Política

No capitalismo só não há espaço para dois entes: o ser humano e a natureza

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Patricia Fachin – O ponto final na curta história do projeto de estado de bem-estar social, iniciado no pós-guerra, parece ter sido colocado com a crise financeira mundial de 2008. Se o capitalismo atual, impulsionado pela financeirização, não encontra limites matemáticos, alcançando uma cifra 350% superior ao PIB mundial, defronta-se com a barreira que lhe confere alguma materialidade: o ser humano e a natureza. “É bem evidente hoje que os problemas ecológicos, tais como o aquecimento global, a poluição das águas potáveis, a acidificação dos oceanos, a destruição das espécies, etc. ameaçam o capitalismo porque ameaçam a própria continuidade da vida humana na Terra. Eis que a natureza, assim como o ser humano que faz parte dela, não está integrada ao capital; eis que ambos estão apenas subordinados e que, por isso mesmo, podem contrariar a lógica de expansão insaciável que caracteriza sobretudo o modo de existência da produção capitalista”, pontua Eleutério F. S. Prado, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

“No capitalismo contemporâneo, quase todos os setores estão dominados por oligopólios formados por grandes ou mesmo enormes empresas, as quais são administradas com base em uma visão financeira dos negócios”, descreve Prado. “A sua lógica é de curto prazo: obter o máximo lucro para repassá-lo aos juristas (os keynesianos usariam aqui a palavra ‘rentistas’). Há, ademais, um certo consenso no pensamento crítico de que a financeirização está associada a um capitalismo de crescimento rastejante, mas altamente concentrador de renda”, complementa.

O professor acrescenta que testemunhamos uma tentativa sistemática de supressão dos direitos dos trabalhadores, conquistados historicamente, em detrimento da proteção de instituições econômicas e ingerências políticas. “A democracia pressupõe o cidadão, mas o neoliberalismo quer transformar o humano em mero agente econômico. E este apenas compete dentro de regras que não cria e, por isso, não se junta a outros na luta pelo comum”, analisa. “Atualmente, os Estados pouco se preocupam com o bem-estar da população, pois se concentram em impor as normas e as leis que favorecem a financeirização, a competição generalizada e a globalização. Diante desse quadro, como sugerem Dardot e Laval  (1) no livro Comum. Ensaio sobre a revolução no século XXI (São Paulo: Boitempo, 2017), não se pode mais depositar as esperanças progressistas na possibilidade de vir a usar o poder estatal”, critica o entrevistado.

Eleutério F. S. Prado

Eleutério F. S. Prado realizou graduação e pós-graduação em Economia pela Universidade de São Paulo. Fez estágio pós-doutoral na Universidade de Yale, nos Estados Unidos e, mais tarde, livre docência na USP. Atualmente é professor aposentado.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o senhor interpreta a afirmação de Latour[1], citada por Chesnais[2] em seu artigo “As dimensões financeiras do impasse do capitalismo – Terceira parte”, que diz: “as classes dominantes já não pretendem mais governar, mas apenas se protegerem do mundo”? Na prática, que ações sinalizam esse desejo de proteção das classes dominantes?

Eleutério F. S. Prado – Trata-se de uma percepção do sentido da ação política das classes dominantes. Adam Smith[3], ainda no século XVIII, dizia que a riqueza das nações cresceria na “sociedade comercial” e que isto favoreceria todas as classes. Friedrich Hayek[4], no final do século XX, ao contrário, dizia claramente que a justiça social é uma miragem. E que, portanto, os problemas da repartição da renda, da pobreza, da desestruturação social, da violência pandêmica, etc. não tinham solução dentro do capitalismo. Era uma tese teórica, mas ela se transformou numa profecia. A destruição generalizada do estado de bem-estar socialmostra que a sua concepção política venceu e que ela está se tornando, cada vez mais, bruta e dura realidade.

A preservação do estado de bem-estar social nos países centrais, algo que se manteve – com algum rebaixamento – mesmo na fase neoliberal que começa nos anos 1970 e que vai até a grande crise de 2008, indica que as classes dominantes se preocupavam aí, até então, com a integração social dos trabalhadores não só ao modo de produção, mas também à ordem social e política da democracia liberal. Pouco importa se a mantinham devido à guerra fria e a competição com o socialismo real, por temor de uma eventual situação revolucionária ou por convicção humanitária ou desenvolvimentista.

