina os próprios fundamentos da democracia, isto é, seu âmago: o princípio igualitário.

A aliança dos dois regimes pode certamente funcionar harmoniosamente e equilibrar os dois elementos quando a democracia é robusta e demonstra capacidade de controlar o capitalismo e constranger as forças de mercado a se adequarem às exigências do interesse geral, isto é, traduzindo-se em benefícios reais – que podem ser desiguais – para todos os grupos sociais. Quando esse circulo virtuoso opera, o controle que a democracia é capaz de exercer no mercado consolida sua própria legitimidade e gera uma adesão que é tanto mais sólida quanto o regime democrático demonstrar sua capacidade de manter a desigualdade dentro de limites aceitáveis %u20B%u20Be de distribuir equitativamente – através de transferências sociais e serviços públicos – os benefícios da cooperação social.

Mas a “globalização desreguladora” – resultado de decisões políticas deliberadas e cuidadosamente ponderadas – priva os Estados nacionais da possibilidade de controlar eficazmente o mercado e se desdobra de modo a impedir o surgimento de instância política supranacional que poderia efetivamente assumir a tarefa. Este dispositivo foi projetado para permitir que as desigualdades reassumissem sua marcha e para que os setores mais ricos monopolizassem os frutos do lento crescimento. A retração ou o desaparecimento de benefícios materiais para o maior número de pessoas – quer dizer, a deterioração da situação para grandes extratos da sociedade – provoca então uma desvinculação da democracia, que assistimos hoje. Essa globalização desreguladora desloca ao mesmo tempo os centros de gravidade do poder e da distribuição de riqueza[4], e aumenta a influência das elites, cada vez mais difíceis de controlar devido à falta de instituições políticas globais. Essas elites favorecem uma desregulamentação que serve a seus interesses e produz uma concentração de renda na extremidade superior da pirâmide.

Portanto o círculo vicioso se desencadea: mais desregulamentação – ou melhor, mais remodelação deliberada de regulamentos em favor da concentração de riqueza e renda – leva a um aumento das desigualdades, o que se traduz em padrões de vida mais baixos para a maioria, reduzindo assim a legitimidade de um regime político ao qual os cidadãos aderem somente quando se traduz para eles em vantagens materiais. O enfraquecimento do legitimidade leva à desconsolidação, enfraquece a atenção pela política, conduz a comportamentos e escolhas ditados superficialmente e não pelas questões reais e, por sua vez, leva a menos controle público sobre a riqueza privada. Por sua vez, esse enfraquecimento do controle público sobre os atores privados resulta em maior globalização, reforça a autonomia das elites, representa um salto à frente na “re-regulação” favorável à minoria mais rica  e leva ao correspondente enfraquecimento da legitimidade democrática já fortemente abalada. Quanto menos os regimes democráticos cumprem sua promessa de controlar os excessos de capitalismo e de distribuir com justiça os resultados do crescimento, tanto menos aparecem como legítimos; e quanto menos eles aparecem como legítimos, mais são capturados por uma minoria que os dobra a seu serviço, acentuando ainda mais os efeitos da desconsolidação destacados por Mounk e Foa. Portanto, não são o capitalismo e a economia de mercado que reforçam a legitimidade da democracia, mas, pelo contrário, a capacidade dessa democracia para controlá-los e assim limitar seus efeitos desiguais. Como diz Robert Kuttner[5]: “um capitalismo sem limites conduz a uma democracia anêmica e a solapa, gerando a pulsão populista.”

O paradoxo é evidentemente que a democracia deve existir para que o capitalismo possa ser objeto dessa limitação, e a democracia deve manter-se robusta com fatores que ultrapassem sua capacidade de controlar o capitalismo, na medida em que o efeito não pode preceder a causa. Isso foi o que aconteceu após a Segunda Guerra Mundial, quando a memória do Grande depressão e a luta contra o nazismo suscitaram uma forte aspiração democrática de verdade, isto é, uma forte aspiração igualitária associada a uma forte consciência de que as sublevações de desigualdade do capitalismo entregues a si mesmas estavam na raiz do desastre histórico que acabara de acontecer. Assim, condições externas levaram a essa limitação do capitalismo que, por sua vez, fortaleceu a adesão aos regimes democráticos.

