Teoria

Poulantzas, filósofo do Socialismo Democrático

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David Sessions – Marxista inquieto, morto há 40 anos, enxergou os limites da experiência soviética, sem se render à social-democracia. Anteviu a ditadura neoliberal. Dialogou com ideias de Lênin e Foucault. Sugeriu caminhos para reinventar a emancipação.

À medida que o antigo caráter messiânico do marxismo se desvanecia, no final do século XX, muitos se esqueceram de que vagar pelo deserto é muitas vezes a precondição para o surgimento aparecimento de um profeta. Com o colapso do “socialismo real” veio o que parecia ser o triunfo permanente do capitalismo e a destruição lenta, trituradora, de tudo o que resistisse ao avanço do mercado. Mas o renascimento muito inesperado das ideias socialistas no século XXI revela não apenas quanto terreno foi perdido, mas quanta bagagem foi deixada para trás. A presença de um superpoder comunista autoritário não era somente uma prisão ideológica para a política de esquerda fora do bloco oriental, como também uma camisa de força geopolítica: no pico eleitoral dos partidos comunistas europeus, nos anos 1970, a União Soviética nunca guardou segredo de que preferia que o poder no Ocidente fosse ocupado por reacionários.

Agora que essa velha sombra passou e os socialistas estão fazendo uma lenta saída do deserto, eles têm a chance de redefinir-se para um novo século. Isso envolve assumir passos maiores e mais difíceis. Não surpreende que tal esforço tenha mandado os socialistas democráticos contemporâneos de volta aos anos 1970, último momento histórico em que pensadores socialistas desfrutaram da ilusão das possibilidades políticas. Na breve janela anterior à era neoliberal, os socialistas estavam começando a questionar como seria uma política de esquerda que pudesse vencer eleições num sistema democrático. Quem seria sua base? A que tipo de aliança entre classes e grupos identitários ela teria falado? Como agiria em relação a um sistema político “burguês” que os comunistas sempre haviam enxergado como um instrumento irremediável da dominação de classe? Será mesmo possível ser um revolucionário democrático?

Essas questões vêm juntas no trabalho de Nicos Poulantzas, pensador grego que passou a maior parte dos anos 1960 e 1970 em Paris. Lá, Poulantzas argumentou que um entendimento sofisticado do Estado capitalista era fundamental a uma estratégia para o socialismo democrático. Avançando o máximo possível rumo a uma teoria política marxista, ao mesmo tempo em que defendia o papel central da luta de classes, Poulantzas tentou combinar as visões de estratégia revolucionária com uma defesa da democracia parlamentar contra o que chamou de “estatismo autoritário”.

Sinais recentes de um renascimento de Poulantzas, incluindo a reedição de vários de seus livros em francês e inglês, têm muito a ver com o fato de que sua estratégia dual para o socialismo democrático ressoa na tarefa dos socialistas de hoje: entender como usar o Estado capitalista como uma arma estratégica, sem sucumbir a uma longa história de projetos eleitorais falidos e estratégias de realinhamento. As tensões, no pensamento de Poulantzas assemelham-se às tensões atuais dentro da esquerda: retomar o poder é uma questão de expulsar os oligarcas do governo e restaurar uma justiça perdida, ou é necessária uma transformação mais radical do Estado?

O próprio Poulantzas seria capaz de articular uma visão satisfatória para o socialismo democrático? Não se sabe. Mas seu trabalho toca diretamente no coração do problema que o socialismo do século XXI tem de enfrentar.