Latour e Chesnais julgam – creio – que essa preocupação agora se desvaneceu. Segundo eles – penso –, as classes dominantes acham agora que não podem mais arcar com os custos dessa integração e que, portanto, uma parte da população mundial ficará, sim, excluída da vida civilizada não só na periferia, mas também no próprio centro do sistema. Muitos membros dessas classes duvidam mesmo que seja possível manter o capitalismo e suportar os custos crescentes dos danos ambientais. Julgam, portanto, que têm de fazer uma opção drástica. Escolhem, então, defenderem-se da barbárie crescente seja nos condomínios fechados seja no interior dos países de alta renda. Ademais, como a riqueza dessas classes é cada vez mais formada por ativos financeiros, elas aspiram mantê-la e mesmo fazê-la crescer para poder conservar o modo de vida que alcançaram no passado recente.

IHU On-Line – Ao tratar dos impasses do capitalismo globalizado, Chesnais defende que o uso dos recursos naturais e consequentemente a deterioração das condições ambientais é um limite externo para o desenvolvimento do capitalismo. É possível resumir a tese sustentada por ele?

Eleutério F. S. Prado – Chesnais parece acreditar que o capitalismo está se aproximando de limites intransponíveis. Um deles seria o rompimento do equilíbrio ecossistêmico e o outro seria a redução da geração de valor e de mais-valor em decorrência dos efeitos da automação. Entretanto, ele mesmo faz uma citação de Marxque parece contrariar a ideia de que há limites insuperáveis.

Não poderei fazer melhor do que citar um trecho de um outro artigo recente do próprio Chesnais: “No livro III de O CapitalMarx afirma que ‘a produção capitalista tende constantemente a exceder os limites que lhe são imanentes, mas só o consegue fazer utilizando meios, que, mais uma vez, e agora em escala maior, recolocam depois perante si essas mesmas barreiras’. A questão posta é a de saber se a produção capitalista está agora se confrontando com barreiras que ela não pode mais ultrapassar, nem mesmo temporariamente. Estaríamos em presença de duas formas de limites intransponíveis, com implicações muito fortes para a reprodução do capital e a gestão da ordem burguesa, sobretudo para a vida civilizada. Uma delas, decorrente dos efeitos da automação, remonta ao século XIX e tem um caráter imanente, interno ao movimento do capital, sobre o qual Marx insistiu fortemente. A outra, decorrente da destruição pela produção capitalista dos equilíbrios ecossistêmicos, particularmente da biosfera, não foi prevista por Marx e foi inicialmente definida como um limite externo”.

IHU On-Line – Que rumos imagina para o futuro do capitalismo? Quais são as evidências de que impactos no uso dos recursos naturais já está gerando no desenvolvimento do capitalismo globalizado? Seu diagnóstico é o mesmo de Chesnais?

Eleutério F. S. Prado – Esforço-me para pensar essa e outras questões a partir de Marx[5], tentando ser rigoroso. Tenho sempre presente, no entanto, que isto não é fácil. E que, portanto, tenho de tomar muito cuidado para não cometer erros. Um ponto importante é tentar dominar o modo de pensar da dialética e não supor nunca que o rumo da história esteja pré-determinado.

Marx fala no trecho acima citado da dinâmica interna da acumulação e que esta cria barreiras para si mesma, as quais sempre ultrapassa ou tende a ultrapassar. Não fala de limites externos à totalidade formada pela própria relação de capital. Julgo que Marx, porém, admitia a possibilidade do surgimento de limites externos intransponíveis no curso de seu desenvolvimento. Se a produção capitalista, local ou em geral, esgota os recursos naturais ou destrói a força de trabalho, ela não pode continuar. Por outro lado, se os trabalhadores escapam da subordinação a que estão submetidos na totalidade do capital, revoltam-se e fazem uma revolução social, eles impedem a continuidade do capitalismo.

É bem evidente hoje que os problemas ecológicos, tais como o aquecimento global, a poluição das águas potáveis, a acidificação dos oceanos, a destruição das espécies, etc. ameaçam o capitalismo porque ameaçam a própria continuidade da vida humana na Terra. Eis que a natureza, assim como o ser humano que faz parte dela, não está integrada ao capital; eis que ambos estão apenas subordinados e que, por isso mesmo, podem contrariar a lógica de expansão insaciável que caracteriza sobretudo o modo de existência da produção capitalista.

