Teoria

Oriente e Ocidente: do cristianismo ao marxismo

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Domenico Losurdo – Nas­cido no co­ração do Oci­dente, com a Re­vo­lução de Ou­tubro, o mar­xismo se di­fundiu por todo o mundo, pe­ne­trando com força em países e áreas em con­di­ções econô­micas e so­ciais mais atra­sadas e com uma cul­tura muito di­fe­rente. Tendo atrás de si a tra­dição ju­daico-cristã, o mar­xismo oci­dental, como vimos, não poucas vezes evoca mo­tivos mes­si­â­nicos (a es­pera por um “co­mu­nismo” con­ce­bido e sen­tido como a re­so­lução de todos os con­flitos e con­tra­di­ções e, por­tanto, como uma es­pécie de fim da his­tória). Mas o mes­si­a­nismo está fran­ca­mente au­sente numa cul­tura como a chi­nesa, em geral ca­rac­te­ri­zada, em seu de­sen­vol­vi­mento mi­lenar, pela atenção re­ser­vada à re­a­li­dade mun­dana e so­cial.

A ex­pansão pla­ne­tária do mar­xismo é o início de um pro­cesso de dis­tan­ci­a­mento, que é a outra face de uma re­tum­bante vi­tória. É aquilo que his­to­ri­ca­mente se ve­ri­ficou no caso das grandes re­li­giões. No que se re­fere ao cris­ti­a­nismo, que não por acaso En­gels in­sis­ten­te­mente com­para com o mo­vi­mento so­ci­a­lista, a di­visão entre or­to­doxos, de um lado, e pro­tes­tantes e ca­tó­licos, de outro, cor­res­ponde, grosso modo, à di­visão entre Oci­dente e Ori­ente.

A certa al­tura, entre o fim do sé­culo 17 e o início do sé­culo 18, o cris­ti­a­nismo pa­recia prestes a se ex­pandir am­pla­mente também no Ori­ente asiá­tico: go­zavam de grande pres­tígio e exer­ciam no­tável in­fluência na China os mis­si­o­ná­rios je­suítas, que le­vavam con­sigo co­nhe­ci­mentos mé­dicos e ci­en­tí­ficos avan­çados e, ao mesmo tempo, se adap­tavam à cul­tura do país que os hos­pe­dava, ren­dendo ho­me­nagem a Con­fúcio e ao culto dos an­te­pas­sados.

Porém, di­ante da in­ter­venção do papa em de­fesa da pu­reza ori­gi­nária da re­li­gião cristã-ca­tó­lica, o im­pe­rador chinês re­agiu fe­chando as portas do Im­pério do Meio aos mis­si­o­ná­rios. O cris­ti­a­nismo era bem-vindo quando acei­tava sua sig­ni­fi­cação e pro­movia o de­sen­vol­vi­mento ci­en­tí­fico, so­cial e hu­mano do país em que era cha­mado a operar; era, no en­tanto, re­pe­lido como corpo es­tranho quando visto como uma re­li­gião que pro­movia uma sal­vação so­bre­na­tural nem um pouco res­pei­tosa com a cul­tura e os laços hu­manos e so­ciais vi­gentes no país em que se en­con­trava.

Algo se­me­lhante acon­teceu com o mar­xismo. Já com Mao, o Par­tido Co­mu­nista Chinês pro­moveu a “sig­ni­fi­cação do mar­xismo” e com isso ga­nhou im­pulso para a luta de li­ber­tação do do­mínio co­lo­nial, para um de­sen­vol­vi­mento das forças pro­du­tivas capaz de pos­si­bi­litar a re­a­li­zação da in­de­pen­dência também no plano econô­mico e tec­no­ló­gico, para o “re­ju­ve­nes­ci­mento” de uma nação de ci­vi­li­zação mi­lenar, sub­me­tida pelo co­lo­ni­a­lismo e pelo im­pe­ri­a­lismo ao “sé­culo de hu­mi­lha­ções” ini­ciado com as guerras do ópio.

Longe de ser ne­gada, a pers­pec­tiva so­ci­a­lista e co­mu­nista é or­gu­lho­sa­mente pro­cla­mada pelos di­ri­gentes da Re­pú­blica Po­pular da China: tal pers­pec­tiva, porém, está des­pida de todo ca­ráter mes­si­â­nico; além disso, sua re­a­li­zação está li­gada a um pro­cesso his­tó­rico muito longo, no de­correr do qual a eman­ci­pação so­cial não pode ser se­pa­rada da eman­ci­pação na­ci­onal. E, de novo, o re­púdio provém do Oci­dente, guar­dião da or­to­doxia dou­tri­nária, do mar­xismo oci­dental.

