Política

‘Quem pede intervenção militar não sabe o que foi a ditadura’, diz sociólogo

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Ana Estela de Sousa Pinto – Reginaldo Prandi, homenageado pela USP nesta terça (5), diz que cidadania do país é frágil.

“Há uns malucos querendo a ditadura. Eles não sabem o que querem. Nunca viram, não têm ideia do que foi a intervenção militar no país, porque não têm formação. Não sabem isso e também não sabem mais nada.”

Para o sociólogo Reginaldo Prandi, 72, esse é um dos reflexos do principal problema do país hoje, a frágil cidadania.

Outra consequência é a politização mal definida. “Até no PT, que já teve consistência ideológica, quando o Lula vai preso ninguém sabe o que fazer. Ainda estamos na era do culto à personalidade.”

Religião, trabalho e educação foram temas estudados por Prandi nos últimos 50 anos. O domínio em metodologia de pesquisa o levou a participar, no começo dos anos 1980, da criação do Datafolha, empreitada que atraiu críticas desde o início: de candidatos, institutos concorrentes e colegas marxistas.

Decidido a responder a elas com embasamento teórico, Prandi passou meses estudando a formação da opinião pública nos EUA. Numa época pré-informática, encheu as malas com cópias xerox dos textos que embasariam sua tese. A bagagem, no entanto, se perdeu na volta ao Brasil.

Docente da Universidade de São Paulo desde 1976, o sociólogo será nesta terça-feira (5) o 12º de seu departamento a se tornar professor emérito, homenagem já feita a Fernando de Azevedo, Florestan Fernandes, Azis Simão, Fernando Henrique Cardoso e Chico de Oliveira, entre outros.

O que seus predecessores indicam sobre as questões que têm ocupado os sociólogos?

O primeiro homenageado, Fernando de Azevedo, era envolvido com a transformação da sociedade a partir da educação. Já os seis seguintes estudaram a questão racial. Todos passaram por como a escravidão contribuiu na formação nacional economicamente, populacionalmente e culturalmente.

Depois, sob uma ótica marxista, aparecem estudos sobre o operariado e a classe empresarial.

Dentre os eméritos, o Azis Simão é muito especial. Formou-se em 1930 em farmácia, porque queria ser professor de ciência. Mas teve um descolamento de retina, que lhe tirou a visão.

Formado em farmácia e cego, como virou professor da USP?

Azis era amigo de Mário e Oswald de Andrade e da intelectualidade socialista e anarquista. Frequentava palestras de professores estrangeiros, promovidas pela Faculdade de Filosofia e foi incentivado a se matricular por Fernando de Azevedo.

Ele já não enxergava mais, mas sua irmã o ajudava lendo os livros em voz alta, e ele fez cursos de braile.

Quando se formou, Azevedo o convidou para assistente. Passou em todas as provas, mas seria barrado no exame médico, e foi preciso passar uma lei na Assembleia Legislativa para que ele pudesse ser efetivado.

Como professor e militante, ele fez o primeiro trabalho sobre o voto operário no Brasil.

A gente chama o Azis de “precursor do Datafolha”, porque, mesmo cego, trabalhava com tabelas e números.

São dois pontos em comum com o sr.: formação em biológicas e ligação com pesquisas eleitorais.

Há um terceiro. Assim que me formei, veio a cassação dos professores, e alguns fundaram o Cebrap [Centro Brasileiro de Análise e Planejamento], onde trabalhei de 1971 a 1976, enquanto fazia pós-graduação na USP. Em 1976, também entrei para o corpo docente da USP, mas meu contrato foi barrado.

Não no exame médico!?

Não. Pelo terceiro estágio, uma instituição ligada ao SNI [Serviço Nacional de Informações] que examinava toda contratação. Dependendo do que achavam, o processo nunca chegava à mão do reitor.

Passava um ano, dois, três, até que a pessoa desistia.