Desigualdades e desvinculação dos valores democráticos

Existe, portanto, um nexo causal entre a desconsolidação democrática e o fato de que, em período recente, a captura de quase todos os frutos do crescimento econômico por uma pequena minoria dos ricos foi acompanhada por uma estagnação ou mesmo uma regressão do padrão de vida da maioria. Em sua época, Tocqueville também notou que havia duas formas de adesão ao sistema democrático – uma baseada na sua utilidade e a outra no valor intrínseco de seus ideais. Para ele, somente a segunda poderia realmente “consolidar” a democracia. Também enfatizou que ao apoiar o regime democrático por razões exclusivamente utilitárias e consequencialistas, os indivíduos modernos corriam o risco de perder pelos dois lados, pois um regime que não tem a adesão por princípio dos cidadãos perde pouco a pouco as características que lhe permitem produzir a utilidade em que repousa seu poder de atração.

Nos últimos trinta anos, é então a incapacidade – ou a recusa? – dos países ricos em promover uma economia cujos frutos seriam amplamente compartilhados que provoca agora um refluxo, um desincentivo que vai até à suspeita de que os valores democráticos – as liberdades pessoais e os mecanismos institucionais para prevenir o abuso do poder e os excessos autoritários – poderiam não ser companheiros obrigatórios, mas obstáculos a essa promoção de uma prosperidade amplamente compartilhada. O exemplo de países como a China, que experimentaram um progresso econômico sem precedentes, sem sombra de progresso na direção de maior controle democrático do poder ou de maior respeito pelos direitos individuais, também alimenta essa suspeita[6]. Após a Grande Depressão dos anos 1930, a hipótese de Karl Polanyi parece assim encontrar uma segunda confirmação[7]: a extensão sem limites das relações de mercado, quando afeta as próprias bases da sociedade que são o homem e a natureza – como é o caso hoje, após um período de enquadramento institucional pronunciado do mercado – provoca em retorno um choque sob a forma de um questionamento que alcança os fundamentos intelectuais dessa mesma extensão. E neste choque em retorno, os direitos pessoais e as formas institucionais de democracia sofrem um desligamento por parte da população pelo menos tão grande – senão mais – do que aquele que atinge os direitos econômicos de propriedade e de contrato cuja santificação está na base da estagnação dos padrões de vida que afetam a maioria.

Essa assimetria é difícil de entender. Por que direitos econômicos – ainda responsáveis principais pela explosão das desigualdades – continuam a ser objetos de elevada adesão, enquanto os direitos pessoais e os mecanismos democráticos são vítimas de crescente ceticismo? Por que o choque de feedback (ou em retorno) toma um a forma conservadora (racismo, exclusões, fechamento de fronteiras, endurecimento de segurança, tolerância crescente em relação à vigilância cerrada da vida privada pelo poder político, etc.), e não a forma progressista de uma aspiração em limitar os direitos econômicos, em regular o uso da propriedade e sua circulação, para garantir a justiça nos contratos, e para pôr em prática, ultrapassando o esgotamento das formas clássicas do estado de bem-estar, novas formas de controle das desigualdades geradas pelo mercado? Sabe-se que, em qualquer período de crise, as coletividades humanas têm uma tendência a se refugiar em identidades com raízes históricas e que o estrangeiro desempenha classicamente o papel de bode expiatório. Mas esta explicação é um pouco rápida para dar conta da escala do fenômeno.

O equilíbrio entre a soberania popular e proteção das liberdades individuais

Desde as revoluções do final do século XVIII, busca-se o equilíbrio adequado entre dois princípios que pareciam no entanto antitéticos: a soberania da vontade da maioria por um lado e, por outro, a proteção das liberdades individuais contra os abusos desta mesma maioria. Esta pesquisa trouxe a ideia de que nenhum desses dois elementos poderia representa um valor dissociando-se inteiramente do outro. Privado dos contrapesos que são os direitos dos indivíduos e os procedimentos de filtragem, a maioria é capaz de se transformar na opressão das minorias. Mas, inversamente, privada do lastro da vontade coletiva, a proteções dos direitos individuais podem facilmente se tornar obstáculo à manutenção da igualdade na forma da reciprocidade de benefícios, a única que pode basear sua legitimidade.

