Economia

Líbano:os bastidores da crise bancária do século

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Thierry Meyssan – O colapso do Banco Central do Líbano a seguir a uma vasta escroqueria de Estado mergulhou o país numa crise económica e financeira sem paralelo. O país paga hoje em dia os seus 76 anos de dependência política e os seus 8 anos de completo vazio político. A realidade da sua situação é muito diferente da percepção que dela têm os seus cidadãos.

Os três presidentes. Ao centro o General Michel Aoun, Presidente cristão da República, à esquerda o Presidente xiita do Parlamento, Nabih Berri, à direita o Presidente sunita do Governo interino, Saad Hariri. O Líbano não é uma democracia fundada no equilíbrio de poderes entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, mas um sistema confessional fundado sobre as 17 comunidades religiosas. A extrema complexidade deste sistema assegura a perenidade dos chefes de guerra e da influência estrangeira. Assim Michel Aoun era o principal chefe Cristão durante a guerra civil, Nabih Berri o do Amal, e Saad Hariri sucedeu ao seu pai, Rafic Hariri, o qual reinou, sem partilha, sobre o Líbano em nome da Arábia Saudita e da França após a guerra civil.

O Banco Central do Líbano autorizou de novo os bancos privados a providenciar libras libanesas de forma livre, mas ainda não dólares.

Este controle de câmbios é ilegal por lei porque não foi validado pelo Parlamento. Várias grandes empresas já apresentaram queixa, de forma urgente, nos tribunais. Os setores de importação de trigo, de petróleo e de medicamentos estão paralisados, todos os outros estão em recessão.

A dívida pública atinge 154% do PIB. Em três meses, a libra libanesa foi depreciada em metade do seu valor, arrastando na sua queda a libra síria, já atacada durante a guerra por falsa moeda saudita e catariana.

Causas da crise

Esta crise financeira levou o Parlamento a adotar um novo imposto, o qual provocou as manifestações que paralisam o país desde 17 de Outubro de 2019. Com toda a probabilidade, ele tem a sua origem numa gigantesca fraude criada pelos dirigentes políticos do país através do Banco Central.

Um recordatório histórico é aqui necessário :

Na realidade, o Líbano nunca foi um Estado independente desde a sua criação, durante a Segunda Guerra Mundial (1943). A França instalou aí um sistema confessional que lhe permitiu preservar a sua influência após a descolonização, privando os Libaneses de qualquer vida política nacional. A tentativa do Secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, de resolver a questão israelita tornando o Líbano a pátria dos Árabes palestinianos provocou uma guerra civil (1975-1989) e saldou-se por um fracasso. A Paz saudita, imposta pelos Acordos de Taif (1989), restabeleceu o sistema confessional e ampliou as cotas comunitárias a todos os empregos da função pública. A presença militar síria (1989-2005), validada pela comunidade internacional, permitiu a reconstrução do país, mas não resolveu nenhum problema.

O antigo Primeiro-ministro Rafiq Hariri (1992-98 e 2000-04) pilhou o Líbano espoliando 55.000 famílias, depois confundindo o Tesouro público com a sua fortuna pessoal. Assim, ele apropriou-se de US $ 16 mil milhões (bilhões-br) de dólares no fim da sua vida. Em virtude dos acordos de Taif, Rafiq Hariri, enquanto representante da família real saudita, foi protegido pela Força de Manutenção de Paz síria presente no país para por fim à guerra civil. Aquando do seu assassinato, descobriu-se que havia corrompido duas personalidades sírias encarregadas de supervisionar a manutenção da paz: o Chefe dos Serviços de Inteligência, Ghazi Kanaan, e o Vice-Presidente, Abdel Halim Khaddam. O primeiro suicidou-se e o segundo fugiu para França, onde se aliou com os Irmãos Muçulmanos e preparou a deposição do Presidente Bachar al-Assad.

Em 2005, a Força de Manutenção de Paz síria retirou-se abruptamente a pedido da população libanesa que via nela o símbolo dos seus próprios crimes durante a guerra civil e a tomou — erradamente— por responsável do assassínio do antigo Primeiro-ministro Rafiq Hariri. De 2006 a 2014, quer dizer, durante o vazio de Poder, depois a presidência de Michel Sleiman —primeiro protegido do Catar e secundariamente pela França— , os dirigentes políticos libaneses não apresentaram nenhum documento contabilístico. O Líbano e a Arábia Saudita foram os dois únicos Estados do mundo a não ter um orçamento oficial. Hoje em dia é materialmente impossível determinar que impostos foram cobrados, nem que ajuda internacional o Líbano encaixou, nem o que gastou. Durante este período, o Diretor do Banco Central, Riad Salamé, montou um esquema Ponzi comparável ao de Bernard Madoff, mas para benefício pessoal dos dirigentes políticos. Os depósitos em dólares foram remunerados duas vezes mais do que em outros países. Mas os juros desses depósitos eram pagos com o dinheiro dos novos depositantes. Com o acordo dos Estados Unidos, os bancos privados aceitaram branquear o dinheiro sujo dos cartéis de droga sul-americanos, enquanto um banco dos EUA comprava um terço do capital dos principais bancos libaneses. Assim que um grande depositante sacou o seu dinheiro, o sistema vacilou. Os dirigentes políticos tiveram tempo de transferir o seu saque para o estrangeiro antes de ele desabar. Assim, em Outubro passado, o antigo Primeiro-ministro Fouad Siniora bateu todos os recordes evadindo entre 6 e 8 mil milhões de dólares ilícitos.