Em direção a uma teoria estrutural do Estado Capitalista

Nicos Poulantzas nasceu em Atenas em 1936. Em torno dos vinte anos, iniciou uma graduação em Direito na Universidade de Atenas como uma porta dos fundos para a Filosofia. Os textos de Jean-Paul Sartre tornaram-se um canal para o marxismo entre os jovens intelectuais gregos de então. Como Poulantzas explicou mais tarde, era difícil conseguir textos marxistas canônicos originais num país que havia sofrido ocupação nazista, depois guerra civil, depois um governo repressivo anticomunista. Após um breve período de estudos sobre Direito na Alemanha, Poulantzas tratou de ir para Paris, onde logo começou a ensinar direito na Sorbonne e juntou-se aos editores do jornal Les Temps Modernes, de Sartre e Simone de Beauvoir. Projetou-se numa safra de jovens escritores da revista, que publicou seus primeiros escritos sobre Direito e Estado e seu envolvimento com a obra de marxistas britânicos e italianos – entre eles, o princípal teórico do Partido Comunista Italiano, Antonio Gramsci. Sua tese de doutorado de 1964 sobre a filosofia do Direito foi amplamente influenciada pelo existencialismo de Sartre e pelo pensamento de Georg Lukács e Lucien Goldmann, que se harmonizavam com o marxismo hegeliano predominante na França.

Louis Althusser, então um filósofo francês mais marginal mas que logo viria a ser famoso em toda a Europa, discordava dessa volta hegeliana. O seminário de Althusser de 1965, “Lendo o Capital”, foi um evento curioso na história do marxismo que marcou a trajetória intelectual de teóricos bem conhecidos como Étienne Balibar e Jacques Rancière. A moldura e o ordenamento que ele inaugurou da teoria marxista, geralmente descrito como “estruturalismo”, era indissociável da dupla oposição ao economicismo estalinista e o humanismo de pensadores como Sartre. No esquema marxista clássico, a “base” econômica dá origem às “superestruturas” política e ideológica. Em outras palavras, praticamente tudo na sociedade capitalista, de suas instituições políticas a sua cultura, está, em última análise, influenciado pelas leis da economia. Os althusserianos argumentavam que, ao contrário, todos os domínios da sociedade capitalista operam quase independentemente uns dos outros, de modo a reproduzir com mais flexibilidade a dominação capitalista. Claro, eles estão intimamente inter-relacionados, e a economia decide “em última instância” o que terá prioridade. Mas, de acordo com o próprio Althusser, “a hora solitária da ‘última análise’ nunca chega”.

Poulantzas não era um dos principais participantes do seminário “Lendo O Capital”, mas aplicou alguns de seus princípios teóricos ao próprio pensamento sobre Direito e Estado. Como Marx e Engels antes dele, Poulantzas acreditava que o papel fundamental do Estado é defender o poder de classe. Mas o Estado capitalista, argumentava, faz isso de um modo complexo que é obscurecido tanto pela teoria marxista liberal como pela tradicional. O Estado capitalista não é, como imaginam os liberais, meramente uma estrutura política que representa a união dos membros individuais de uma “sociedade civil”. Nem, como no marxismo de base-e-superestrutura, simplesmente uma consequência da dominação econômica do trabalho do capital, uma ferramenta evidente do poder de classe. Ao contrário, ideais liberais – soberania popular, direitos individuais – são o que possibilita ao Estado capitalista agir em favor dos interesses das classes dominantes. Por poder posar de representante do povo, o Estado capitalista é o gestor ideal dos interesses da classe capitalista. Ele pode fazer acordos com as “classes dominadas” necessários para estabelecer a legitimidade da ordem social, enquanto mantém uma distância dos segmentos mais venais e míopes da classe capitalista, cujo instinto natural é perseguir o que Marx chamou de “os mais sórdidos e estreitos interesses privados” sobre o bem-estar das classes dominantes como um todo.

A mudança de ênfase na luta entre capital e trabalho de Poulantzas exigiu dele que repensasse a natureza de “classe” e “luta de classes”. Classes, ele argumentava, nascem na tradicional confrontação “econômica” sobre as condições de trabalho, tempo e salário. Mas são também feitas politicamente, dependendo de como se organizam e exercem pressão no sistema político. Poulantzas argumentava que na verdade a política, na sociedade capitalista, “sobredetermina” – estabelece uma forma de hierarquia complexa e cheia de contradições – outras formas de luta de classes, ao manipular as coisas desde o começo contra as classes dominadas. O mesmo  ordenamento jurídico que possibilita ao Estado capitalista “organizar” os interesses das classes dominantes desorganiza, simultaneamente, as classes dominadas: ele as reconhece, legal e politicamente, apenas como indivíduos isolados, sem reconhecimento da posição econômica em que foram separadas. A separação do político e do econômico feita pelo Estado capitalista isola a luta de classes em fábricas e locais de trabalho, enquanto a verdadeira batalha já foi decidida no próprio funcionamento do sistema político.