Em meados do século XX, um regime que podemos denominar “capitalismo democrático” parecia realizar a forma ideal desse equilíbrio. Por um lado, o mercado existia e os direitos de propriedade e contrato eram garantidos. Mas, por outro lado, a circulação de mercadorias, serviços e capital era “enquadrada” em instituições que impediam os efeitos negativo e que impediam o mercado de questionar o caráter democrático da sociedade, quer dizer, a possibilidade da maioria dos cidadãos promover a política que tinha sua preferência e que consistia em crescimento eqüitativo dos padrões de vida – o que não significava uma distribuição igualitária. Os direitos individuais eram respeitados, mas não absolutizados: os direitos de propriedade e contrato, por exemplo, eram submetidos a certas obrigações sociais que os impediam de funcionar como constrangimentos radicais. Os direitos dos indivíduos – e este é um aspecto muito espinhoso – não se estendiam a ponto de colocar em questão o que parecia a muitos como um quadro comum, estável e indispensável. Não se tratavam nem de direitos das mulheres  à igualdade, nem de direitos das minorias culturais ao reconhecimento da legitimidade de suas práticas. Esta dimensão não pode ser ignorada hoje, quando certas pessoas estão convencidas de que as promessas democráticas não podem ser mantidas senão em espaços políticos homogêneos ou onde há um grupo dominante com uma identidade comum forte[8]. Por outro lado, a democracia funcionava, o poder do dinheiro era limitado, as elites não eram todas-poderosas e uma boa parte delas era animada por uma consciência da necessidade de compromissos, mas a maioria reconhecia a legitimidade dos mecanismos institucionais e dos direitos fundamentais que limitavam seu poder e que haviam sido concebidos para isso.

A ruptura do equilíbrio

Mas, há uma geração esse equilíbrio foi perturbado por dois elementos novos. Por um lado, a interpretação dos direitos e liberdades individuais conheceu o que podemos denominar uma “rigidificação”, que os transformou em absolutos, enquanto, inversamente, o princípio da soberania da vontade coletiva sofria contínua erosão, convergindo para a idéia que não cabe à comunidade de cidadãos querer, mas apenas escolher aqueles que querem em seu lugar.

O primeiro desses desenvolvimentos eleva a competição “livre” ao posto de princípio constitutivo da civilização, liberta o direito de propriedade de qualquer limitação, eleva o contratualismo “voluntário” como paradigma da liberdade individual e introduz na idéia de supremacia do direito considerações substantivas que permitem especificamente conferir um estatuto constitucional a esta acepção absolutizada do direito de propriedade. Mais grave ainda, os próprios mecanismos dessa absolutização, em particular a globalização e a concorrência tributária e social entre Estados, parecem colocar deliberadamente essa acepção absolutizada do conceito de propriedade fora do alcance de qualquer controle democrático[9].

A União Européia, em particular, foi projetada para confiar a proteção desta concepção de liberdade e propriedade a instituições amplamente isoladas de qualquer controle coletivo, como se a sua validade normativa não pudesse sequer ser questionada ou discutida.

Além disso, essa concepção é constantemente apresentado não só como fiel aos ensinamentos dos pais do liberalismo, mas também como a única versão possível do movimento crítico às instituições aristocráticas e autoritárias, que seria na sequencia identificado sob a alcunha “liberalismo” e que marcou o final do século XVIII. Assim, ninguém parece hoje poder contestar que, em um mundo de liberdade, um empreendedor tem o direito de deslocar suas atividades para onde achar melhor e que, se o exercício dessa liberdade tem sem nenhuma dúvida consequencias desagradáveis %u20B%u20Bpara alguns, isso não pode justificar colocar tal direito em questão. Essa mesma liberdade deve dar ao empresário o direito de não revender a empresa para um comprador que oferece a manutenção dos empregos; é muito possível que ele esteja motivado pela vontade de não ter um concorrente em seu mercado, mas, novamente, o dogma sustenta que o exercício do direito de propriedade inclui o direito de vender ou não vender, e que qualquer impedimento ao exercício desse direito conduziria à reconstituição da sociedade de privilégios onde a direito, em vez de ser uma regra imparcial de interação entre parceiros iguais, se tornaria um meio de poder peloqual alguns protegeriam seus interesses graças a barreiras artificiais.

