Sociedade

Os trabalhadores – Bolsonaro, 100 dias

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Adriano Duarte – O Ministério do Trabalho resistiu durante dois regimes autoritários (1937-1945 e 1964-1985) e dois processos de redemocratização (1945-1947 e 1985-1988), com modificações. Agora segmentado e incorporado a outras pastas, indica a vitória do projeto neoliberal: “O mercado acima de tudo, os indivíduos acima do todo”

O Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (MTIC) foi criado pelo decreto-lei n° 19.433, de 26 de novembro de 1930, exatas três semanas após do “movimento de 30”. Segundo seu primeiro titular, Lindolfo Collor, era o “ministério da revolução”.

Mas o principal papel atribuído ao ministério era mediar as relações entre capital e trabalho. Por isso, nasceu carregado de polêmica: para uns, era comunismo mal disfarçado; para outros, um reacionarismo comandado pelo capitalismo internacional; para outros ainda, era o responsável pela invenção da questão social.

Do ponto de vista dos trabalhadores, sobretudo dos militantes, não restava dúvida: o ministério nascia para disciplinar sua autonomia organizativa e conter suas ações reivindicatórias. Do ponto de vista patronal, por outro lado, ele promovia uma intervenção indevida do Estado. Para o Estado, por fim, a “questão social” se resolveria com a superação da luta de classes. As palavras de ordem passavam a ser: colaboração e conciliação.

Entre 1917-1920, o Brasil enfrentou um grande surto de greves – entre elas, a primeira greve geral de sua história, iniciada em julho de 1917. O clima de mobilização dos operários continuou na década de 1920.

Convulsionado pela Primeira Guerra, o mundo assistiu ao acirramento dos conflitos de classe. Em outubro de 1917, eclodiu a revolução Russa, dando origem ao primeiro Estado socialista da história. Na Alemanha, a derrota no conflito criou as condições para o surgimento de uma República Socialista na Baviera.

A Hungria anunciou a “República Húngara dos Conselhos”. Na Itália, assistiu-se ao biênio vermelho, com ocupações de fábricas e a iminência de uma revolução comunista, impulsionada pela criação de mais de 150 mil conselhos operários. O socialismo estava na ordem do dia e parecia uma questão de tempo sua disseminação pelo velho continente.

A reação não tardou. A Rússia mergulhou em uma guerra civil que durou cinco anos. Na Alemanha, temendo os efeitos devastadores de uma guerra civil, os social-democratas se aliaram aos partidos burgueses e reprimiram os radicais de esquerda. Uma aliança militar de forças conservadores liquidou o socialismo na Hungria.

Mas onde a derrota socialista teve efeitos mais “edificantes” foi na Itália. Como resposta ao biennio rosso, em março de 1919, Benito Mussolini criou o movimento fascista. No início, um agrupamento paramilitar reunindo soldados, trabalhadores, desempregados, amedrontados com a ascensão dos comunistas e o crescimento do capitalismo monopolista. Em 1921, o movimento se transformou em partido político. Em 1922, a convite do rei Vitorio Emanuel, Mussolini assumiu o governo da Itália. O mundo emergia dos horrores da guerra dividido entre duas alternativas visceralmente antagônicas: de um lado, a revolução comunista; de outro, o fascismo.

O MTIC foi criado nesse cenário de crescentes tensões. De um lado, o esgotamento da oligarquia da primeira República e a sua incapacidade de lidar com a crescente presença operária e suas demandas por direitos. De outro, a inconciliável polarização entre a revolução social e a contrarrevolução fascista.

O movimento de 30 operou uma mudança significativa no modo de gerenciar os conflitos de classe. O empenho era incorporar as diferentes classes ao projeto de desenvolvimento nacional. Como um grande corpo, a sociedade passou a ser concebida como um conjunto de órgãos que cumpririam funções específicas. Os trabalhadores, pela primeira vez, eram chamados a participar (mas não a decidir) do grande corpo da nação.

O início do fim

Inspirada no “sucesso” do corporativismo e como estratégia para conter a ação autônoma do movimento operário, produzindo anteparos ao avanço do comunismo, a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), de 1943, é caso único de uma legislação criada no entreguerras que resistiu ao próprio regime que a criou. Mais que isso, a CLT e o MTIC atravessaram dois regimes autoritários (1937-1945 e 1964-1985), dois processos de redemocratização (1945-1947 e 1985-1988) e persistiram, com modificações.

Como explicar essa longevidade? Por um lado, ela resulta da percepção dos empresários de que a criação de canais institucionais para gerir os conflitos foi capaz de estabelecer condições adequadas para o acúmulo de capital. Por outro, a Justiça do Trabalho e a CLT criaram uma colcha de proteção para trabalhadores e, principalmente, disseminaram uma linguagem de direitos na qual o movimento operário organizado passou a se sustentar.