IHU On-Line – Por que a terceira e a quarta revoluções tecnológicas também são consideradas, na avaliação de Chesnais, limites à expansão do capitalismo? Já existem exemplos de como essas revoluções estão impedindo a expansão capitalista?

Eleutério F. S. Prado – Chesnais rememora em um de seus últimos textos uma tese de Ernest Mandel[6] sobre o advento no capitalismo contemporâneo do que chamara de “robotismo”. Em 1968, no prefácio que escrevera para uma edição inglesa do Livro III, esse último autor afirmara que “a extensão da automação, para além de certo limite, conduz, inevitavelmente, primeiro a uma redução no volume total do valor produzido, e depois a uma redução no volume do mais-valor realizado”.

Ele também lembra a tese de Robert Kurz[7] segundo a qual com a terceira revolução industrial (e com a quarta, é preciso acrescentar) inicia-se um período em que há “uma produção insuficiente de mais-valor”. Ou seja, ele admite que a massa de mais-valor passa a cair comprometendo severamente não só a lucratividade do capital, mas também a viabilidade do capitalismo. Assim, mediante essas citações, Chesnais parece aderir à tese de que o capitalismo, em virtude de sua própria dinâmica, tende inexoravelmente ao colapso.

Tenho três objeções a essa tese. A primeira é observacional: as evidências empíricas disponíveis não indicam que esse fenômeno tenha de fato ocorrido até o presente momento, mesmo se permanece como possível. Ao contrário, a globalização parece ter elevado fortemente a força de trabalho submetida à relação de capital nas últimas décadas. A segunda é teórica: a elevação da produtividade do trabalho que reduz o valor contido em um dado volume de produção sempre pode ser compensada, em princípio, por uma expansão do volume produzido. A terceira é que mesmo em condições de decadência, o capitalismo pode continuar se ele não é obstado pela luta social.

Desde o último terço do século XVIII, a produtividade do trabalho vem crescendo uns 3% ao ano em média, o que, após 250 anos, representa uma elevação de mais de 1600%. Mas o volume da produção cresceu muito mais do que isso no mesmo período, absorvendo sempre mais e mais força de trabalho. Não creio que esse processo já tenha se esgotado até o presente momento histórico. Mas um colapso ambiental ou uma contenção endógena da demanda efetiva, por exemplo, pode produzir esse resultado no futuro.

IHU On-Line – Em “As dimensões financeiras do impasse do capitalismo”, François Chesnais afirma que não há consenso entre os economistas sobre o uso do termo “financeirização”. De que modo esse fenômeno pode ser melhor compreendido?

Eleutério F. S. Prado – No discurso econômico, a financeirização é usualmente entendida como o fenômeno da crescente importância dos mercados financeiros, das metas financeiras, do poder financeiro na condução do sistema econômico. Mas esta é uma mera descrição. Nesse meio predomina, ademais, a compreensão de que a financeirização é uma anomalia no desenvolvimento do capitalismo. Ela surgiu no fim dos anos 1970 e começo dos anos 1980 como resposta à queda da taxa de lucro e à crise econômica observada nessa década. Por meio de uma desregulação do sistema financeiro que fora forjado no pós-guerra, ela se instalou junto com todo um novo modelo econômico. E este – dito neoliberal – é considerado bem perverso porque passou a matar o crescimento sustentável e porque restaurou o poder dos rentistas. Criou, assim, um capitalismo injusto e instável que privilegia os ganhos financeiros em detrimento principalmente dos rendimentos do trabalho.

Chesnais, ao contrário, quer dar uma fundamentação teórica à noção de financeirização. E ele o faz por meio de categorias que encontra no Livro III de O capital. Para ele, ela se apresenta como uma hegemonia do capital de empréstimo, do capital portador de juros em expansão no interior dos mercados financeiros: eis que “ele se encontra aí atrelado a valores mobiliários representativos de direitos de extração de renda”, os quais parecem crescer de forma autônoma. Porém, como “dependem do mais-valor atualmente gerado, assim como do mais-valor que será gerado do futuro” na esfera do capital industrial, são na verdade “capitais fictícios”.