Mas os fundadores da ideia liberal não haviam absolutizado o direito de propriedade nem pretendido que a faculdade de usá-lo sem limites fosse suficiente para definir a liberdade. Contrariamente, eles construíram o conceito de um direito de propriedade livre das obrigações e restrições legais que caracterizavam a sociedade hierárquica como instrumento de desfeudalização da sociedade, isto é, como uma ferramenta adaptada à destruição de formas específicas de dependência pessoal que têm a forma de entraves legais.[10] Ora, as formas de dependência pessoal e não-liberdade que se encontram no mundo do capitalismo desenvolvido não provêm mais de privilégios legais, mas de assimetrias de poder e de capacidades desiguais de tirar proveito de regras formalmente idênticas, mesmo que essas assimetrias tenham forte tendência a cristalizar-se novamente em privilégios graças às disposições legais que lhes permitem reproduzir-se. Portanto, se a liberação da propriedade em relação a entraves jurídicos foi o meio relevante de destruir hierarquias baseadas no direito e diferenças de satus, não é mais para conter as assimetrias de poder material que hoje estão na base das formas contemporâneas de dependência. Pelo contrário, é essa mesma liberação que leva agora à re-feudalização da economia e da sociedade, enquanto só a limitação do direito de propriedade, para abrir espaço para a liberdade daqueles que, sem tais limitações, continuarão sob pressão, podem hoje ser a ferramenta relevante para a liberdade individual.

Longe de ser a única maneira possível de criticar e desconstruir a realidade de dependência e dominação, a concepção absolutizada da propriedade reforça essa realidade, rejeitando qualquer possibilidade de analisar e entender como a propriedade privada dos recursos tem consequências negativas para a independência de terceiros, bem como as razões pelas quais essas conseqüências negativas deveriam justificar que, precisamente, o direito de propriedade seja, no contexto atual, despojado de seu caráter absoluto. Podemos sugerir, por exemplo, que um empresário que decida fechar uma unidade de produção que ele considera não lucrativa, poderia ter a obrigação de atribuí-la a um comprador ou mesmo a seus funcionários que apresentem um projeto economicamente viável para fazê-la funcionar[11].

Longe de preservar a liberdade de todos, o enrijecimento deontológico da propriedade e dos contratos reintroduz, portanto, um regime de dominação no contexto completamente transformado do capitalismo contemporâneo. E por sua vez, esse novo regime de dominação – que é profundamente antidemocrático e ao mesmo tempo não-liberal – desencadeia um movimento de rejeição que atinge todos os direitos individuais, e pode levar ao surgimento de regimes autoritários e a extinção da forma de regulação política que chamamos democracia, isto é, uma regulação baseada na ideia de que cada indivíduo tem ao mesmo tempo o mesmo valor e o mesmo direito à independência.

Aqueles que, no presente, não vêem qualquer objeção ao questionamento dessa igualdade pelo poder privado e pela forma como o poder político é capturado pelo dinheiro, assume uma responsabilidade pesada, iniciando um movimento que poderia levar ao desaparecimento das formas políticas que tornaram possível essa igualdade e que não podem sobreviver se não continuarem a garantir-lhes a realidade. Mas pode-se temer que, se a democracia política continuar a tolerar o crescimento da desigualdade, a captura dos frutos do trabalho comum por uma pequena minoria e um funcionamento que faz do empobrecimento de uma grande parte o meio de enriquecimento de outros, que essa democracia política não perca a adesão dos cidadãos que podem simplesmente não querer preservá-la se ela não cumprir sua definição, que é, em vez do que tem acontecido, manter tanto a promessa de igualdade como a realidade do benefício mútuo. Como mostra Robert Kuttner, o surgimento do populismo está, portanto, ligado à erosão do contrato que após a Segunda Guerra Mundial, conseguiu contemplar os interesses do conjunto dos cidadãos; o motor desse surgimento do populismo, acrescenta Kuttner é a ressurreição do capitalismo global desenfreado que serve os interesses de poucos, prejudica a maioria e alimenta a política anti-sistema.