Face ao desastre, o Presidente do governo interino, Saad Hariri (filho legal de Rafik), exigiu o pagamento antecipado de mil milhões de dólares pela União Europeia. Depois, escreveu à Arábia Saudita, à China, ao Egipto, aos Estados Unidos, à França, à Itália, à Rússia e à Turquia, para lhes pedir que fossem garantes das somas não pagas a fim de poder importar bens de primeira necessidade ; devendo esse dinheiro ser reembolsado assim que o controle cambial for levantado. Como resposta, os principais Estados envolvidos no resgate econômico do Líbano reuniram-se, a 11 de Dezembro, em Paris. De manhã, eles avaliaram, à porta fechada, o seu interesse político em salvar o Líbano ou deixá-lo afundar; depois, à tarde, receberam uma delegação libanesa. Colocaram como condição para qualquer ajuda a nomeação de um novo governo pró-Ocidental e o estabelecimento de um controle eficaz sobre a utilização de todo o dinheiro.

Indignadas com a ideia de uma nova tutela sobre o país, petições libanesas foram dirigidas aos doadores estrangeiros para os dissuadir de fornecer dinheiro ao Banco Central enquanto a origem da crise não fosse estabelecida.

O Presidente sunita do governo, Saad Hariri, dirigiu-se ao FMI e ao Banco Mundial, mas estes questionaram imediatamente a autenticidade do balanço do Banco Central e a probidade do seu director, Riad Salamé, até aqui considerado um banqueiro exemplar.

Esse recordatório histórico destaca a ausência de responsabilidade do Hezbolla na crise, muito embora a imprensa ocidental afirme o contrário. Da mesma forma, é importante sublinhar que, embora o Hezbolla recolha o zakat (doação muçulmana) de traficantes de droga do vale de Békaa e da diáspora xiita na América Latina, ele sempre se opôs à cultura das drogas. Quando chegou ao governo, propôs e implementou programas de assistência social para que os agricultores pudessem evoluir e mudar as suas culturas. Por fim, deve-se também enfatizar que a maior parte do dinheiro sujo libanês não provém de drogas locais, mas do branqueamento de receitas dos cartéis sul-americanos; o branqueamento de dinheiro instituído pelos Estados Unidos e beneficiando os banqueiros libaneses, principalmente cristãos e sunitas.

Identicamente, este recordatório põe em evidência a aparente estabilidade do país desde a eleição do Presidente cristão da República, Michel Aoun. O Líbano nunca tinha sido capaz de preencher simultaneamente as funções de Presidente cristão da República, de Presidente sunita do Governo, da Assembleia monocamaral (unicameral-br) e do Conselho Constitucional de 2005 a 2016.

Impacto da crise

As medidas de controle de câmbios, que visavam interromper a fuga de capitais, provocaram o colapso da economia. Pelo menos 10% das empresas do país faliram no decorrer dos últimos 3 meses. A maior parte das outras reduziram o horário de trabalho de maneira a diminuir, proporcionalmente, os salários pagos sem ter que despedir os seus empregados. As primeiras empresas afectadas foram as fundações caritativas de modo que todo o sector de ajuda aos pobres foi devastado. Os trabalhadores estrangeiros — nomeadamente os empregados domésticos asiáticos— que são pagos em libras libanesas, perderam metade do que transferiam mensalmente em dólares para as suas famílias. Milhares deixaram já o país.

Todos terão notado que as manifestações que ocorrem, desde 17 de Outubro, são muito coordenadas. Os agitadores estão ligados, em permanência, por telefone a um misterioso QG. Os slogans (eslogans-br) são exactamente os mesmos em todo o país e em todas as comunidades, o que dá aos manifestantes uma sensação ilusória de fim do sistema confessional. A designação como alvo principal da Corrente Patriótica Livre (CPL) do Presidente cristão da República, Michel Aoun, sugere que o movimento é organizado contra ele.