Tais capitais, reunidos muitas vezes em fundos de investimento, são administrados pelos grandes bancos, grandes companhias de seguros e pelas tesourarias dos grandes grupos industriais. Atualmente, o setor financeiro forma um sistema globalizado que, na verdade, comanda o modo de funcionamento do sistema econômico como um todo.

Na verdade, pode-se acrescentar que a financeirização é um estágio adiantado do processo de socialização do capital, o qual se iniciou – como o próprio Marx observou – já no século XIX, por meio da difusão das sociedades por ações. Reconhece-se que ele tem uma primeira fase de crescimento que dura da virada para o século XX até 1933, uma fase de transição seguida por uma fase contenção que vai do final da II Grande Guerra até 1971-1973. Daí em diante, esse processo retoma o caminho do crescimento, assumindo formas cada vez mais complexas. Ao separar formalmente o capital como propriedade do capital como função, ela reforça o poder que permeia as relações sociais do capitalismo. Se o capital industrial subordina a força de trabalho no nível da produção de mercadorias reais, com a financeirização ele próprio fica subordinado ao capital de financiamento, cujos suportes são as mercadorias fictícias (títulos, ações, etc.). A finalidade precípua dessa dupla estrutura de dominação é aumentar a eficácia e a eficiência da exploração.

IHU On-Line – Que relação existe entre a financeirização e a política econômica? Diria que a financeirização tem uma ingerência na política ou o contrário?

Eleutério F. S. Prado – A relação entre a financeirização e a política econômica é bilateral; é certo que uma condiciona a outra. A primeira não pode ocorrer sem que o Estado destrua as instituições que limitam o seu desenvolvimento e crie aquelas apropriadas para que ela prospere. A história do capitalismo a partir do começo da década dos anos 1970 mostra que ocorreu um esforço sistemático dos estados nacionais, em particular, do estado norte-americano, para anular a repressão financeira das duas décadas anteriores (inscritas, por exemplo, nas normas do acordo de Bretton Woods[8]) e para dar liberdade de expansão aos bancos, financeiras, seguradoras, etc. tanto ao nível nacional como internacional.

Em geral, o impulso para as reformas ditas neoliberais no campo da regulação econômica do setor financeiro tem vindo das crises, as quais tem ocorrido não apenas por desmedida do capital industrial, mas também por desmedida do próprio capital de financiamento, da pletora de capital fictício. É bem reconhecido o fato de que, diante das crises originadas também das reformas neoliberais, os estados nacionais têm aprofundado as reformas neoliberais – e esta tem privilegiado os capitais que circulam na esfera financeira. Tem razão, pois, aqueles autores que consideram a financeirização como uma tecnologia por meio da qual o poder capitalista vem se reafirmado desde 1971. Um outro exemplo de tecnologia de poder que tem sido também empregado, ainda que mais recentemente, é a precarização das relações de trabalho.

É preciso registrar aqui que o cinismo é a marca registrada dos defensores do neoliberalismo. Pois, eles defendem uma competição mercantil acirrada em todas as esferas da vida. Apresentam, assim, as reformas que reforçam o poder do capital sobre os trabalhadores em nome da melhora das condições sociais e econômicas dos próprios trabalhadores. É apenas mediante uma ótica crítica que se pode apreender a sua maldade social e histórica.

IHU On-Line – Como a financeirização afeta a produção e a gestão industrial? Pode nos dar alguns exemplos de como isso tem ocorrido?

Eleutério F. S. Prado – Para responder a essa pergunta é preciso apresentar os principais traços do que é chamado de finanças corporativas, isto é, do modo de administrar de empresas que objetiva maximizar o valor recebido pelos acionistas e pela alta gerência. O próprio Chesnaisresumiu isto muito bem: “Ela consagra a preeminência dos acionistas, fazendo do nível dos dividendos e dos preços das ações os principais objetivos das empresas. Para tanto, foram implementados critérios de avaliação de desempenho adaptados para esse fim, assim como de instrumentos de fidelização da gestão, em particular a remuneração das opções de compra de ações”.

Ela mostra bem como o capital industrial está atualmente subordinado ao capital de financiamento. A lógica do primeiro, na sua forma clássica, é buscar o maior lucro possível no processo da concorrência porque apenas isto permite o crescimento da empresa que produz mercadorias reais. Nesse ambiente, a empresa se orienta pela eficiência organizacional, pela constante redução dos custos, mas também pela qualidade do que produz. Ela está centrada na produção, na retenção do lucro e no investimento de longo prazo.

