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Nos passos da crise brasileira

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Felipe Felizardo – Professora da USP, Laura Carvalho analisa as origens da crise econômica brasileira. Para ela, o maior erro de Dilma foram as desonerações.

Felipe Felizardo

A economista Laura Carvalho, 34, recorre à dança para tentar explicar os movimentos erráticos da economia nos últimos anos no Brasil. Mais precisamente, a um gênero surgido na Alemanha no século XIX cuja composição – um passo à frente, um pro lado e um pra trás – ajuda a ilustrar os três períodos que analisa em seu livro Valsa brasileira – do boom ao caos econômico (editora Todavia). Professora da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (USP) e uma das vozes mais destacadas no campo da esquerda, Carvalho situa nos anos de governo de Lula (2006-2010) o que chama de “milagrinho brasileiro”, o tal passo adiante. Para ela, o desempenho econômico nos dois mandatos do petista se assentava em bases que expandiam e redistribuíam a renda pelo consumo, combinando ampliação do mercado interno e justiça social. Em 2011, porém, começa uma virada nessa política. São os anos da nova matriz econômica dilmista (um passo pro lado), que se acentua a partir de 2015 (um passo pra trás) e se aprofundam sob Michel Temer (MDB). Para a pesquisadora, que lança a obra em Fortaleza no próximo dia 29 de junho, na Livraria Cultura, um país continental como o Brasil precisa voltar a apostar no mercado local, mas sem descurar de uma reforma fiscal. Em entrevista ao O POVO por telefone, a professora fala ainda sobre os efeitos econômicos da greve dos caminhoneiros.

O POVO – Como avalia a discussão econômica que se travou a partir da greve dos caminhoneiros?

Laura Carvalho – Acho que tem uma questão de fundo que é de que uma crise econômica profunda, com impactos maiores sobre os mais vulneráveis, traz riscos muito grandes à democracia. Ao que parece, após a tentativa de acordo do governo, que na prática cedeu de diversas maneiras não só às reivindicações dos manifestantes mas também e sobretudo àquelas das associações patronais, que demandaram redução de imposto e subsídios sobre o diesel, você vê que isso não foi suficiente pra solucionar o conflito. Isso tem muito a ver com uma política equivocada que não resolveu o problema do desemprego, não resolveu, apesar da propaganda de uma inflação mais baixa que alivie o bolso das pessoas, não houve nenhum tipo de melhora. O ambiente, depois de dois anos de uma grande recessão, é de uma estagnação, mas as pessoas estão numa situação muito pior do que aquela em que elas estavam em 2014. Isso vai levando a falsas soluções, que vão desde salvadores da pátria com propostas de intervenções militar. Cria-se o caos social no País.

OP – O governo acabou atendendo quase todos os pontos da pauta dos caminhoneiros.

Laura – Mas não alterou a política de preços da Petrobras e cedeu também nas importações, dando uma subvenção às importadoras de diesel para que elas não tivessem nenhum tipo de desvantagem competitiva em relação à Petrobras, reforçando parte do problema que é essa posição muito menos confortável da estatal no mercado brasileiro. Já teve mais de 90% do mercado de refino de petróleo e perdeu muito para as importadoras, o que acaba gerando efeitos maiores dos choques aqui dentro.

OP – Seu livro Valsa brasileira – do boom aos caos econômico faz uma análise dos movimentos da economia nos anos Lula e Dilma. O que houve de ruptura entre um e outro governo?

Laura – O que eu tento mostrar no livro, a partir desses passos da valsa – um pra frente, um pro lado, um pra trás –, é que a gente teve alguns avanços no governo Lula, sobretudo a compreensão de que o mercado interno brasileiro deve ser o motor do crescimento da economia, o que pode ser aproveitado pelo combate às desigualdades de renda, de acesso aos serviços públicos e de acesso à infraestrutura. Ou seja, entender que tanto a redistribuição da renda quanto os investimentos públicos (infraestrutura física e social) é que devem ser os motores do crescimento numa economia continental como a nossa e que parte de tantas carências e desigualdades, o que inclui combate às desigualdades regionais, política de infraestrutura, um assunto que está relacionado nessa crise… Infraestrutura ferroviária, de mobilidade urbana, coisas que deveriam ser objeto de qualquer modelo de crescimento. Mas aí há também alguns limites à continuidade desse processo porque ele não fez, por exemplo, a redistribuição do topo pra base da pirâmide, não fez a reforma tributária, não enfrentou alguns desafios de tornar nossa infraestrutura produtiva com conteúdo tecnológico maior, com emprego de maior qualidade ao mesmo tempo em que se absorvia uma mão de obra que estava excluída do mercado de trabalho. Nesse livro eu trato do período entre 2006 e 2010, que é quando o mercado interno passa a ter essa posição preponderante no crescimento.

OP – É o que você chama de “milagrinho brasileiro”.