A segunda evolução desloca gradualmente a própria definição de democracia em direção das noções de representação e pluralismo, em detrimento daquilo que parecia constituir seu aspecto central, ou seja, a ideia de que os cidadãos são dotados de igual valor e que, coletivamente, eles têm o poder de implementar os meios para assegurar-se que tal igualdade seja mais real do que nominal. Mas o pluralismo e o conjunto dos dispositivos que protegem o indivíduos contra a tirania da maioria – sejam liberdades fundamentais ou mecanismos institucionais que constrangem as decisões políticas a passarem pelo filtro da deliberação contraditória – não são fins em si mesmos, ao contrário do que quer fazer crer uma tendência atual de estudos democráticos[12]. Estas são maneiras de alcançar alguns resultados, não a verdade ou a prevalência de qualquer vontade popular homogênea, mas uma regulação política e social que honre a promessa de igual valor e que, portanto, satisfaça o requisito essencial de benefício mútuo. Como vemos, hoje, o pluralismo perde sua legitimidade quando, ao invés de promover independência, entra no arsenal de seus adversários.

Essas duas evoluções são antigas e experimentaram picos de intensidade no passado – especialmente no século XIX – mas elas se radicalizaram no período recente e, certamente, são solidárias: é porque os direitos são cada vez mais concebidos como restrições laterais intangíveis – nas palavras de Robert Nozick – que a democracia é cada vez menos concebida como a preeminência de uma vontade coletiva soberana.

Estes dois desenvolvimentos também são acompanhados por dois outros de menor papel, mas com conseqüências igualmente explosivas. Ao mesmo tempo que os direitos individuais se tornaram rígidos, eles se expandiram, de modo que as proteções que conferem a novas camadas da população (mulheres, minorias, imigrantes) parecem agora ameaçar os privilégios daqueles que anteriormente detinham sua exclusividade (homens brancos). Essa mudança revela uma falha ou fraqueza estrutural na arquitetura do capitalismo democrático do pós-guerra: a igualdade de valor não era para todos, porque excluia as mulheres e membros de minorias. Sabemos, por exemplo, que nos Estados Unidos os avanços sociais do New Deal excluíam os afro-americanos[13], e Nancy Fraser enfatizou como as formas de incorporação institucional do mercado no capitalismo do pós-guerra podiam ter por consequências formas sem precedentes de dominação para mulheres e povos do Sul[14].

E ao mesmo tempo que o princípio da soberania popular sofria uma corrosão coneitual (sua legitimidade é cada vez menos sólida, à medida em que é colocado em oposição a possíveis derivas majoritárias), sofria  também um dano mais material devido à emergência de meios de comunicação de massa, que em conjunto aumentam o poder do dinheiro no processo político e a possibilidade de produzir consentimento, do tipo evocado por Noam Chomsky.

As consequências da ruptura

A reação a esses acontecimentos, que toma forma hoje nos Estados Unidos e na Europa, são movimentos políticos que invocam o recurso ao povo contra as elites e contra as disposições liberais destinadas a filtrar e restringir o exercício da soberania popular. Uma das hipóteses levantadas com maior frequência para explicar essa reação é que ela constitui, nas palavras do cientista político holandês Cas Mudde, “uma resposta democrática não liberal a décadas de políticas liberais não democráticas”[15]. Em outros palavras, a crescente rigidificação dos direitos individuais e a minoração da soberania coletiva como consequência provocam uma espécie de contra reação que também se desvia do compromisso alcançado em meados do século XX, mas no outro sentido: por um lado, rejeitando o valor das liberdades pessoais e dos direitos individuais e por outro operando uma hipervalorização da soberania popular como pura vontade.

Duas rupturas do compromisso alcançado em meados do século XX se seguiram, a primeira causando a segunda como reação.

Assistimos em primeiro lugar o desenvolvimento de um liberalismo antidemocrático, isto é, de um governo das elites procurando impor a supremacia de um sistema de direitos absolutos – apressadamente batizado de estado de direito – que promove seus próprios interesses frustrando os povos da possibilidade de expressar e fazer prevalecer sua aspiração por uma distribuição igualitária da riqueza. Mas essa des-democratização, ou essa captura de poder pelo dinheiro, foi ela mesma possibilitada por uma revolução intelectual verdadeiramente de fôlego, que mistura elogios a um liberalismo clássico amplamente imaginário ao ataque contra o estado social, apresentado como o coveiro do direito e da liberdade dos indivíduos.