No capitalismo contemporâneo, quase todos os setores estão dominados por oligopólios formados por grandes ou mesmo enormes empresas, as quais são administradas com base em uma visão financeira dos negócios. Em consequência, a meta primeira dessas empresas não é ganhar dinheiro com base na produção, mas usar a produção como mais uma possibilidade de ganhar dinheiro aqui e agora para melhor servir os mercados financeiros. A sua lógica é de curto prazo: obter o máximo lucro para repassá-lo aos juristas (os keynesianos usariam aqui a palavra “rentistas”). Há, ademais, um certo consenso no pensamento crítico de que a financeirização está associada a um capitalismo de crescimento rastejante, mas altamente concentrador de renda.

IHU On-Line – De outro lado, quais são as consequências e implicações da financeirização na vida social e política?

Eleutério F. S. Prado – Há duas consequências muito importantes, mas é preciso perceber que a financeirização faz parte de uma mudança histórica mais ampla que inclui o advento do neoliberalismo e da globalização, ou seja, da unificação dos mercados nacionais num mercado mundial em que comandam as empresas industriais e financeiras transnacionais. É preciso ter claro, por outro lado, que o neoliberalismo, como ressaltam Pierre Dardot[9] e Christian Laval[10], não se resume a uma fé no mercado, mas vem a ser principalmente uma normatividade prática. A sua lógica consiste em impor às pessoas que se concebam como empresas e que vivam num ambiente de competição generalizada. O mercado capitalista é tomado, então, como um modelo geral das interações humanas. Nessa perspectiva, todos males engendrados pelo capitalismo, as desigualdades e degenerações mais gritantes, são normalizados e, assim, neutralizados.

A primeira consequência advém do abandono do projeto da socialdemocracia. Sobre este ponto já foi dito aqui alguma coisa. A segunda vem da desmoralização da democracia liberal, tema que, agora, passo a falar um pouco. Se a política econômica dos governos é fortemente favorável aos interesses financeiros, ela não poderá ser legitimada na democracia formal realmente existente. Pois entra em confronto com o interesse da maioria da população que não ganha e nem vive de juros. Mas isto não é tudo.

É preciso ver que a própria normatividade neoliberal requer um forte esvaziamento da substância da democracia, a qual então passa a existir como uma casca sem miolo ou com um miolo que lhe é estranho. Eis que o neoliberalismo quer suprimir os direitos conquistados historicamente pelos trabalhadores. Requer o enfraquecimento das instituições de proteção dos mais pobres. Pretende proteger as instituições econômicas das ingerências políticas. Enfim, a democracia pressupõe o cidadão, mas o neoliberalismo quer transformar o humano em mero agente econômico. E este apenas compete dentro de regras que não cria e, por isso, não se junta a outros na luta pelo comum.

IHU On-Line – Quais são os riscos de os países enfrentarem uma nova crise financeira, aos moldes da que aconteceu em 2008?

Eleutério F. S. Prado – A história do capitalismo está pontuada de crises; logo é fácil prever que outras crises acontecerão. Mas é possível ser mais específico. Uma década após a crise de 2008, a qual se seguiu uma recessão prolongada, as somas das dívidas privadas e públicas dos países não param de crescer em proporção ao PIB mundial. Eis os grandes números: se no começo dos anos 1980 essa soma total era da ordem de 120% agora ela chegou a 350% do PIB mundial. Em consequência, a fragilidade financeira tem aumentado também porque as taxas de crescimento da produção e da elevação da produtividade do trabalho têm sido mais baixas do que a média histórica anterior.

Após o estouro da crise de 2008, para evitar a quebra do sistema financeiro e, assim, uma vasta desvalorização do capital fictício, os bancos centrais das nações ditas desenvolvidas expandiram enormemente a liquidez por meio do relaxamento monetário (quantitative easing). As taxas de juros, assim, aproximaram-se de zero. Eles salvaram os grandes bancos comerciais da derrocada, mas agora os seus balanços estão inchados com grandes quantidades de ativos com baixo valor de venda. Como disse recentemente Wolfgang Streeck[11], “todo mundo sabe que isto não pode durar para sempre, mas não sabe quando o fim vai chegar (…) alguma coisa vai acontecer, provavelmente logo, e ela não será agradável”.

