Saúde

Sistema público de saúde de qualidade torna uma cidade saudável

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ISABELA SOARES SANTOS – O processo de urbanização brasileiro produziu cidades que geram graves problemas de saúde.

Por questões relacionadas ao desenvolvimento econômico do país, é importante que haja um bom sistema público de saúde que garanta uma população saudável e com qualidade de vida. Diversos países já atentam para a necessidade de prover sustentabilidade às políticas sociais, de modo a garantir o acesso da população aos serviços de educação, saúde, previdência, saneamento e assistência social, para que as suas sociedades possam se desenvolver, enfrentar a pobreza, gerar empregos e produzir riquezas. No Brasil, é o Sistema Único de Saúde (SUS) que garante o acesso das pessoas à saúde. Por isso precisamos que ele seja um sistema público, forte e de qualidade para que possa dar conta dos problemas que afetam a população de forma articulada.O processo de urbanização brasileiro produziu cidades que geram graves problemas de saúde. A falta de acesso à água potável é responsável por doenças infecciosas e parasitárias, doenças de infecção oral-fecal, verminoses e outras, afetando inclusive a Taxa de Mortalidade Infantil pós neonatal, que é a mortalidade ocorrida dos 28 dias a 1 ano de vida, um indicador influenciado pelos casos de desnutrição infantil e infecções a ela associadas. Tal índice reflete as más condições de vida da população, sobretudo as condições socioeconômicas e ambientais.

A falta de coleta e de tratamento de esgoto está na raiz e no agravamento de doenças como poliomielite, hepatite A, giardíase, disenteria amebiana, verminoses em geral pela ingestão de água e alimentos contaminados.

As inundações recorrentes causam condições que propiciam as arboviroses, hepatites, leptospirose (transmitida pela urina contaminada de ratos) e doenças infectocontagiosas como diarreia aguda, cólera e febre tifoide (causada pela salmonela, bactéria encontrada em fezes animais).

A disposição inadequada de resíduos sólidos leva ao aumento de ratos, baratas, escorpião, insetos, etc., com a multiplicação de doenças relacionadas a esses vetores como leptospirose, hantavírus e peste bubônica.

Também relacionado ao processo de urbanização brasileira temos as doenças pulmonares devidas à insalubridade de residências em favelas super adensadas, as doenças mentais agravadas pelas condições estressantes do transporte público e do tráfego e as doenças relacionadas à poluição atmosférica agravada por um sistema de transporte que privilegia os automóveis particulares.

Um projeto de cidade que contemple a universalização do saneamento básico, o controle das inundações, a urbanização adequada das favelas, a melhoria das condições de habitabilidade das residências, o transporte público baseado em veículos não poluentes com tarifa acessível, a mobilidade ativa das ciclovias e vias de pedestres, a arborização extensiva, a implantação de parques públicos, a diminuição da violência no trânsito, todas essas são questões essenciais para avançarmos para cidades mais saudáveis.

Sistema público e sistema privado

O SUS é para ser usado por todos os brasileiros. Qualquer pessoa que precise utilizar um serviço de saúde pode ser atendida por ele sem precisar pagar na hora do uso. Um dos motivos por que precisamos de um bom sistema público de saúde é que há evidências de maior eficiência e efetividade das estratégicas e modelos de cuidado dos sistemas públicos universais, como as apresentadas pelo Relatório anual de 2014 do The Commonwealth Fund, uma fundação americana reconhecida por fazer avaliação de desempenho dos sistemas de saúde, especialmente nos tópicos de qualidade e eficiência dos mesmos.

O SUS tem diversos problemas que precisam ser melhorados, mas é o nosso sistema público que é para todos. O direito de cidadania estende-se a todas as pessoas, principalmente nas sociedades que pactuam pelo bem-estar com adequadas condições de vida da população, nessas sociedades a organização da seguridade social é determinada com base em valores de solidariedade, os quais fundamentam serviços de interesse público.

Já, no setor privado, o uso do serviço de saúde mediante o pagamento é baseado no direito de consumo e ocorre somente se a pessoa tiver como pagar. Do contrário, não poderá usá-lo. Nesse caso, é cada um por si, de modo a prevalecer o valor da liberdade individual traduzido como renda e riqueza. Isso acontece nos mercados privados, em que os mais ricos se beneficiam por ter maior poder de compra enquanto os mais pobres são prejudicados.

Na prática, todos os sistemas de saúde do mundo misturam o público e o privado. É importante compreender, em cada sistema, se aquilo que é de interesse de todos – ou seja, o que é de interesse público – consegue prevalecer sobre o interesse de alguns – portanto, de interesse privado.

No Brasil, por mais problemas que apresente e por mais imbricado que esteja com o setor privado, o SUS ainda é um sistema de saúde de interesse público para todos os brasileiros. Nenhum outro país desse tamanho tem sistema público para todos. O SUS é reconhecido pela OMS como o maior sistema público de saúde do planeta. Portanto, o SUS é nosso e precisa ser melhorado.