Como um trabalho da sociologia marxista militante, seu livro Poder Político e Classes Sociaisatuou sobre um terreno que, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, crescia com novas teorias liberais que celebravam a ordem do pós-guerra como um tempo de crescente integração social e declínio do conflito de classes. A sociologia liberal tendia a ver o crescimento da burocracia, tanto em firmas privadas como na administração estatal, como um resultado inevitável da complexidade da organização social, uma nova era de sociedade “gerencial” ou “industrial” que era, para alguns, um resultado bem-vindo da competição e conflito do capitalismo de laissez-faire. Muitos, embora por certo não todos, tecnocratas e cientistas sociais assumiram uma visão elitista da sociedade do pós-guerra: o compromisso keynesiano gerou ganhos reais para as massas, enquanto mantinha o poder político seguro nas mãos de especialistas racionais.

Poulantzas não foi a única figura do final dos anos 1960 a sentir que a teoria marxista tinha de avançar para demonstrar o que todo o mundo à esquerda dos social democratas acreditava: que a ortodoxia de centro-esquerda da época era um ofuscamento ilusório da real natureza do novo Estado keynesiano tecnocrático. Em The State in Capitalist Society, publicado poucos meses depois do livro de Poulantzas, o cientista político britânico Ralph Miliband demonstrou empiricamente que a transição de um Estado liberal mais limitado ao Estado empresarial, intervencionista, nada fez que ameaçasse a consolidação do poder da classe dominante. Em muitos casos, ele argumentava, não era sequer verdade que as grandes corporações se mantivessem distantes do Estado. Na verdade, elas tinham uma presença direta e constante nos gabinetes executivos e nos aparatos de governança e planejamento econômico. Influenciado pelo sociólogo norte-americano Wright Mills, que tentou diagnosticar a estreita interligação das classes dominantes norte-americanas em A Elite do Poder (The Power Elite, 1956), Miliband reuniu um conjunto de evidências de que diferentes tipos de elites compartilham origem social, bagagem cultural, trajetórias educacionais e mentalidades, e que as exceções foram sutilmente doutrinadas para conformar-se às regras. Não importa o seu acordo com as classes trabalhadoras, o Estado capitalista ainda era o instrumento das classes dominantes.

A abordagem de Miliband do Estado capitalista tem certas afinidades com a visão comunista que era outro alvo primordial de Poulantzas. Para ele, essa percepção via equivocadamente o Estado como uma infra-estrutura neutra, que era corrompida por quem tinha poder sobre ela. Ao contrário, ele argumentou, não faz diferença alguma quem está no comando – porque o Estado capitalista já é uma máquina altamente calibrada para a produção da dominação de classe. Essa era uma questão teórica com grandes consequências estratégicas, argumentou Poulantzas: se a esquerda imaginou que o Estado poderia ter ficado intacto e ser manobrado em direção ao socialismo, precisava despertar. “Lenin disse que era necessário conquistar o poder do Estado esmagando a máquina estatal”, declarou ele, “e não preciso dizer mais nada”.

O Estatismo Autoritário

À medida em que Poulantzas debatia a natureza do Estado, desde o final dos anos 1960 e durante os 70, o consenso pós-ideológico do pós-guerra começava a ser desfeito. Movimentos de esquerda com novas ideias brotavam por todo canto, ao mesmo tempo em que aumentava a filiação nos partidos comunistas e social-democratas tradicionais, aparentemente colocando-os no caminho do poder institucional. Mas em quase toda parte, os passos do socialismo em direção ao poder eram respondidos com uma reação brutal. O medo de um governo de esquerda levou a um golpe militar na Grécia em 1967, e o governo socialista eleito democraticamente de Salvador Allende no Chile foi esmagado por um golpe semelhante – igualmente apoiado pelos EUA – em 1973. No final da década, uma crise econômica complicou ainda mais a situação, anunciando um longo período de recuo do uso do poder estatal para projetos igualitários e de distribuição de renda.

