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O brexit, a geopolítica e a amizade com direito a rusgas

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Ricardo Romero de Tejada Collado – O ‘brexit’ é uma bofetada espetacular nos caciques de Bruxelas, a primeira fatura que a União Europeia pagará.

Nos últimos dias, os especialistas vêm se dedicando a enumerar as principais causas do brexit. Coincidem em muitos argumentos, como o de apontar a deterioração do Estado de bem-estar devido aos ajustes econômicos, o desemprego e a precarização do trabalho, a crescente desigualdade social e territorial… A nostalgia dos mais velhos pela época imperial e o desinteresse dos jovens pelo voto também foram fatores.

Com relação à questão dos estrangeiros, são propostas diferentes e divergentes interpretações. Alguns remetem ao racismo e “aos nacionalismos de sempre, excludentes e chauvinistas, que desenham sociedades fechadas e empobrecidas moralmente” (editorial do El País, em 3 de julho). Para outros, o assunto é mais complexo. Manuel Castells, em artigo para o La Vanguardia (em 2 de julho) opina que “em contraste com as acusações de racismo, a crítica não foi contra oriundos do chamado Terceiro Mundo, pois elas estão sujeitas aos vistos”, mas sim contra a imigração que vem do leste da Europa, porque entra “sem controle e compete legalmente pelos postos de trabalho, pelas vagas nos hospitais e na educação, entre outros serviços públicos gratuitos, além da moradia e o seguro-desemprego”. O tema afeta menos a capital Londres, e mais as outras regiões industriais, agora envelhecidas e em plena depressão. Não se trata, portanto, de um nacionalismo étnico, mas de uma resistência diante da globalização e da perda de controle do país, e aquilo que se chama populismo seria, na verdade, “uma defesa da vida que resta”. As duas premissas podem ser certas, mas talvez uma mais que a outra.

Se incluímos nessa reflexão a recente crise dos refugiados que fogem das guerras, alimentadas pelos próprios poderes ocidentais, e os efeitos colaterais do terrorismo nascido das políticas insensatas na Palestina, no Afeganistão, na Líbia, no Iraque, na Síria… E se incluímos também a rejeição às elites da União Europeia, que defenderam as medidas para combater a crise financeira que logo cumprirá dez anos vigente, teremos um retrato bom o suficiente para fazer um inventário das causas imediatas da desilusão dos ingleses e do brexit. Em suma, foi um voto de idade, de classe e territorial. Me permito sugerir a hipótese de um voto religioso: os católicos apoiaram a permanência e os anglicanos a saída.

Em qualquer caso, foi a vingança da democracia, do voto das pessoas “comuns”, contra a frieza tecnocrata das elites. A imagem do ex-presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso, cruzando as portas giratórias da sede do Goldman Sachs (que muitos consideram a entidade financeira mais influente no mundo atual), onde ganha cinco milhões de euros por ano, sem renunciar à sua pensão “europeia” de 18 mil euros mensais pelo cargo que tinha no organismo, podemos entender melhor o assunto. “Nas mãos de quem nós estamos?” – esta é a pergunta que todos nos fazemos.

Alguém resumiu com poucas palavras o estilo dos que governam a Europa: “tudo para o povo, mas sem o povo”. O “brexit” é uma bofetada espetacular nos caciques de Bruxelas, a primeira fatura que a União Europeia pagará. O projeto descarrilhará se seus líderes se empenharem em continuar impulsando um europeísmo ilustrado paternalista, que não tem lugar no Século XXI, com a democracia como única fonte legítima de fazer política. Atentos ao futuro.

O brexit é uma vingança da geografia ou a verdadeira razão geopolítica

Três semanas depois, as bolsas se recuperaram da momentânea queda pós-brexit. Tudo volta ao normal, talvez porque, geopoliticamente, o brexit é o normal…

Um conhecido ensaísta geopolítico, Robert Kaplan escreveu uma obra chamada “A vingança da geografia”, onde nos diz que a geografia é o pano fundo sobre o qual transcorre a História. Porém, por que relacionar esta sentença com o Reino Unido? Será que existe algo mais por trás do brexit?