Como reação, agora vemos emergir partidários – e em breve praticantes – de uma democracia iliberal, cujo conceito foi originalmente introduzido por Fareed Zakaria[16] e explicitamente reivindicado por um líder como Viktor Orban[17]. Esta forma de regime político que supervaloriza a soberania popular seria, portanto, um sinal de uma reação das pessoas contra os direitos pessoais e mecanismos constitucionais que, cada vez mais, aparecem como freios impedindo-os de fazer prevalecer sua aspiração, se não a umcrescimento do nível de vida, pelo menos a uma repartição equitativa dos frutos rarefeitos deste crescimento, e impedindo-os também de controlar as elites que tentam impor seus interesses por meio de um crescimento  fraco e um processo de globalização do qual eles seriam os únicos beneficiários.

O compromisso do pós-guerra baseou-se numa dupla moderação entre um liberalismo que se absteve de absolutizar os direitos – especialmente os direitos econômicos de propriedade e contrato – e uma democracia controlada que aceitava o poder privado do capital na medida em que este consentia em compartilhar seus lucros. Mas, no final dos anos 1970, os dois parceiros começaram a se afastar um do outro, libertando-se do compromisso que estabeleceram por meio de concessões recíprocas, até perder os aspectos de moderação que resultavam de sua associação e a tornavam possível.

Como em todos os divórcios, cada um dos parceiros acusa evidentemente o outro de ter primeiro cometido os excessos que levaram ao rompimento. Os seguidores do liberalismo estavam convencidos de que, na década de 1970, a democracia, ao se tornar social, invadiu o direito de propriedade e o poder de contratar livremente a ponto de impedir a concorrência de desempenhar sua tarefa e o mercado de enviar os sinais corretos. Por outro lado, os defensores de uma democracia consolidada em bases sociais – serviços públicos, direito do trabalho, sistema de aposentadoria e pensões, seguridade social – acusaram os liberais “neo-clássicos” de aproveitarem as oportunidades geradas pelas dificuldades cíclicas do capitalismo democrático pós-guerra (aumento dos preços da energia e dos efeitos em cascata que resultaram), mas também do fracasso cada vez mais evidente dos países do “socialismo real”, para quebrar o compromisso e lançar uma vasta ofensiva de reconstrução das desigualdades que podiam se basear em intensa preparação de artilharia intelectual prévia.

E, como em qualquer rompimento, cada um manifestou fortemente os aspectos de sua personalidade na época do casamento, mas que, uma vez publicamente revelados, tornaram possível entender o quão frágil era sua união. O liberalismo rejeita o Estado social que concebe doravante como uma ameaça à supremacia do direito e como um questionamento à liberdade e à propriedade, que para ele devem voltar ao que considera serem suas próprias fundações, ou seja, a uma forma de liberalismo clássico. Por outro lado, os povos soberanos se mostram cada vez mais reticentes em respeitar os princípios – direitos individuais e freios institucionais – que lhes parecem cada vez mais como ferramentas das quais as minorias mais favorecidas se servem para frustrar suas aspirações e desafiar os padrões de vida e as perspectivas de futuro as quais pensavam ter direito para seus filhos.

Por que o compromisso foi rompido? Sem dúvida, a dimensão intelectual desempenha um papel importante, pois, diante da ofensiva multifacetada para mostrar que o Estado social falseia a concorrência, cria obstáculos para o mercado, cria rendas de situação e restaura privilégios corporativos, os defensores da social-democracia não conseguiram provar que ela era a verdadeira herdeira do projeto Liberal e que sem o controle das desigualdades e das dependências que permite, a operação desregulada dos direitos de propriedade e contrato tem uma tendência inexorável para refeudalizar a sociedade.

Como reestabelecer os vínculos do compromisso? A ideia de taxar a riqueza adquirida no mercado para redistribuí-la em parte na forma de transferências provavelmente sobreviveu. O futuro pertence a outras formas de controle do capitalismo: tributação da riqueza transmitida, acesso não mercantil a bens essenciais, como saúde e educação, bem como a tentativa – que os anglo-americanos chamam de “pré-distribuição” para se opor a redistribuição – de modificar no sentido de maior igualdade a distribuição de rendas primárias[18]. Mas, o purgatório de falsas soluções pode ser longo.

https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia-Politica/Capitalismo-democratico-O-fim-de-uma-excecao-historica-/7/42601

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