Sociedade

O Feminismo do tapete vermelho

Tempo de leitura: 7 min

Naiara Bittencourt – A questão é qual conteúdo e qual feminismo está sendo discutido.

Assédio. Estrelas do cinema. Empoderamento. Denúncia. Vitimismo. Liberdade Sexual. Essas palavras tomaram as redes e a mídia nos últimos tempos. Nesta semana esteve em destaque o debate pautado nos tapetes vermelhos do Globo de Ouro entre Oprah Winfrey e Catherine Deneuve sobre assédio sexual e denúncia. E nós continuamos falando sobre o “moralismo puritano” do feminismo estadunidense e sobre a “libertinagem libertária” das francesas.

A questão é qual conteúdo e qual feminismo está sendo discutido. Qual a relevância desse debate para nós e sobretudo quem está falando.

Não é negar o impacto que essas personalidades têm no público e especialmente nas mulheres. O poder de influência de Oprah é impressionante como mulher negra no lugar que ocupa (tanto é que seu apoio foi decisivo para a eleição de Obama nos EUA). Assim como as 100 atrizes francesas que assinaram o manifesto sobre as arbitrariedades das denúncias sobre assédio. Ocorre que apesar de aparentemente opostas, as duas derivam do mesmo viés: o liberalismo individualista (com pautas de autonomia e liberdades individuais, autonomia do mercado e fuga das articulações e conquistas coletivas). E acabam por tratar do problema real do assédio e da violência de gênero como questões de superação pessoal e “empoderamento” das vítimas e não como estrutura de poder indissociada das relações raciais e de classe.

Denunciar o assédio sexual– ou denunciar a própria denúncia como fazem as francesas –  ainda que não seja nada fácil, é incomparável para quem tem poder, dinheiro e status e para quem “acostuma-se” com a barbárie cotidiana de violência (para quem vê na rotina o feminicídio encoberto pelo discurso de “crime passional”, a agressão e perseguição doméstica, as “encoxadas” nos transportes coletivos, as palavras asquerosas nas ruas, a pedofilia e a pornografia infantil, o abandono social).

Se as “superstars” reverberam, onde estão aquelas incontáveis mulheres cujos nomes se perdem nos créditos finais dos filmes? Aquelas que trabalham na maquinaria, na limpeza, na maquiagem, etc. As trabalhadoras do cinema que jamais serão indicadas ao Oscar e que jamais teriam sua voz ouvida da mesma forma. O tempo de silenciamento das mulheres realmente acabou?

Além disso, também é fato que vemos a denúncia do assédio se transformar em moeda de troca, reducionismo. É só pensarmos como é nossa racionalidade midiática e jurídica: quase ou nenhuma atenção e assistência às vítimas e uma superexposição aos assediadores. Ou das denúncias serem meros discursos estratégicos nos tribunais virtuais totalitários com interesses escusos no mercado e na política – e nisso acertam as francesas.

Mas também não é uma questão de simples empoderamento. O liberalismo vem encampando e levando o debate, na capacidade exemplar que o capital coorporativo das grandes indústrias culturais têm de se espraiar para as temáticas pelas quais lutamos e levá-las amortecidamente, de forma suavizada.

É relativamente simples propagar a liberdade sexual individual e vender nichos de mercado do sexo e da pornografia para “mulheres empoderadas”. Mas não tão simples foi equiparação dos direitos trabalhistas às domésticas, em que 94% das trabalhadoras são mulheres no Brasil, que só ocorreu em 2012, com uma lentidão absurda na sua regulamentação.

Enquanto houver uma estrutura de poder altamente desigual e vertical, que exige favores e funciona a base da violência para ascensão (e isso parece se exacerbar no cinema e na televisão pela sua repercussão midiática), a sexualidade é a afirmação desse poder.

E isso delimita papéis de gênero e subposições raciais, mas sobretudo se explicita em determinações de classe. É por isso o risco do bradado “empoderamento” que tratam de faces distintas de uma mesma moeda do feminismo liberal.