Inglaterra, há mil e cem anos, objeto de desejo e cobiça continentais

A Inglaterra, ou o território que hoje conhecemos como tal, se vinculou à Europa continental com a conquista romana – iniciada por Júlio César, em meados do Século I a.C., e concluída uma centena de anos depois, por Cláudio. Esta etapa de criação dos laços se encerrou por volta do Século V, quando novas e sucessivas invasões foram sendo construídas, a partir do substrato anterior celta-brítano-romano, um conglomerado social dominado primeiro pelos anglo-saxões, logo pelos vikings dinamarqueses, e finalmente pelos normandos – após a batalha de Hastings, em 1066. Em números redondos, durante mil e cem anos, a Inglaterra e os demais povos britânicos foram invadidos uma e outra vez por grupos humanos procedentes do continente.

Quatro séculos para cimentar a rivalidade anglo-francesa e quinhentos anos de estratégia extracontinental

A conquista por parte dos normandos supõe uma inflexão histórica. A Inglaterra passou de ser terra de conquista por parte de povos e elites continentais a se constituir um poder com interesses territoriais, feudais e dinásticos na França, no continente. Durante quatrocentos anos, a herança francesa dos normandos e as políticas matrimoniais foram o fruto da discórdia entre uns e outros.

A história moderna inglesa começa com sua derrota (em 1453) na Guerra dos Cem Anos, contra a França, que implicou em sua renúncia a seguir disputando a coroa francesa com a dinastia dos Valois, além da perda de suas posses territoriais no continente. Desta forma, seus interesses diretos no continente foram se extinguindo, e ainda mais após os conflitos dinásticos que colocar as casas de Lancaster e York em conflito durante os últimos 50 anos daquele Século XV. A França, por sua vez, transforou Joana d´Arc (a arqui inimiga dos ingleses) primeiro em heroína, depois em santa, e na Padroeira da Nação (não sem antes passar pela fogueira com a cumplicidade de notáveis e eclesiásticos do país). Desde então, a estratégia da Inglaterra seria a de descansar a reorganizar o contragolpe insular com respeito à Europa, sem renunciar à influência de sempre para impedir ou dificultar o cenário em que uma potência possa chegar a acumular tanto poder para dominar o continente. De forma complementária, o desenho exigia a consolidação do predomínio nas ilhas britânicas (conquista da Irlanda, controle da Escócia) e a busca do seu destino em ultramar – aproveitando os oceanos abertos diante das costas ocidentais –, com um poderoso império marítimo.

Enrique VIII cimentou as bases desta política britânica, de costas para o continente e protegida atrás do Canal da Mancha e do Mar do Norte. Assim, de pode entender, entre outras cosas, a ruptura com as autoridades eclesiásticas de Roma e a criação de uma igreja nacional inglesa (em 1534) – o que parecia um desafio de grande envergadura e à pretensão de unidade religiosa e política, com uma única Igreja (a Romana) e um só imperador (fossem eles reis “católicos”, como os hispânicos, “cristianíssimos”, como os monarcas franceses, imperadores do Sacro Império Romano-Germânico ou imperadores novíssimos como Napoleão…). Dessa forma foram forjadas a identidade nacional inglesa e a construção institucional do Reino Unido. Durante quinhentos anos, não houve mais invasões. Pelo contrário, o sentido dos movimentos se inverteu. Os britânicos se expandiram por todo o planeta com seus exércitos, seus negócios e seus imigrantes colonizadores.

A Inglaterra, entre os séculos XVI e XIX, quando não está guerra contra a Áustria, está contra a França, ou contra ambas ao mesmo tempo. As duas conflagrações mundiais da Primeira metade do Século XX modificaram sua política de alianças, quando o inimigo a vencer são os “impérios” germânicos e a França é um sócio inevitável, e cada vez menos poderoso. Sempre “controlando” o que sucede no continente…

A temida – e derrotada – invasão da Invencível Armada, em1588, funciona como metáfora dos medos da sociedade britânica. A intentona fracassada dos alemães em 1941 também foi atualizada no imaginário popular, com o brexit coincidindo com uma visão do poder reitor alemão sobre a União Europeia, e com uma França progressivamente mais impotente.