Poulantzas destacou-se entre os pensadores dos anos 1970 ao ver nas ditaduras militares e o início do neoliberalismo como parte de um único cardápio de opções que os governos capitalistas tinham em resposta à crise política e econômica. Há uma visão que persiste obstinadamente, de que a ordem político-econômica dos anos pós-1970 envolvia um enfraquecimento dos Estados-Nações: de que as grandes corporações exigiam a retirada da intervenção estatal na economia, enquanto um sistema cada vez mais global possibilitava aos capitalistas esquivar-se dos governos nacionais. Para Poulantzas, o neoliberalismo era só uma face de uma volta mais ampla que ele chamava “estatismo autoritário”, uma combinação do poder gerencial do Estado keynesiano com um recuo estratégico de algumas de suas funções anteriores. As novas táticas do Estado incluíam submissão deliberada a instituições internacionais antidemocráticas, políticas econômicas que tornaram a vida mais atomizada e precária, e intensificaram a vigilância e a repressão. Em situações extremas, especialmente em países dependentes de maiores poderes “imperialistas”, a crise econômica poderia levar a “formas excepcionais” de capitalismo, como o fascismo ou a ditadura militar. Nos países liberais democráticos avançados, era provável que parecesse uma combinação mais sutil de internacionalismo seletivo, tecnocracia intensificada e violência policial.

No início de sua trajetória, Poulantzas ressaltou a importância de localizar a posição de cada nação numa “cadeia imperialista” global para compreender a forma particular que seu Estado precisava tomar para reproduzir o poder de classe capitalista. Nos anos 1970, ele focou particularmente na dependência emergente dos Estados europeus e suas classes dominantes em relação ao imperialismo dos EUA, expresso no crescente investimento de capital norte-americano na Europa durante os anos 1960. Não era suficiente para a esquerda europeia concluir que a crise do “capitalismo monopolista” estava destinada a destrui-lo desde dentro, como sustentavam muitos partidos comunistas. Por razões estratégicas, eles precisavam entender as relações específicas do imperialismo e as crises que produzia, incluindo as relações entre o “imperialismo de metrópoles” dos Estados Unidos e Europa. O capital norte-americano, argumentava Poulantzas, aumentara sua influência sobre a Europa por meio de investimentos diretos em setores em que as corporações norte-americanas já exerciam um controle internacional altamente consolidado. Ao fazê-lo, conseguiram exercer uma influência econômica ainda maior, definindo padrões para as matérias-primas, insistindo na reorganização do processo de trabalho e na imposição de certas ideologias de gestão.

A resposta para a nova dependência da Europa ou “imperialismo de satélite” não era, como até mesmo alguns liberais franceses argumentaram, a de um Estado-Nação versus “corporações multinacionais” ou, como alguns esquerdistas imaginaram, a oportunidade para uma coalizão que alinhasse a burguesia nacional com a esquerda, contra as forças dominantes do capital internacional. A despeito da internacionalização da economia e do crescimento das instituições supranacionais como a Comunidade Econômica Europeia, Poulantzas insistia que o Estado nacional ainda era o lugar principal da “reprodução” do capitalismo. O próprio aumento de instituições supranacionais era simplesmente parte da transformação do papel do Estado nacional no gerenciamento da economia, facilitando a internacionalização econômica como parte de seus esforços em benefício de sua classe dominante nacional.

Mas agir como o agente principal da internacionalização colocou o Estado nacional capitalista numa posição particularmente vulnerável a crises – e com um leque limitado de respostas. A internacionalização enfraqueceu a unidade das classes dominantes domésticas, conforme o Estado agia em beneficio de certas frações do capital às expensas de outras. Isso colocou em risco a unidade ideológica da nação, apoiando o desenvolvimento econômico desequilibrado dentro do seu próprio território — como ilustrado pela nossa situação atual,  em que megacidades em expansão impulsionam a economia global, enquanto as pequenas cidades e as áreas rurais sofrem um despovoamento e declínio dolorosos. Essas contradições por certo causam tensões políticas e revolta, porque destroem o mito de que o Estado é um árbitro neutro em benefício de toda a nação. (Eles podem, por exemplo, levar as pessoas a pensar sobre “nacionalistas” versus “globalistas”.) “Num certo sentido, o Estado é pego em sua própria armadilha”, escreve Poulantzas. “Não estamos lidando com um Estado todo-poderoso, mas antes um Estado com as costas na parede e a frente posicionada diante de uma vala.