Este, agora, fus­tiga o mar­xismo ori­ental, que é pin­tado como des­pro­vido de cre­di­bi­li­dade e, por­tanto, banal do ponto de vista de um mar­xismo fas­ci­nado pela be­leza do fu­turo re­moto e utó­pico que ele mesmo evoca, e cujo ad­vento pa­rece ser in­de­pen­dente de qual­quer con­di­ci­o­na­mento ma­te­rial (quer se trate da si­tu­ação ge­o­po­lí­tica ou do de­sen­vol­vi­mento das forças pro­du­tivas), por ser de­ter­mi­nado ex­clu­si­va­mente ou de modo ab­so­lu­ta­mente pri­o­ri­tário pela von­tade po­lí­tica re­vo­lu­ci­o­nária.

O de­sen­canto, o dis­tan­ci­a­mento, a cisão de que aqui se fala não visam so­mente a China: se­guido pelo mar­xismo oci­dental com atenção par­tí­cipe e apai­xo­nada en­quanto opunha re­sis­tência épica a uma guerra co­lo­nial de dé­cadas que teve como pro­ta­go­nistas, pri­meiro, a França, de­pois, os Es­tados Unidos, em­bora hoje quase se­pul­tado no es­que­ci­mento, é o Vi­etnã que está em­pe­nhado na pro­saica ta­refa da edi­fi­cação econô­mica. A pró­pria Cuba já não sus­cita o en­tu­si­asmo dos anos em que lu­tava contra a agressão mi­litar exe­cu­tada (sem su­cesso) em 1961 e por longo tempo pre­pa­rada por Washington.

Agora que o pe­rigo da in­ter­venção mi­litar passou a ser re­moto, os di­ri­gentes co­mu­nistas de Cuba al­mejam re­forçar a in­de­pen­dência no plano, também e so­bre­tudo, econô­mico, e para al­cançar esse re­sul­tado sentem-se obri­gados a fazer al­gumas con­ces­sões ao mer­cado e à pro­pri­e­dade pri­vada (ins­pi­rando-se de modo bas­tante cau­te­loso no mo­delo chinês). Pois bem, a ilha, que já não se as­se­melha à utopia em pleno de­sen­vol­vi­mento, mas se re­vela às voltas com as di­fi­cul­dades pró­prias do pro­cesso de cons­trução de uma so­ci­e­dade pós-ca­pi­ta­lista, mostra-se bem menos fas­ci­nante aos olhos dos mar­xistas oci­den­tais.

Quando es­tava em seu es­tágio ini­cial, aquele da luta mi­litar pela in­de­pen­dência po­lí­tica, a re­vo­lução an­ti­co­lo­nial ra­ra­mente sus­citou no mar­xismo oci­dental a atenção em­pá­tica e o in­te­resse teó­rico que ela me­recia; agora que a re­vo­lução an­ti­co­lo­nial está em seu se­gundo es­tágio, o es­tágio da luta pela in­de­pen­dência econô­mica e tec­no­ló­gica, o mar­xismo oci­dental reage com uma pos­tura mar­cada pelo de­sin­te­resse, pelo desdém, pela hos­ti­li­dade. A cisão entre os dois mar­xismos se deu pela in­ca­pa­ci­dade do mar­xismo oci­dental em re­co­nhecer a gui­nada ocor­rida no sé­culo 20.

En­quanto se adensam as nu­vens de uma nova grande tem­pes­tade bé­lica, tal cisão se mostra ainda mais la­men­tável. É hora de dar cabo dela. Na­tu­ral­mente, nem por isso se dis­si­parão as di­fe­renças que sub­sistem entre Ori­ente e Oci­dente no que se re­fere à cul­tura, ao es­tágio do de­sen­vol­vi­mento econô­mico, so­cial e po­lí­tico, e às ta­refas a serem en­fren­tadas: no Ori­ente, a pers­pec­tiva so­ci­a­lista não pode abrir mão de con­cluir, em todos os ní­veis, a re­vo­lução an­ti­co­lo­nial; no Oci­dente, a pers­pec­tiva so­ci­a­lista passa pela luta contra um ca­pi­ta­lismo que é sinô­nimo de apro­fun­da­mento da po­la­ri­zação so­cial e de cres­centes ten­ta­ções mi­li­tares.

No en­tanto, não vemos mo­tivos para a trans­for­mação de tais di­fe­renças em an­ta­go­nismo. So­bre­tudo agora que a ex­co­mu­nhão do mar­xismo ori­ental pelo mar­xismo oci­dental pro­moveu o fim, não do ex­co­mun­gado, mas do ex­co­mun­gador. A su­pe­ração de todo com­por­ta­mento dou­tri­nário e a dis­po­ni­bi­li­dade de se con­frontar com o pró­prio tempo e de fi­lo­sofar em vez de pro­fe­tizar são a con­dição ne­ces­sária para que o mar­xismo possa re­nascer e se de­sen­volver no Oci­dente.

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