O princípio e o final de uma amizade com direito a rusgas

Quando foi assinado o Tratado de Roma, em 25 de março de 1957, criando-se assim a Comunidade Econômica Europeia, o Reino Unido ainda era um poderoso e orgulhoso império. Havia perdido a “joia” hindu há pouco tempo, entre outras colônias importantes, mas a bandeira da Union Jack seguia flamulando em todos os continentes.

Somente em 1963, quando era governado pelo conservador Harold Macmillan, o Reino Unido solicitou sua entrada no clube europeu. Seu império estava se desvanecendo: em 1960, se independizaram Nigéria, Camarões e Chipre, no ano seguinte foi a vez de Serra Leoa e Tanganica (atual Tanzânia), Uganda em 1962, Quênia e Zanzibar (hoje parte da Tanzânia) em 1963… Mas a França de De Gaulle vetou sua incorporação.

Em 1967, quando o primeiro-ministro era o trabalhista Harold Wilson, o Reino Unido insistiu em ver como De Gaulle rechaçava de novo a sua petição. Assim, continuaram perdendo colônias – Malta e Zâmbia em 1964, Gâmbia em 1965…

Por fim, em 1 de janeiro de 1973, o conservador Edward Heath conseguiu ratificar o ingresso do país no bloco. O referendo de 1975, para conhecer a opinião dos cidadãos sobre o tema, teve como resultado um 67% de votos afirmativos. É claro que os britânicos já aplicavam, naquele então, um padrão democrático para resolver suas grandes questões internas. A paz assinada na Irlanda do Norte, o referendo escocês e a consulta do brexit são provas renovadas disso.

Quando o Tratado de Maastrich (1992) modifica a CEE, que passa a se chamar simplesmente Comunidade Europeia, e logo, no ano seguinte, se torna União Europeia, o Reino Unido já havia perdido o seu império colonial quase todo, mas soube criar uma nova figura em seu lugar, a Comunidade de Nações (a Commonwealth), para manter, com ela, uma notável influência econômica e política, com sua monarca mantendo essa posição sobre muitas das nações independizadas – como a Austrália, o Canadá e a Nova Zelândia… É o grande trunfo que o Reino Unido possui agora, além das suas excepcionais relações com os Estados Unidos.

Os britânicos pensavam que seriam muito felizes na Europa dos mercadores, que tanta prosperidade anunciava. Mas esta se converteu numa união política, contraditória com os quinhentos anos mais importantes de sua história. Quando a amizade com “direito a rusgas” e sem excessivos compromissos (o Mercado Comum) se tornou um projeto matrimonial cada vez mais irreversível, se ativaram os alarmes, e a geografia e a história pediram a palavra.

Os resultados do referendo eram para validar se prevalecia a geopolítica do longo período entre 1453 e 1975 (sua história sobre o pano de fundo da brecha defensiva do Canal da Mancha e do Mar do Norte) ou o tímido golpe de timão dos últimos 41 anos, que impulsava o Reino Unido na direção do continente. Parece que a geografia se vingou e a estrada-túnel foi inundada. O Mar do Norte, o Canal da Mancha e a história de quinhentos anos impuseram sua lógica geopolítica. O sonho da prosperidade crescente se perdeu, e o preço político e social a se pagar para muitos não compensa. Assim, o brexit terminou ganhando.

É inquietante ver que os candidatos mais citados pelos especialistas para emular o caminho tomado pelo Reino Unido sejam França, Holanda e Dinamarca. Todos eles antigos aliados dos britânicos nas duas guerras mundiais. Terá a Alemanha, e outras dimensões geopolíticas europeias, algo a ver com o que está acontecendo agora?

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