Trabalhei mais de um ano de graça, e começaram a falar “Ah, você caiu no terceiro terceiro estágio, pode desistir”. O Azis, que era coordenador da sociologia e muito destemido, resolveu verificar pessoalmente, e o contrato saiu.

Como surgiu sua ligação com pesquisas eleitorais?

Fui trabalhar com o professor Oracy Nogueira, nas matérias de metodologia de pesquisa. Tinha boa formação em estatística e computação, que nessa época estava apenas engatinhando.

Do estudo de veterinária?

Na veterinária, tive um professor maravilhoso, o Pimentel, que sabia tudo sobre modelos experimentais e desenho de amostragem. Na USP, estudei dinâmica populacional e fui orientado por grandes metodólogos.

Aí veio a redemocratização, fundaram-se novos partidos, e fui para o PT. Lula era candidato a governador em 1982, e o PT não tinha nem um tostão para contratar pesquisa eleitoral, e não confiava nas que havia. Bolei um modelo de amostragem que pudesse ser mais fácil, mais rápido e mais barato.

Por que não deu certo no PT?

Quando a gente mostrava os resultados, ninguém acreditava: “Como vamos ficar em quarto lugar? Impossível. Em toda parte a que a gente vai falam que vão votar no Lula!” [O PT terminou mesmo em 4º lugar, com 11% dos votos].

Acharam melhor gastar forças em conquistar votos em vez de levantar intenções, e deram por encerrado.

O seu Frias [Octavio Frias de Oliveira (1912-2007), publisher da Folha] ficou sabendo dessa história e me chamou [leia texto abaixo]. Houve oposição dentro da universidade.

Qual era a crítica?

Que a gente influenciava a opinião pública. Colegas ligados ao departamento de filosofia eram contra a própria ideia de pesquisa, que “reduziria a classe social à massa”.

Passei a achar que tinha obrigação de dar respostas teóricas à altura, e resolvi fazer minha tese de livre docência sobre a formação da opinião pública.

Fui fazer um pós-doc nos EUA, levantei muita informação. Naquela época não tinha internet, tudo era preciso xerocar. A gente ia para Paris só para tirar xerox. E nos EUA não era só deixar o livro e vir buscar depois: você mesmo punha as moedas e tirava as cópias, folha por folha.

Vim embora pronto para fazer minha tese. Mas minha bagagem foi perdida pela Varig. As malas, com toda a pesquisa dentro, não chegaram.

Perdeu toda a pesquisa?

Eu tinha duas saídas: mudar de assunto ou fazer tudo de novo. Meus professores me aconselharam a retomar o tema do mestrado, e resolvi estudar os candomblés de São Paulo. Consegui financiamento, contratei gente. Quando estava tudo pronto chegaram as malas [risos].

Uns seis, sete meses depois.

Tinham sido achadas num depósito de malas perdidas no aeroporto de Tóquio. Nessa altura já havia escolas de marketing e comunicação, que passaram a tratar desse assunto.

E a própria pesquisa eleitoral foi se legitimando sozinha, independentemente do que achavam alguns colegas meus.

Mas há ainda tentativas de desqualificá-la, e na reforma política tentaram proibir a publicação na véspera do voto..

Isso desde sempre. A pesquisa é sempre usada politicamente. Há muita gente que se opõe, mas nunca é por razões científicas, e hoje ninguém mais passa sem elas.

Houve um ano em que foi proibido publicar uma semana antes. A Folha soltava notas na coluna Painel dizendo “A temperatura em São Paulo está mais para Mário Covas. Vai chegar a 34 graus nesta tarde” [risos].

Sempre houve em algum lugar da sociedade ou do governo ou do parlamento alguém interessado em castrar esse tipo de informação. O monopólio da informação sempre foi desejo de empresários, políticos, líderes e dirigentes.

Que questões são fundamentais hoje para a sociologia no Brasil?

Temos um problema muito sério, um velho problema. O Brasil evoluiu muito em termos tecnológicos em vários campos, mas falta muito ainda na formação humana.