A posição dos Estados Unidos é ambígua. Por um lado, a administração da USAID bloqueou a transferência de uma subvenção de 115 milhões de dólares para o Exército libanês, a fim de que pudesse adquirir equipamento, enquanto, por outro lado, o Secretário de Estado, Mike Pompeo, deu luz verde (liberou-br) esta subvenção. O antigo embaixador dos EUA no Líbano, Jeffrey Feltman, testemunhou perante o Congresso afirmando o que havia escrito. Ou seja, que, segundo ele, todo «Americano» deve combater a aliança Irã-Hezbollah-Corrente Patriótica Lívre-Casa Branca.

A proposta de nomear como presidente sunita do governo o empresário Samir Khatib foi recusada pelo grande Mufti. Com efeito, no Líbano, o presidente cristão da República é designado pelo Patriarca maronita, o presidente sunita do Governo pelo Mufti e o presidente xiita do Parlamento pelos Mulás, depois são confirmados pela câmara única. É o único país do mundo com uma tal confusão de Poderes religiosos e políticos. Por seu lado, os Katëb (falangistas maronitas) propuseram o diplomata e magistrado Nawaf Salam para fazer boa figura. Seja como for, o Mufti é favorável a uma recondução de Saad Hariri, mas desta vez à frente de um governo de tecnocratas que, seja como for, serão escolhidos pelos três presidentes.

Acusada de prevaricação, a Corrente Patriótica Livre (CPL) do Presidente cristão da República, Michel Aoun, já fez saber que não deverá participar no próximo governo. Ele não quer ser tomado como responsável pelos problemas futuros, sob pretexto de ter dado cobertura aos desvios de fundos de que o acusam e que ele desmente.

Os confrontos, sobrevindos em 14 de Dezembro em Beirute, ilustram o vacuidade da agitação. Ao início da tarde, jovens xiitas, membros do Hezbolla e do Amal, atacaram grupos ligados a George Soros, que haviam montado tendas no centro da cidade. Enquanto à noite, outros jovens, oriundos de grupos que haviam sido atacados pouco antes, tentavam invadir o Parlamento e aí proclamar «a revolução colorida», como fizeram na Sérvia, na Geórgia e em muitos outros países.

Para os libaneses, assombrados pela memória da guerra civil, as cem pessoas feridas —forças da ordem incluídas— provocam uma angústia insuportável. O facto de que a imprensa fale sobre feridos Libaneses, mas não diga uma palavra sobre os mortos apátridas palestinos ou nacionais sírios diz muito sobre a violência do país.

Avança-se, entretanto, de novo para um sistema defeituoso já que faz 76 anos que as grandes potências jogam com o Líbano e os Libaneses se submetem.

Como sair da crise ?

Contrariamente às exigências dos manifestantes, não há político libanês limpo. E não pode haver com um tal sistema. Na melhor das hipóteses, roubaram dinheiro para servir a sua comunidade, na pior para se enriquecerem. O Líbano é um dos raros países do mundo onde bilionários surgem bruscamente sem que ninguém saiba de onde vem a sua fortuna. Por conseguinte, não é preciso, no entanto, caçá-los todos, mas apoiar-se nos primeiros encorajando-os a servir a Nação em vez da sua comunidade exclusivamente, e meter na prisão os segundos.

Os infortúnios do Líbano são directamente imputáveis aos próprios Libaneses que aceitam, desde há 76 anos, um sistema constitucional obtuso e lutam pela sua comunidade mais do que pelo seu país. Ainda não ultrapassaram o traumatismo da guerra civil e continuam a ver os seus senhores de guerra confessionais como os únicos baluartes face à hipotética agressão de outras comunidades.

Esses infortúnios só terminarão com uma mudança de Constituição e a adoção de um sistema verdadeiramente democrático; o que implica o reconhecimento da personalidade mais legítima para conduzir os destinos do país. Pouco importa a sua religião. E, neste caso, é obviamente Sayyed Hassan Nasrallah. Após a vitória da sua rede de Resistência face ao invasor israelita é ele incontestavelmente essa personalidade. Restará aos libaneses esperar que não se aproveite da sua confiança para os trair em proveito dos Iranianos.

De momento, é impossível mudar a Constituição. Os parlamentares que seriam maciçamente varridos estão muito apegados aos seus lugares e não o farão. Um referendo não o fará, de modo nenhum, já que a corrupção é generalizada, inclusive entre os eleitores: 45% deles admitem ter sido solicitados a vender o seu voto.

No Líbano, os partidos políticos são confessionais. Eles não têm alcance nacional, antes defendem a sua comunidade e distribuem-lhe prebendas. É, portanto, necessário proceder gradualmente criando uma administração forte, decapitando, em curto prazo, os principais agentes corruptos; o que o Presidente sunita do governo, Saad Hariri, havia proposto e que lhe foi recusado pelos manifestantes. Depois será preciso tratar dos senhores de guerra saídos da guerra civil, os quais hoje devem dar provas da sua utilidade ou abandonar a vida pública.

Líbano : os bastidores da crise bancária do século

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