Mas nem todo mundo pensa assim. Por que subsiste uma percepção contrária por parte dos assim chamados analistas que habitam os mercados financeiros, assim como por parte das próprias autoridades monetárias que gerenciam o sistema? Mesmo se algum temor percorre as suas mentes em certos momentos, eles estão tomados na prática cotidiana pelo “espírito animal” de que a prosperidade possa continuar firme e forte, e de que, assim, possam continuar ganhando dinheiro, muito dinheiro.

A explicação para esse comportamento, que é racional e irracional ao mesmo tempo, encontra-se no fetiche do capital portador de juros. Como Marx mostrou em O capital, parece que os ativos financeiros – isto é, os capitais fictícios – criam valor da mesma forma que as pereiras dão peras. Ora, é também por causa desse fetiche que os bancos centrais enfrentaram o risco de que ocorresse uma forte deflação das dívidas após 2008 e, assim, uma cascata de falências e, depois, um colapso da produção e do emprego, por meio de políticas de estímulo monetário. Como o dinheiro não pode salvar o dinheiro para sempre, a hora da verdade pode chegar a qualquer momento nos próximos anos.

IHU On-Line – Como a esquerda de modo geral tem lidado com as crises econômicas e o processo de financeirização do capital?

Eleutério F. S. Prado – Na esquerda predomina uma compreensão do neoliberalismo que provém principalmente de John M. Keynes[12]. O keynesianismo é uma corrente de pensamento que acolhe o capitalismo, criticando apenas as suas insuficiências no provimento das necessidades humanas dos trabalhadores, especialmente dos mais pobres. Concentra-se na análise dos fenômenos da esfera da circulação mercantil e se preocupa com o desemprego e com a má repartição da renda principalmente. Para ele, em geral, o neoliberalismo consiste apenas no retorno do rentismo – e assim da “vingança dos rentistas” – após o período de contenção que terminou, como já se assinalou, no começo dos anos 1970.

Os keynesianos de esquerda são críticos da financeirização. Eles forneceram já muitas análises interessantes sobre esse fenômeno. Mas não chegam a apreendê-la como consequência de um desenvolvimento estrutural do capitalismo, isto é, como produto de uma transformação da própria relação de capital, mas especificamente, como uma evolução da forma de subsunção do trabalho ao capital ou, o que é o mesmo, como uma tecnologia de poder e de dominação de classe. Por isso mesmo, se fazem oposição às reformas neoliberais, tendem a defender apenas as conquistas do passado. Quando propõe reformas, estas não abalam a estrutura do poder estabelecido e, por isso, ao fim e ao cabo, fracassam.

IHU On-Line – O que seria um enfrentamento à esquerda do fenômeno da financeirização? À esquerda, que alternativas o senhor têm visto como propostas interessantes para enfrentar esse fenômeno?

Eleutério F. S. Prado – É preciso ver – creio – que a esquerda hoje é estrategicamente fraca porque não sustenta mais um projeto consistente e viável de socialismo. É claro, o velho projeto do socialismo de estado, não democrático, mas burocrático e mesmo despótico, fracassou. Nos países em que foi implantado, esse socialismo que pareceu prosperar por um tempo e que chegou a conquistar um terço da humanidade, agora acabou, está acabando ou se transformou num arremedo de capitalismo. Nessa situação impõe-se recuperar as tradições do socialismo democrático radical, aquele de Rosa Luxemburgo[13] por exemplo.

Por outro lado, nesse entretempo, também os países capitalistas se transformaram. Atualmente, os Estados pouco se preocupam com o bem-estar da população, pois se concentram em impor as normas e as leis que favorecem a financeirização, a competição generalizada e a globalização. Diante desse quadro, como sugerem Dardot e Laval no livro Comum, não se pode mais depositar as esperanças progressistas na possibilidade de vir a usar o poder estatal.