Laura – É o que eu chamo de “milagrinho” econômico, que vem com alguma redução da desigualdade na base da pirâmide, ao contrário do milagre econômico da Ditadura Militar, que vem com concentração de renda. Esse “milagrinho” conta muito com a ajuda do cenário externo favorável, que possibilita que ele aconteça com o controle da inflação e contas públicas sob controle.

OP – E quando isso começa a mudar?

Laura – A partir de 2011. O governo passa a enfrentar um cenário externo menos favorável , ainda que não tão desfavorável quanto aquele a partir de 2014. E,diante desse cenário externo menos favorável, há também uma mudança da política econômica, que vai em direção a tentar de alguma maneira voltar-se para o setor externo, tornar a indústria brasileira mais competitiva, fomentando as exportações Então abandona-se essa ideia do mercado interno como o principal motor, dos investimentos públicos como motor, e opta-se por uma política de estagnação dos investimentos públicos diretos e ao mesmo tempo de incentivos diversos à lucratividade dos empresários e dos setores industriais . Eu chamo essa política de “agenda Fiesp” porque houve uma lista de demandas da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) em 2011, que incluíam desde desonerações de impostos ao congelamento das tarifas elétrica, redução rápida da taxa de juros e desvalorização do real. Enfim, uma série de medidas que são implementadas e que eu considero equivocadas tanto no diagnóstico quanto do ponto de vista do contexto desfavorável daquele período. Acaba dando errado e matando esse crescimento do mercado interno sem que os empresários respondessem com os mesmos investimentos.

OP – Essa política econômica dos anos Lula (2006-2010) fatalmente levaria a uma exaustão?

Laura – Eu não considero. Pelo contrário. Eu considero que a base dessa política, ou seja, uma política voltada para os investimentos públicos e a redistribuição da renda é que é o modelo correto para uma economia continental como o Brasil cujo peso das exportações inclusive é muito pequeno para o PIB. Mas eu acho que deveria ter havido, paralelamente àquela política, alguns ajustes. Primeiro, ela deveria ter sido mais profunda. Por exemplo, a crítica à redistribuição da renda feita toda pelo lado do gasto e nada pelo lado da tributação, o que acaba tornando tudo um pouco quixotesco. Segundo, acho deveria ter vindo com uma política bem desenhada, voltada para o desenvolvimento de setores produtivos nacionais e acoplada nesses investimentos, a reboque dos incentivos para investir nas áreas onde há carência. Não houve uma preparação, diversificando nossa estrutura produtiva para que a gente não ficasse tão dependente de setores de commodities pra arrecadação etc. Além de que houve um excesso de uso da taxa de juros para valorizar o real e controlar a inflação por essa via, quando isso poderia ter sido evitado caso fossem criados mecanismos regulatórios de capitais especulativos de curto prazo. Só tenho reparos a essa política, mas acho que ela poderia ter sido continuada e gerado um crescimento muito maior do que aquele que a gente observou depois.

OP – Por que o governo Dilma deu um cavalo de pau nesse modelo, indo quase pelo caminho oposto?

Laura – Acho que havia essa pressão de setores da indústria brasileira, que já vinha perdendo espaço desde os anos 1990. Penso aí na automobilística, têxtil, ou seja, setores que faziam parte da primeira leva de industrialização no País e que vinham sofrendo efeitos da abertura comercial há muito tempo. Há setores muito organizados que pressionam para obter esse tipo de redução de imposto e outros benefícios. Somado a isso, havia a própria compreensão da presidente Dilma e de economistas vinculados a ela naquele período de que era importante o desenvolvimento industrial do País, seguindo várias tradições desenvolvimentistas. Só que não falta de instrumentos atualmente, com a OMC proibindo o uso de tarifas e de outros tipos de incentivos que eram utilizados no passado, acabou-se transformando essa preocupação, essa política industrialista, numa política de redução de impostos e de estímulos à lucratividade que saem caro e são pouco eficazes para conseguir resultados.

OP – Qual foi o grande erro da Dilma nessa área?

Laura – Acho que as desonerações foram o principal erro, e até a própria Dilma hoje em dia realiza essa autocrítica, de que foi uma política de transferência de renda pra rico sem resultado para a economia como um todo. Mas o Congresso muitas vezes aproveita essa política inicial. No caso das desonerações, ela era muito mais restrita, beneficiava apenas alguns setores e no fim das contas acabou sendo estendida para muito mais setores da economia.

OP – Você situa esse período de 2006-2010 como um passo adiante na economia, os anos Dilma como um passo ao lado e essa política do governo Temer como um passo atrás. É isso?