A contragosto dos patrões, a Justiça do Trabalho tornou-se, num país profundamente desigual, de Judiciário extremamente elitista e quase inacessível, a única referência a que milhões de brasileiros têm acesso.

Mas como se rompeu esse equilíbrio tenso de quase 80 anos, chegando à extinção do Ministério? Esse foi um longo processo no qual também se mesclam profundas transformações internacionais com as especificidades do jogo político local.

O que vigorou, desde a criação do Ministério, foi a crença compartilhada de que era papel do Estado concentrar-se no crescimento econômico, no bem-estar da população e na expansão do emprego – e que políticas fiscais denominadas genericamente como “keynesianas” eram implantadas para assegurar ciclos de negócio e garantir um nível de emprego razoável.

A eleição de Fernando Collor de Mello, em 1989, foi o marco inicial do fim desse acordo. E o início do que se poderia chamar de “neoliberalismo como política do Estado”, continuado depois pelos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso. Interrompido entre 2003 e 2016, ele é retomado hoje com fúria dantesca.

Dias piores virão

A expansão da informalidade e a multiplicação da vulnerabilidade são resultados das transformações do mundo do trabalho nos últimos 30 anos. É cada vez maior o número de trabalhadores informais e daqueles que jamais voltarão a encontrar um emprego com registro em carteira ao longo de suas vidas. A insegurança é a regra.

A estabilidade é uma condição cada vez mais rara na experiência de trabalho de homens e mulheres: precariedade e instabilidade são as experiências mais comuns para quem ingressa no mercado de trabalho hoje. É este o quadro estrutural: redução no número absoluto de trabalhadores industriais, redução no número de sindicalizados, aumento do desemprego estrutural e debilidade geral dos movimentos de trabalhadores que os patrões se sentiram estimulados a liquidar o Ministério do Trabalho, na expectativa de que não haveria grande resistência. Assim, rompeu-se o tênue equilíbrio no qual o Ministério se sustentou por 89 anos.

Este é apenas o início da desregulamentação do mercado de trabalho. Nessa ordenação, o papel do Estado é, no máximo, criar e fortalecer uma estrutura que dinamize a liberdade e o individualismo. O poderoso mantra do neoliberalismo é a liberdade. Afinal, quem não deseja ser livre?

Entretanto, neste caso, a liberdade diz respeito à defesa da propriedade privada e do livre empreendimento individual no mercado livre, às custas dos direitos e do bem-estar da sociedade. Lembra a famosa frase de ex-primeira ministra britânica Margareth Thatcher: “A sociedade não existe, o que existe são os indivíduos”. Uma versão atual desse princípio seria mais ou menos assim: “O mercado acima de tudo, os indivíduos acima do todo”.

A prática neoliberal é sempre hostil a toda forma de solidariedade social que imponha restrições à acumulação de capital: sindicatos independentes, movimentos sociais, partidos políticos de trabalhadores serão ou disciplinados ou destruídos, “em nome da sacrossanta liberdade individual do trabalhador isolado”, como diz David Harvey.

Portanto, não há nada de surpreendente na extinção do MTIC. Ela é parte do ataque a todas as formas de organização do trabalho e aos direitos do trabalhador, prometidos pelo governo eleito em 2018.

Os conflitos sociais tendem a se acirrar, e a pobreza a aumentar exponencialmente. A resposta será o aumento da vigilância e o fortalecimento do braço repressivo do Estado para proteger os interesses “individuais” e corporativos, reprimindo as dissensões. A defesa do armamento da população, o chamado aos militares e o recrudescimento do discurso belicista não são meros efeitos colaterais, são parte da estratégia de manutenção da ordem em uma sociedade cada vez menos democrática e mais individualista.

Resta pouca dúvida de que o país voltará aos padrões sociais da década de 1920, em que predominava o liberalismo sem a “interferência danosa” da democracia: Estado mínimo e um mercado de trabalho que pressupõe o encontro direto de dois indivíduos (de um lado, o vendedor da força de trabalho; de outro, o comprador).

A oposição ao que representa o Ministério vem de longe. Basta lembrar o discurso do presidente FHC, em 1995, anunciando seu desejo de “sepultar a era Vargas”. Na prática, isso significava aprofundar as políticas neoliberais.

Este longo percurso foi coroado com a eleição, em 2018, do mais transparente projeto de ataque aos interesses dos trabalhadores na história do Brasil. Ao completar 100 dias de mandato, é cada vez menor o número de eleitores que espera algo positivo desse governo. Um tipo de projeto de “democracia sem direitos”. Que esse projeto tenha sido vitorioso nas urnas é um fenômeno arrebatador, que precisa ainda ser compreendido. O tamanho do retrocesso ainda não está claro. Mas, ao que tudo indica, não ficará apenas na extinção deste Ministério. Ataques piores virão.

https://diplomatique.org.br/os-trabalhadores-bolsonaro-100-dias/

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