De um lado, o de Oprah, denunciado como vitimista, mas que é a voz da 6ª mulher mais rica do mundo, imagem da meritocracia estadunidense de ascensão social – do “você quer, você luta, você consegue” – como se não fosse a exceção da estrutura racista dos EUA. Sua representatividade e força são incontestáveis assim como seu forte e bela fala no Globo de Ouro. Porém seu discurso não abdica da lógica de superação individual no interior de uma estrutura capitalista que utiliza essencialmente do racismo e do patriarcado para se sustentar. É a busca pela reformulação do “Sonho Americano” ou “da Procura pela Felicidade” sem mencionar que são impossíveis senão em casos isolados na estrutura desigual da “Terra da Liberdade”.

De outro, as atrizes francesas que se revoltam com o “conservadorismo” e o “denuncismo” como formas de limitar a liberdade sexual. Segundo elas “nós também somos suficientemente esclarecidas para não confundir uma sedução desajeitada com agressão sexual”. Mas que tipo e para quem a liberdade sexual se refere? Quem é a mulher empoderada e sexualmente bem resolvida a que se referem? É só lembrarmos da pesquisa do IPEA no Brasil em 2014, em que 58,5% dos entrevistados acreditam que se as mulheres soubessem se comportar haveria menos estupros e 27% concordam que a mulher deve satisfazer os desejos sexuais do marido, mesmo sem vontade. Além disso, reiteram o discurso equivocado da separação do público e privado como se o Estado devesse se abster de determinadas – ou da maioria das – intervenções.

Enquanto discutimos a liberdade sexual ou o empoderamento das estrelas, temos 14% de mulheres desempregadas no Brasil, 12 registros de feminicídios e 135 estupros por dia (formalizados!). Não debatemos com profundidade a violência doméstica, a segregação ocupacional, a divisão sexual do trabalho, a privatização da educação e da saúde e a redução do número de vagas nas creches.

E aí está, se o feminismo se ampliou – e isso é inegável – não significa necessariamente que se popularizou. Enquanto as pautas de liberdade sexual se sobrepuserem de maneira completamente desproporcional à autonomia econômica, à precarização do trabalho e de suas condições, continuaremos tremulando as bandeiras de um feminismo liberal, apoiado pelos veículos de comunicação hegemônicos e mercados fornecedores que adoram vender camisetas que anunciam a “feminist revolution” (em inglês ou francês, claro) e com estampas psicodélicas do rosto de Frida Kahlo.

O patriarcado é a mesma de estrutura de poder que “autoriza” e “legitima” a hierarquização e divisão entre os homens e mulheres, que acha tolerável (ou até positivo) a apropriação do corpo feminino como público com os assédios verbais e físicos nas ruas e que abusa das mulheres sexualmente no trabalho. Mas o patriarcado não é independente. Como um nó que se forja com o capitalismo e com o racismo, se torna completamente simplista e ridículo debater um independente do outro.

Tratar do assédio ou violência de gênero sem a centralidade no trabalho e sem observar as diferenças de classe é recair na abstração que atinge um número irrisório de mulheres “super-poderosas” e “ricas”. Mulheres que acham barbárie (e com razão) o assédio nos bastidores do cinema, mas que podem não se opor à redução dos direitos trabalhistas, à redução do Estado nos serviços básicos de saúde, educação e assistência social, à intervenção imperialista e de guerra de seus países e que, não raro, têm dezenas de empregadas para ampará-las.

Queremos certamente tomar as rédeas de nossa história definitivamente. A questão é quem serão as protagonistas dessa construção e de que forma. Insistir no empoderamento individual e meritocrático é estar à serviço da reforma impossível de “humanização” do neoliberalismo.

https://www.brasildefato.com.br/2018/01/13/o-feminismo-do-tapete-vermelho/

Deixe uma resposta