“Estatismo autoritário”, então, era um termo genérico para o tipo de governança capitalista que emergiu no período de pós-guerra e foi apenas acentuado pelas crises políticas e econômicas dos anos 1970 e o aumento da militância popular. Ele usava deliberadamente o termo como um amplo substituto para o que parecia ser a transformação do Estado capitalista: a mudança massiva do poder dos parlamentos para o executivo, o declínio dos partidos políticos tradicionais, a mudança de cada vez mais funções de Estado – de instituições representativas para aparatos burocráticos permanentes controladas pelo poder executivo. Tinha também dimensões de repressão direta: o aumento do uso da violência policial e militar contra populações domésticas, restrições arbitrárias das liberdades civis e o surgimento do governo em base emergencial que transcendia – às vezes permanentemente – o “Estado de direito” normal.

O Estado, o poder e o socialismo (State, Power, Socialism, 1978) foi a principal atualização de Poulantzas a sua teoria do Estado capitalista. Na obra, uma de suas principais tarefas foi pensar através da teoria do poder do filósofo francês Michel Foucault, e articular como o estatismo autoritário, como ele chamou mais tarde, trouxe uma mudança da “força bruta organizada para a repressão internalizada”. Ao contrário de Foucault, contudo, Poulantzas insistiu que tais técnicas disciplinadoras, embora sejam levadas por meio do Estado, são em última análise ligadas de novo à exploração econômica e poder de classe. Poulantzas já havia argumentado que separar o político do econômico, com sua decorrente criação de indivíduos legais atomizados, era parte da infraestrutura do Estado capitalista. Em O Estado, o poder e o socialismo, ele reiterou que dividir os indivíduos para a dominação econômica é o papel primordial dos Estados liberais. Eles institucionalizam continuamente essa fratura, reforçando-a ideológica e materialmente. Em outras palavras, o Estado usa suas próprias práticas para produzir o indivíduo neoliberal. Velhos marcadores de hierarquia social e relacionamentos são substituídos por normas que classificam e medem as pessoas, lembrando-os de seu status de átomos sociais individualizados.

A concepção de Estado de Poulantzas tornou-se progressivamente mais dinâmica: onde ele inicialmente enfatizava suas qualidades funcionais, tipo máquina, ele agora dramatizava suas fraturas e divisões internas, e as contingências introduzidas por sua vulnerabilidade às crises e suas estreitas ligações com a luta de classes. O Estado, na mais famosa formulação de Poulantzas, era “a condensação de um relacionamento de forças entre as classes… As contradições de classe são a própria substância do Estado: elas estão presentes em sua estrutura material e padronizam sua organização”. A insistência de Poulantzas na materialidade dos aparatos do Estado e sua reprodução do poder de classe foi um desafio direto à teorização foucaultiana do poder como um tecido abrangente da sociedade, uma espécie de jogo em que cada ato de resistência era um “movimento” estratégico. “O poder sempre tem uma base precisa”, contrapôs Poulantzas. O Estado “é um local e um centro do exercício do poder, mas não possui poder próprio”.

Dentro e fora do Estado: a estrada democrática para o socialismo

A evolução de Poulantzas em direção a uma concepção mais dinâmica do Estado teve implicações importantes para a estratégia socialista, um dos aspectos de seu pensamento que mais atraiu atenção dos socialistas democráticos contemporâneos. Em seus primeiros trabalhos, o argumento central dessa teoria do Estado capitalista – de que ele era um dispositivo estrutural para a reprodução da dominação de classe – levou-o a afirmar uma tradicional estratégia leninista de “esmagamento do Estado”. Mas conforme Poulantzas tornou-se mais específico sobre a complexidade dos aparatos de Estado e seu status como um campo de força de luta de classes, ele chegou a uma nova conclusão: se o Estado era um conjunto de relações e não uma “coisa”, ele poderia realmente ser cercado ou atacado como uma fortaleza?

