Meio ambiente

Para entender a crise ambiental brasileira

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Claudio Angelo – Em 1954, o jornal Correio Paulistano publicou uma denúncia grave: estrangeiros estavam de olho nas nossas florestas. Segundo o jornal, a multinacional petroleira americana Strandard Oil estava defendendo a criação de uma reserva florestal no Pontal do Paranapanema, extremo oeste do estado de São Paulo, com o objetivo oculto de deixar fora do alcance dos brasileiros uma rica jazida de petróleo que se supunha haver ali.

Na época, a proteção do Pontal, último grande remanescente de Mata Atlântica no interior paulista, era foco de uma disputa entre ambientalistas e grileiros apoiados pelo poder público. A pendenga se arrastava desde 1946, quando o governador Adhemar de Barros anulou uma série de decretos que protegiam a região. A medida foi a maneira que Adhemar encontrou de pagar o apoio eleitoral dos políticos locais – aliados dos invasores.

A campanha do Correio contra a proteção do Pontal incluía dois argumentos além do interesse estrangeiro: primeiro, o de que negar aos “posseiros” o acesso àquelas terras significava condenar uma população inteira à miséria (os ambientalistas cruéis não estavam nem aí para as pessoas). Segundo, o de que todos os títulos de terra do Brasil eram ilegais mesmo, então o melhor a fazer era anistiar os invasores do oeste paulista e começar tudo do zero.

Essa história é contada no magistral A ferro e fogo: A história e a devastação da Mata Atlântica brasileira (1995), do historiador americano Warren Dean. Se ela soa familiar para você, é porque é mesmo: troque 1954 por 2019, Mata Atlântica por Amazônia e o Correio Paulistano por aquele grupão do zapzap e você terá a repetição quase exata dos acontecimentos.

O desmatamento da Amazônia está em franca aceleração no governo Bolsonaro, depois de ter interrompido sua tendência de desaceleração no primeiro mandato de Dilma Rousseff. A recente crise das queimadas, que botou o Brasil no topo da lista das preocupações mundiais nas últimas semanas, é o sintoma mais visível e malcheiroso desse quadro. Tudo isso está acontecendo porque forças muito antigas, que vivem da predação da floresta, ressurgiram com força total com um presidente que vê conservação e desenvolvimento econômico como antagonistas.

O espantalho do complô estrangeiro, brandido pelo presidente e seus áulicos, e a súbita preocupação do atual ministro do Meio Ambiente com a pobreza dos amazônidas, são parte de um script antigo. Nós já sabemos como o filme termina. A Mata Atlântica foi reduzida a 12% de sua cobertura original. O Pontal do Paranapanema foi entregue aos grileiros, desmatado até o último toco e depois tornou-se um bolsão de pobreza e violência no campo no Estado mais rico do país. Como a história é cheia de ironias, o ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro, que hoje contemporiza com grileiros e madeireiros na Amazônia, lançou-se candidato a deputado prometendo balas de fuzil contra o MST – movimento que ganhou corpo no caos social induzido pelo desmatamento no Pontal.

Dean conhecia o Brasil com profundidade suficiente para antecipar isso. Ao historiografar a derrocada da Mata Atlântica, ele na verdade tinha em mente produzir um alerta contra a destruição da Amazônia. Morto em 1994 num acidente de carro no Chile, antes da publicação de A ferro e fogo, não pôde assistir ao país ensaiar tomar o rumo da salvação da Amazônia entre 2005 e 2012, só para depois empoderar como nunca os responsáveis por sua destruição em pleno 2019. Possivelmente teria dito nos anos mágicos da redução das taxas de desmatamento que ainda era cedo demais para comemorar. Afinal, seu livro  mostra com farta documentação que, se há uma coisa que os brasileiros se especializaram em fazer durante cinco séculos, essa coisa foi desperdiçar recursos naturais sem ganhar quase nada com isso.

A obra é um dos três livros que eu considero essenciais para entender o Brasil (além de Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, e O povo brasileiro, de Darcy Ribeiro). Ela relata a história do Brasil desde o ponto de vista da floresta atlântica. O bioma, que viu florescer a sociedade tupi, também foi palco da invasão dos europeus a partir de 1500 – o primeiro e agourento ato dos portugueses na nova terra, lembra o autor, foi cortar uma árvore para fazer uma cruz – e até hoje abriga a maior parte da população brasileira.