Trata-se, agora, de lutar pelo comum em todas as esferas da vida, abrindo espaços cada vez maiores de participação popular, os quais procuram escapar da alternativa entre Estado e Mercado. Trata-se de trazer cada vez mais as atividades sociais, culturais, econômicas ou educacionais para o âmbito da participação política da maioria. Dardot e Laval sugerem que a esquerda deve hoje lutar mesmo – aprofundando-os ao máximo – pelo direito republicano, pela justiça social e pela democracia liberal, já que tudo tem sido abandonado pelas classes dominantes. Eis que este seria o caminho que levaria ao socialismo que Marx caracterizara no primeiro capítulo de O capital, ainda limitadamente, pelo lema “trabalhadores livremente organizados”.

Outras notas

[1] Bruno Latour (1947): filósofo francês, é um dos fundadores dos chamados Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia (ESCT). É reconhecido, entre outros trabalhos, por sua contribuição teórica – ao lado de outros autores como Michel Callon e John Law – no desenvolvimento da ANT – Actor Network Theory (Teoria ator-rede) que, ao analisar a atividade científica, considera tanto os atores humanos como os não humanos, estes últimos devido à sua vinculação ao princípio de simetria generalizada. (Nota da IHU On-Line)
[2] François Chesnais: é professor francês de economia internacional na Universidade de Paris XIII. É um grande crítico do neoliberalismo, sendo seu livro A mundialização do capital, publicado no Brasil em 1996, uma de suas obras de maior repercussão no Brasil. Em 2005, a Editora Boitempo, publicou outro importante trabalho organizado por Chesnais sobre a financeirização da economia: A finança mundializada. (Nota da IHU On-Line)
[3] Adam Smith (1723-1790): considerado o fundador da ciência econômica tradicional. A Riqueza das Nações, sua obra principal, de 1776, lançou as bases para o entendimento das relações econômicas da sociedade sob a perspectiva liberal, superando os paradigmas do mercantilismo. Sobre Adam Smith, veja a entrevista concedida pela professora Ana Maria Bianchi, da Universidade de São Paulo – USP, à IHU On-Line nº 133, de 21-03-2005 e a edição 35 dos Cadernos IHU ideias, de 21-07-2005, intitulada Adam Smith: filósofo e economista, escrita por Ana Maria Bianchi e Antônio Tiago Loureiro Araújo dos Santos. (Nota da IHU On-Line)
[4] Friedrich August von Hayek (1899 – 1992): foi um economista da escola austríaca. Hayek fez contribuições importantes para a psicologia, a teoria do direito, a economia e a política. Recebeu o prêmio Nobel de Economia em 1974. Em psicologia, Hayek propôs uma teoria da mente humana segundo a qual a mente é um sistema adaptativo. Em economia, Hayek defendeu os méritos da ordem espontânea. Segundo Hayek, uma economia é um sistema demasiado complexo para ser planejado e deve evoluir espontaneamente. Hayek estudou na Universidade de Viena, onde recebeu o grau de doutor em Direito e em Ciências Políticas. (Nota da IHU On-Line)
[5] Karl Marx (1818-1883): filósofo, cientista social, economista, historiador e revolucionário alemão, um dos pensadores que exerceram maior influência sobre o pensamento social e sobre os destinos da humanidade no século 20. A edição 41 dos Cadernos IHU ideias, de autoria de Leda Maria Paulani, tem como título A (anti)filosofia de Karl Marx. Também sobre o autor, a edição número 278 da revista IHU On-Line, de 20-10-2008, é intitulada A financeirização do mundo e sua crise. Uma leitura a partir de Marx. A entrevista Marx: os homens não são o que pensam e desejam, mas o que fazem, concedida por Pedro de Alcântara Figueira, foi publicada na edição 327 da IHU On-Line, de 3-5-2010. A IHU On-Line preparou uma edição especial sobre desigualdade inspirada no livro de Thomas Piketty O Capital no Século XXI, que retoma o argumento central de O Capital, obra de Marx. (Nota da IHU On-Line)
[6] Ernest Ezra Mandel (1923—1995): foi um economista e político belga, considerado um dos mais importantes dirigentes trotskistas da segunda metade do século XX. Além disso, foi significativa a sua contribuição téorica ao Marxismo antistalinista. Como economista, especializou-se no estudo das crises cíclicas. (Nota da IHU On-Line)