Laura – O passo atrás começa ainda no segundo mandato da Dilma e continua e se aprofunda no governo Temer. É a política que passa a encarar a deterioração fiscal – que era fruto de um crescimento menor, da reversão do cenário externo, que faz com que a arrecadação também caia, e das próprias desonerações e outras medidas custosas – como resultado de um excesso de gastos e de investimentos públicos que a gente não vê na prática. As despesas cresceram menos do que nos governos anteriores. Essa deterioração acaba sendo usada como oportunidade para um discurso de que cortar gastos e investimentos resolverá o problema da crise e levará a uma retomada da confiança dos investidores, coisa que agora está muito claro que não ocorreu. Muito pelo contrário. O que a gente tem visto é não só dois anos de recessão profunda, não apenas causada pelo ajuste fiscal porque houve outros elementos externos e internos que incluem a queda vertiginosa no preço do petróleo e outras commodities, a Lava Jato e seus impactos econômicos. Enfim, uma série de outras coisas, como o próprio aumento brusco das tarifas administráveis que foi feito de uma vez só e que vinha sendo controlado artificialmente no governo Dilma. Mas o fato é que aí veio o ajuste fiscal e essa agenda não fez com que a economia retomasse. Vimos dois anos da segunda recessão mais profunda da história e estamos vendo a recuperação mais lenta de todas as crises da história.

OP – Quando Temer assumiu o País, a promessa era de que esse crescimento se daria num ritmo muito mais acelerado do que a gente tem visto hoje? O que tem emperrado isso?

Laura – É a falta de uma agenda de crescimento. Na verdade, o que a gente tem até aqui são agendas ideológicas que tentam reduzir gastos sociais, reduzir investimentos públicos, reduzir o tamanho do Estado, como a própria medida da PEC do teto de gastos, uma regra que nem terá a possibilidade de ser cumprida, mas que se fosse cumprida reduziria o gasto com saúde vertiginosamente. Bom, e então se vende a ideia de que esse bom comportamento do governo renderá frutos e gerará crescimento, mas na prática é uma agenda que tem outros objetivos. O mesmo vale pra reforma trabalhista e todas essas agendas aí, que têm um impacto de contribuir pra estagnação da economia. Como a economia tampouco está contando com a ajuda de elementos externos, ou seja, não há no mundo hoje uma recuperação forte do crescimento. E o governo também parou de investir e não dá nenhum empurrãozinho pra essa economia – o que deu foi muito temporário, aquele saque de contas inativas do FGTS e PIS/Pasep, que teve algum efeito pequeno sobre o consumo das famílias, que foi o que permitiu crescimento no ano passado. Na prática, não há uma agenda que dinamize a economia e nessa situação de desemprego elevado as famílias não têm por que elevar o seu consumo e as firmas e empresas não têm por que expandir sua capacidade produtiva se elas não estão nem utilizando a capacidade que elas têm hoje.

OP – Há dois pré-candidatos que são ex-ministros da Fazenda, Ciro Gomes (PDT) e Henrique Meirelles (MDB). Como tem acompanhado o debate sob esse viés?

Laura – No caso da candidatura do Henrique Meirelles, em particular, o discurso de que a economia foi o ponto alto do governo Temer, se já tinha desmoronado antes, agora com essa paralisação dos caminhoneiros termina de ir por água abaixo. Será muito difícil convencer os eleitores de que houve alguma melhora nesse aspecto porque os eleitores, por mais que não necessariamente entendam do discurso econômico, estão conscientes da sua própria situação. Diante disso, o que eu acho que tem faltado no debate eleitoral é um foco em como produzir melhoras concretas pra vida das pessoas. O que me parece é que algumas discussões prevalecem, como a ideia da indústria como um fim em si mesmo que você tem que desenvolver. Mas acho que isso não ganha muito a cabeça dos eleitores, que não veem na indústria ou nos incentivos pra indústria necessariamente uma melhora no seu bem-estar. Por outro lado, há um debate que vem sendo feito sobre a reforma tributária progressiva. Como os brasileiros mais pobres pagam proporcionalmente mais de sua renda em impostos do que os brasileiros mais ricos. Isso é um problema gravíssimo. O Brasil destoa de muitos outros países no caráter injusto de sua estrutura tributária e isso já vem aparecendo no programa de várias candidaturas. Espero que esse debate seja feito porque ele está na origem de muitos dos nossos problemas.

Petrobras

A ENTREVISTA com Laura Carvalho foi realizada na quinta-feira passada, antes, portanto, da queda do presidente da Petrobras Pedro Parente, que pediria demissão do cargo na estatal no dia seguinte.

Twitter

NAS REDES SOCIAIS, a economista analisou brevemente a saída do executivo da presidência da Petrobras. No Twitter, ela escreveu na sexta-feira: “Esse é o tamanho da irresponsabilidade desse sujeito (Pedro Parente) de sair no meio do pregão pagando de ‘defensor do mercado contra o populismo’. Ele sabia muito bem que o caos na bolsa só valorizaria seu próprio passe. Essa crise mostra as consequências de um governo em que não há estadistas”.

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EM SUA PÁGINA na rede, Laura Carvalho apontou dez pontos que considerava importantes a partir de uma análise preliminar dos efeitos da greve dos caminhoneiros que paralisou o País. Para ler, basta acessar o link: https://bit.ly/2J6xn3A.

https://www.opovo.com.br/jornal/paginasazuis/2018/06/nos-passos-da-crise-brasileira.html

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