Somos muito atrasados em questões de cidadania, de tolerância, de aceitação das diferenças. Nossa escola formadora é muito ruim.

Não há investimento, nenhuma preocupação em formação de gente.

Há uns malucos querendo a ditadura. Eles não sabem o que querem. Nunca viram, não têm ideia do que foi a intervenção militar no país, porque não tem formação. Não sabem isso e também não sabem mais nada.

A falta de formação é o maior problema do Brasil. Não há respeito às tradições e, muito pior, nem às pessoas.

Não há nem sequer uma formação ideológica consistente. As pessoas chutam para um lado hoje e amanhã chutam para o outro, como se fosse absolutamente normal.

Esses movimentos de rua, nada garante que amanhã eles não sejam completamente diferentes, sem consistência, sem continuidade, sem fundamentação ideológica ou científica.

Somos um país que lê pouquíssimo. Nossa cidadania é muito frágil.

Falta politização?

Exatamente por isso: a frágil cidadania leva a uma politização também fragilizada, mal definida, inconsistente. Até no PT, que já foi um partido com consistência ideológica maior, quando o Lula vai preso ninguém sabe o que fazer, porque o PT não existe sem o Lula.

Isso mostra que ainda estamos na era do culto à personalidade. Se você não tem um personagem para assumir uma liderança e resolver todos os problemas do país, ninguém sabe o que fazer.

Enxerga algum foco de mudança?

Sempre sou otimista, porque, quando você menos espera, há um avanço social. Um exemplo claro nesses dias é a Irlanda, que aprovou o aborto. Quando ninguém acreditava, aprovaram o divórcio, depois o casamento gay e agora o aborto.

Existe movimento.

Mas ele vem com muitos custos, é muito atrasado.

Há um problema sério de reconhecimento dos direitos da mulher, dos direitos dos negros. O fato de um negro ganhar a metade do que ganha um branco na mesma atividade e mesmo período é muito, muito sério no país.

Mas, apesar de tudo, sempre há forças sociais que vão para a frente.

O que vai para a frente no caso do Brasil?

Veja, tudo isso surgiu no curso da minha vida, o movimento feminista, o movimento negro. Quando entrei no Cebrap, não existia nem movimento social ainda, e isso faz menos de 50 anos.

Apesar de tudo, isso se constituiu e ganhou força.

É possível.

Plagiando Galileu Galilei e depois o Chico de Oliveira, “Eppur si muove” [“no entanto, se move”, frase que Galileu teria murmurado depois de negar diante da Inquisição sua convicção de que a Terra gira em torno do Sol].

Claro que Galileu pensava nos astros, e Chico, na sociedade e na economia, mas eles têm razão. Elas se movem. Mas como? E com que velocidade?

NO FIM DA DITADURA, SOCIÓLOGO AJUDOU A CRIAR O DATAFOLHA

Em 1982, ainda sob o governo militar no país, houve eleição direta para governadores. O PT, do qual Prandi fazia parte, não tinha dinheiro para pesquisas eleitorais. Especialista em desenho de amostras, o sociólogo esboçou um método mais barato para levantar a preferência dos eleitores: ouvi-los em pontos de fluxo, em vez de em suas residências.

A nova metodologia interessou o publisher da Folha, Octavio Frias de Oliveira, que nos anos 1970 já testara enquetes para levantar a opinião do público. Prandi foi apresentado ao empresário por um amigo em comum, o sociólogo Vilmar Faria.

Ele relata a conversa: “Seu Frias me chamou: ‘Vamos fazer aqui na Folha, Prandi! Você tem todo o meu apoio!’. Perguntei ‘Tenho carta branca para gastar dinheiro também?’. ‘Não, isso não! Só estou te convidando porque o Vilmar me disse que seu método é muito mais barato.’ [risos]”

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/06/quem-pede-intervencao-militar-nao-sabe-o-que-foi-a-ditadura-diz-sociologo.shtml

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