Do 22 de abril lá para cá, a caá-eté (“mato verdadeiro”) dos índios sofreu derrota após derrota. Primeiro no ciclo de exploração da árvore que deu nome ao país, depois no estabelecimento de plantações extensivas de cana, depois na mineração de ouro, no pastoreio, no café e, por fim, na industrialização.

A tônica nesse histórico sempre foi a burrice no uso da floresta. Ainda na colônia, viajantes europeus notavam indignados o contraste entre a miséria dos brasileiros e a riqueza do ambiente em que viviam. A voracidade do ataque à mata era tão grande que o botânico alemão Karl Von Martius, em 1810, foi levado a supor que a região da mineração de diamantes de Minas Gerais nunca tivesse abrigado uma floresta tropical e fosse desde sempre uma pradaria.

No século 18, os estaleiros reais portugueses precisavam importar madeira para navios oceânicos da Nova Inglaterra, enquanto no Brasil essa madeira resistente era contrabandeada para outras nações ou simplesmente queimada para a formação de pastagens. Data dessa época, em 1795, a primeira tentativa de impor conservação florestal no Brasil, para preservar estoques de “pau-real ou madeira-de lei”, como eram chamadas as espécies adequadas à construção naval. Os madeireiros enxergaram a medida da Coroa como uma intromissão seu direito de propriedade (mesmo argumento usado séculos depois pelo senador Flávio Bolsonaro para tentar eliminar a reserva legal de florestas da propriedade rural no Brasil). A prática de tocar fogo em madeiras de lei subsistiu: em 1950, segundo um cálculo apresentado por Dean, a Mata Atlântica do norte do Paraná era desmatada à taxa de 150 mil hectares por ano; isso em tese forneceria 75 milhões de metros cúbicos de madeiras, mas as serrarias locais só processavam 300 mil m3 anuais.

A estupidez também fica patente no tratamento dado aos produtos da biodiversidade brasileira. Dean conta que o Brasil importava quinino da Espanha, de má qualidade e deteriorado, quando a árvore da qual a substância era extraída abundava no país. Outros dois produtos, a cochonilha (que fornece um corante vermelho) e o índigo, tiveram uma breve passagem pelo mercado internacional e depois sumiram. Segundo o historiador, o índigo falhou justamente por ser uma cultura menos agressiva à floresta e mais acessível a produtores mais pobres. “O colapso do índigo foi mais do que um incidente na história comercial brasileira: foi um sintoma da dominação social que canalizava os recursos para uma cultura única [no caso, a cana], quase sempre uma cultura que colocava os pobres em desvantagem na produção”, escreve Dean.

É uma desgraça da nacionalidade que não tenhamos aprendido praticamente nada com os erros do passado. Hoje os municípios campeões de desmatamento são também os mais pobres e mais violentos da Amazônia e estão entre os de pior IDH do Brasil. Os alertas da ciência sobre os efeitos do desmate são minimizados como foram nos tempos de José Bonifácio e Alberto Loefgren, e qualquer tentativa orientada pela ciência de impor limites à devastação encontra o mesmo tipo de resistência, dos mesmos grupos. Os produtos da floresta, à notável exceção do açaí, não encontram espaço nas cadeias produtivas, mais uma vez voltadas a uma monocultura que põe os pobres em desvantagem – desta vez a soja. De 1988 a 2005, devido ao desmatamento e às queimadas, o Brasil foi um dos cinco maiores emissores de gases de efeito estufa do planeta. Ao contrário dos EUA, da Europa e da China, aqui a poluição não trouxe crescimento.

A única coisa a diferenciar as trajetórias da Mata Atlântica e da Amazônia é a velocidade: enquanto meros 7.500 km2 de floresta atlântica foram derrubados em um século e meio, entre 1700 e 1850, quando o Brasil era o maior exportador de açúcar do planeta, na Amazônia 7.500 km2 de mata viraram fumaça apenas em 2018. Para não dizer que não aprendemos nada, aprendemos formas mais eficientes de jogar fora nosso patrimônio. Ainda não é tarde demais para ler Warren Dean e escutar seu aviso. Em breve será.

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