[7] Robert Kurz (1943-2012): sociólogo e ensaísta alemão, co-fundador e redator da revista teórica Krisis – Beiträge zur Kritik der Warengesellschaft (Krisis – Contribuições para a Critica da Sociedade da Mercadoria). A área dos seus trabalhos abrange a teoria da crise e da modernização, a análise crítica do sistema mundial capitalista, a critica do Iluminismo e a relação entre cultura e economia. É autor de O Colapso da Modernização (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993) e Os Últimos Combates (Petrópolis: Vozes, 1998). A IHU On-Line entrevistou Kurz na 98ª edição, de 26 de abril de 2004, sob o título A globalização deve se adaptar às necessidades das pessoas, e não o contrário. Na edição 161, de 24 de outubro de 25, Kurz concedeu a entrevista Novas relações sociais não podem ser criadas por novas tecnologias. Confira, ainda, as entrevistas O trabalho abstrato se derrete como substância do sistema, publicada na edição 188 de 10-07-2006 e O vexame da economia da bolha financeira é também o vexame da esquerda pós-moderna, publicada na edição 278 da IHU On-Line, de 21-10-2008. Leia também uma entrevista sobre seu legado, concedida por Ricardo Antunes e Dieter Heidemann à IHU On-Line, intitulada Um crítico da economia política, publicada na edição número 400, de 27-08-2012 (Nota da IHU On-Line)
[8] Conferência de Bretton Woods: nome com que ficou conhecida a Conferência Monetária Internacional, realizada em Bretton Woods, no estado de New Hampshire, nos EUA, em julho de 1944. Representantes de 44 países participaram da conferência. Nela foi planejada a recuperação do comércio internacional depois da Segunda Guerra Mundial e a expansão do comércio através da concessão de empréstimos e utilização de fundos. Os representantes dos países participantes concordaram em simplificar a transferência de dinheiro entre as nações, de forma a reparar os prejuízos da guerra e prevenir as depressões e o desemprego. Concordaram também em estabilizar as moedas nacionais, de forma que um país sempre soubesse o preço dos bens importados. A Conferência de Bretton Woods traçou os planos de dois organismos das Nações Unidas – o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. O fundo ajuda a manter constantes as taxas de câmbio, além de socorrer países com crises nas suas reservas cambiais, como no caso do Brasil e da Rússia, em 1998. O banco realiza empréstimos internacionais a longo prazo e dá garantia aos empréstimos feitos através de outros bancos. (Nota da IHU On-Line)
[9] Pierre Dardot: filósofo e pesquisador da universidade Paris-Ouest Nanterre-La Défense, especialista no pensamento de Marx e Hegel. Desde 2004, com Christian Laval, coordena o grupo de estudos e pesquisa Question Marx, que procura contribuir com a renovação do pensamento crítico. Publicou no Brasil, juntamente com Christian Laval, o livro A nova razão do mundo (Boitempo, 2016). (Nota da IHU On-Line)
[10] Christian Laval: pesquisador e professor de sociologia da universidade Paris-Ouest Nanterre-La Défense. É autor de L’Homme économique: Essai sur les racines du néoliberalisme (Gallimard, 2007) e também de um volume de história da sociologia, L’ambition sociologique (Gallimard, 2012). Publicou no Brasil, juntamente com Pierre Dardot, o livro A nova razão do mundo (Boitempo, 2016). (Nota da IHU On-Line)
[11] Wolfgang Streeck (1946): é um dos mais reputados sociólogos alemães da actualidade, director do Max Planck Institut de Colónia, e autor de uma vasta obra que cruza os domínios da sociologia e da economia. (Nota da IHU On-Line)
[12] John Maynard Keynes (1883-1946): economista e financista britânico. Sua Teoria geral do emprego, do juro e do dinheiro (1936) é uma das obras mais importantes da economia. Esse livro transformou a teoria e a política econômicas, e ainda hoje serve de base à política econômica da maioria dos países não-comunistas. Confira o Cadernos IHU Ideias n. 37, As concepções teórico-analíticas e as proposições de política econômica de Keynes, de Fernando Ferrari Filho. Leia, também, a edição 276 da Revista IHU On-Line, de 06-10-2008, intitulada A crise financeira internacional. O retorno de Keynes. (Nota da IHU On-Line)
[13] Rosa Luxemburgo (1870-1919): filósofa marxista e revolucionária polonesa. Participou na fundação do grupo de tendência marxista que viria a tornar-se, mais tarde, o Partido Comunista Alemão. (Nota da IHU On-Line)

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