Não havia dúvidas de que, em sua forma atual, o Estado agia como organizador da dominação de classe. Mas uma dimensão crucial da teoria de Poulantzas era que, de modos não triviais, as classes dominadas eram já uma parte do Estado. No século XX, a tarefa fundamental do Estado capitalista, de “organizar” as lutas de classes, forçou-o a dar passos importantes – não menos que criar o Estado de bem-estar – para acomodar as demandas da classe trabalhadora. Embora tais conquistas tivessem estado sempre ameaçadas pelo capital, elas ainda eram conquistas que haviam se tornado uma parte verdadeira da infraestrutura estatal. Em meados dos anos 1970, conforme as ditaduras do sul da Europa faziam transição para a democracia, e conforme os partidos comunistas francês e italiano lutavam sobre como participar na política parlamentar, Poulantzas começou a pensar sobre como o equilíbrio de poder entre as classes poderia ser radicalmente mudado, de modo que as posições fracas e marginais em que as classes dominadas já tinham nas lutas pelo Estado pudessem ser transformadas em bases para ruptura e transformação.

Por razões tanto teóricas como estratégicas, Poulantzas reconsiderou a relevância da “duplicidade de poder” das estratégias leninistas destinadas a construir contra-instituições da classe trabalhadora, que num certo momento ficariam fortes o suficiente para “esmagar” o Estado capitalista. Essa estratégia teve origem de um modo deveras ad-hoc na preparação da Revolução Russa em 1917. Para Poulantzas, olhando para os sistemas políticos da Europa Ocidental no final dos anos 1970 era impossível imaginar uma posição inteiramente fora do Estado. Embora as classes dominadas pudessem e devessem construir poder institucional de base à distância do Estado, elas nunca poderiam estar verdadeiramente fora do seu campo de poder. “Hoje, o poder é menos que nunca uma torre de marfim isolada das massas populares”, escreveu ele. “O Estado não é nem uma coisa-instrumento que pode ser tomado, nem uma fortaleza que pode ser penetrada usando um cavalo de madeira, nem ainda a segurança que pode ser quebrada por um roubo: ele é o coração do exercício do poder político”.

A retórica do ”esmagamento” não falhou apenas na visão de que o Estado era mais do que uma “coisa” a destruir. Ela também implicou – como em última análise fez a Revolução de Outubro – uma supressão das instituições da democracia representativa, que poderiam ter servido como uma defesa contra um estatismo autoritário sob novo regime. Poulantzas tentou imaginar um modo como a esquerda poderia liderar simultaneamente tanto a democracia de base, distante do Estado, como uma pressão por transformação radical por dentro dele. Trabalhar por dentro do Estado teria como objetivo produzir “rachaduras” que iriam polarizar o aparato estatal altamente conflitivo em direção da classe trabalhadora, com a assistência de pressão externa de organizações de base. “Não é simplesmente uma questão de entrar nas instituições do Estado para usar suas alavancas características para um bom propósito”, escreveu Poulantzas. “Além disso, a luta deve sempre expressar-se no desenvolvimento de movimentos populares e no surgimento  de centros de autogestão.”

A tentativa de Poulantzas de pensar uma estratégia interna-externa visava objetivo de caminhar pela estreita linha entre o reformismo social democrata (que praticava meramente a política parlamentar de sempre) e uma estratégia leninista revolucionária (que ele viu como potencialmente autoritária e de todo modo destinada ao isolamento perpétuo dos caminhos realmente existentes para o socialismo). A crítica “revolucionária” dos anos 1970 até o presente questionou que isso era simplesmente um reformismo disfarçado. Poulantzas concordou que o risco de cair no reformismo era real, mas sugeriu que tal risco era endêmico para todas as posições revolucionárias no final do século XX. “A História ainda não nos deu uma experiência bem sucedida da estrada democrática para o socialismo”, ele escreveu. “O que ela proporcionou – e isso não é insignificante – são alguns exemplos a ser evitados e alguns erros sobre os quais refletir. … Mas uma coisa é certa: o socialismo será democrático ou não será.”

Um marxismo para o século XXI?