O setor privado de planos e seguros de saúde e de prestação de serviços não é um sistema, não funciona como tal e não tem esse objetivo, mas sim o lucro de cada empresa. No setor privado as empresas são concorrentes entre si, o que configura um setor fragmentado, jamais um sistema.

O SUS, sim, é um sistema. Ele foi preconizado para que esteja organizado como tal, em rede, com ações, serviços, clínicas e postos de saúde, hospitais, centros de serviços de apoio à diagnose e terapia (SADT), profissionais que executam as ações e os serviços, recursos físicos, e políticas orientadoras articuladas. Sozinhos, esses pontos não formam uma rede, somente quando seus pontos são interligados (com sistema de informação, logística, comunicação etc.) é que constituem os fios da rede. Isso não ocorre no setor privado pela sua natureza fragmentada, mas ocorre num sistema público a partir da gestão do mesmo.

Além disso, a lógica da atenção à saúde não se resolve se estiver centrada nos eventos hospitalares e agudos, como costuma ocorrer na assistência prestada pelo setor privado. É preciso orientar a atenção pela lógica da Atenção Primária de Saúde (APS).

Atenção Primária é o eixo fundamental

A Atenção Primária de Saúde é onde a população deve ter seu primeiro contato com os serviços de saúde, perto de sua casa. Em cada cidade tem um nome, mas geralmente a referência física da APS é Posto de Saúde, Unidade básica de saúde, Clínica de família, Consultório na Rua, onde trabalham profissionais típicos do nível primário, que são os médicos generalistas, médicos de família, enfermeiros, psicólogos, agentes de comunitários de saúde, agentes de endemias.

Na APS são feitos os serviços que requerem menor densidade tecnológica, mas é ali onde deve ser estabelecido o vínculo do sistema com cada usuário, que sempre que for usar algum serviço deveria ter a APS como sua principal referência. Para isso a APS realiza a “adscrição” do usuário no território em que a unidade está baseada, conhece, assim, quem é sua clientela e se torna sendo desde a porta de entrada do indivíduo no sistema. E deve ser responsável por acompanhar e garantir a trajetória de cada paciente pelo sistema sempre que forem necessários serviços com maior densidade tecnológica, inclusive hospitalar: é a APS que deve ser o vínculo para onde o usuário deverá sempre retornar.

Com isso, a APS tem também um papel orientador, de organizar o sistema a partir desse nível primário, fazendo os encaminhamentos dos usuários para serviços tecnologicamente mais complexos quando necessário e depois trazendo o usuário de volta para a unidade original. Com isso, a APS se configura na base do sistema de saúde, integrando os diferentes níveis de atenção e garantindo o princípio da integralidade. Essa é a lógica de um modelo de sistema público universal de saúde que prevê a APS como sua base no sistema. Ela seria inviável num sistema privado, motivo pelo qual é limitada a proposta do setor privado fazer APS, se restringe ao atendimento a serviços específicos e pela sua natureza não tem como alcançar os resultados que a APS do setor público pode atingir.

A maior parte dos problemas de saúde pode ser resolvida na APS, mas somente se respeitada essa lógica do modelo de sistema público universal de saúde prevista para a APS. Uma das maiores referencias mundiais sobre APS, Barbara Starfield, comparou 11 países e mostrou que os sistemas de saúde orientados pela APS estão associados a uma maior satisfação da população, um menor uso de medicamentos e melhores níveis de saúde.

Ter um sistema público de saúde é fundamental para as cidades

Também precisamos de um sistema público para viabilizar a organização e a gestão do sistema. Sem um sistema seria inviável organizar a atenção à saúde do SUS em mais de cinco mil municípios, mais de 44 mil postos e centros de saúde, cerca de 41 mil policlínicas e clínicas especializadas, 20 mil estabelecimentos de SADT, além dos mais de seis mil hospitais e mil prontos-socorros para mais de 200 milhões de brasileiros.

Outro motivo é ter escala econômica. Alguns indivíduos necessitam gastos com saúde muito maiores que outros. Diluir esses gastos gera viabilidade econômica, que vai ser tão maior quanto maior a população. Essa lógica é reforçada dentro de um contexto em que os custos com saúde são cada vez maiores em razão do desenvolvimento tecnológico e devido a diversas mudanças que reforçam a necessidade da diluição dos gastos com saúde. Entre essas mudanças, destacam-se a transição demográfica, o aumento das doenças crônicas, a aceleração da urbanização não planejada, a gentrificação e o crescimento dos modos de vida pouco saudáveis.

Um sistema público de saúde é fundamental também para serem estabelecidas regras mínimas de segurança e qualidade dos serviços realizados e, ainda, dos recursos físicos e humanos que oferecem os serviços. O estabelecimento dessa qualidade não pode ser previsto por cada empresa de saúde, seja um estabelecimento ou empresa de plano privado; tem de ser realizado por entidade que represente o interesse coletivo e público, e não o interesse privado do lucro. Então, só é possível ser realizado por intermédio do Estado.

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