Poulantzas jogou-se por uma janela em Paris em 1979. Em seus últimos anos, parecia estar lutando contra as juntas de seu pensamento – e talvez até contra a própria tradição marxista. Tentou refazer a teoria do Estado capitalista para o século XX e a estratégia socialista para uma era de política democrática. Seus colegas marxistas o acusaram de todo tipo de transgressão no livro: de “escolasticismo”, de reformismo, de abandoar o conceito de classe, de permanecer muito ligado à luta de classes e o poder determinante da economia. Ele considerou que sua própria posição foi tão longe quanto se poderia ir em direção a uma política marxista sem abandonar o compromisso fundamental com o papel determinante das relações de produção. “Se permanecemos dentro dessa moldura conceitual, penso que o mais que se pode fazer para a especificidade da política é o que eu fiz”, confessou ele ao jornal britânico Marxismo Hoje (Marxism Today) em 1979. “Eu mesmo não tenho certeza absoluta de que é certo ser marxista; nunca se tem certeza”.

As ambiguidades da fase final de Poulantzas poderiam ser representativas de todo o seu trabalho. É possível enquadrar a teoria estrutural do Estado capitalista com um sentido dinâmico da luta de classes? Pode a visão de um Estado tipo máquina, cuja infraestrutura infalivelmente cospe dominação de classe, ser reconciliada como uma que “não tem poder próprio”, que meramente reflete o equilíbrio das forças de classe na sociedade? Podemos realmente pensar sobre luta de classes sem dar atenção a sujeitos históricos, à consciência de todas as discriminações e derrotas passadas que, como Marx colocou, “pesam como tormentos no cérebro dos vivos?” Será a estratégia de combinar a luta dentro do Estado capitalista com movimentos populares fora dele um sonho irrealizável, mais que todas as estratégias revolucionárias que vieram antes?

Certamente não há dúvida de que Poulantzas respondeu todas, ou ao menos a maioria das questões que os socialistas democráticos enfrentam hoje. No mínimo o estilo de seus textos, às vezes enlouquecedoramente abstratos e encantatórios, torna seu trabalho um matagal proibitivo para a penetração de leitores de quase todos os níveis de preparação. Mas é também possível argumentar que suas próprias contradições e ambiguidades, que refletem uma era de incertezas que se parece fortemente com a nossa, são precisamente o que torna Poulantzas uma fonte de provocação, hoje. Mesmo que ele tenha falhado ao fornecer respostas aos desafios dos anos 1970, cumpriu enorme papel ao iluminá-los.

Poulantzas chama atenção, sobretudo, para o que o teórico político britânico Ed Rooksby chama de “uma das polêmicas mais antigas e mais fundamentais no pensamento socialista” — ou seja, “como, e em que medida, o poder do Estado capitalista pode ser utilizado para objetivos socialistas”. Relacionado a isso, o sentido de Poulantzas sobre as modulações do Estado capitalista através de sua sucessão de crises é um desafio bem-vindo para narrativas simplistas, inclusive da esquerda, que tingiram as compreensões da história do século XX. Ao tentar entender as fases e formas de crise de um Estado capitalista fundamentalmente contínuo, Poulantzas é um corretivo útil para a noção de um período keynesiano de meio século de forte intervenção do Estado, seguido por um período de desregulação neoliberal marcado por um Estado nacional enfraquecido e neutralizado.

Por razões estratégicas, é importante que a esquerda contemporânea não veja o neoliberalismo nem como um enfraquecimento geral do Estado nacional, nem como um declínio de sua importância estratégica. O estatismo tecnocrático é, isso sim, uma combinação de práticas estatais desenvolvidas durante o século XX, incluindo a delegação seletiva de poderes governamentais para organismos internacionais, que tem ao mesmo tempo desorganizado as classes dominadas e provocado uma resistência social que agora os torna locais de luta e controvérsia.

E então há seus escritos sobre a estrada democrática para o socialismo, esboços que, embora não apresentem respostas antecipadas, deixam uma série de lacunas sugestivas que imploram para ser preenchidos. “Há apenas um caminho certo para evitar os riscos do socialismo democrático”, concluiu Poulantzas em seu livro final, “e ele é manter-se quieto e marchar adiante sob a tutela e a vara da democracia liberal avançada”. Sabemos que esse caminho guarda seus próprios riscos assustadores.

Poulantzas, filósofo do Socialismo Democrático

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