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Império do caos – a presidência Trump é o fim do experimento americano?

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Tom Engelhardt – Como primeiro candidato a presidente da era do declínio, Donald J. Trump pelo menos expressou algo novo e verdadeiro sobre a natureza dos EUA.

Uma coisa que se pode dizer sobre impérios é que, em seu auge, ou próximo a ele, sempre representam um princípio de ordem, assim como de dominação. Então eis algo confuso sobre a versão americana do império nos anos em que o país é definido como “a única superpotência”, destinando mais dinheiro para suas forças armadas do que as dez nações seguintes juntas: este tem sido um império do caos.

Em setembro de 2002, Amr Moussa, então chefe da Liga Árabe, deu um alerta que nunca esqueci. A intenção do governo Bush de invadir o Iraque e derrubar seu governante, Saddam Hussein, já era evidente. Se realmente dessem este passo, insistiu Moussa, “abririam as portas do inferno”. Sua previsão terminou se provando tudo menos uma hipérbole – e essas portas nunca mais foram fechadas.

As guerras chegam em casa

Desde o momento da invasão do Afeganistão, em outubro de 2001, de fato, tudo o que os militares norte-americanos tocaram virou pó. Nações do Grande Oriente Médio e da África entraram em colapso sob o peso das intervenções americanas ou de seus aliados, e os movimentos terroristas, cada um mais sombrio que o outro, se espalharam de maneira incrivelmente descontrolada. O Afeganistão é hoje uma zona de desastre; praticamente não há mais Iêmen, arruinado por uma guerra civil, por uma brutal campanha aérea saudita patrocinada pelos EUA e por vários grupos terroristas em ascensão; o Iraque, na melhor das hipóteses, é uma nação sectária destroçada; a Síria mal existe; a Líbia também já não é um estado; e Somália é um conjunto de feudos e movimentos terroristas. Em suma, é um recorde para a maior potência do planeta, que, de forma claramente não-imperial, não conseguiu impor sua determinação militar ou qualquer tipo de ordem sobre qualquer estado ou grupo onde atuou nestes anos todos. É difícil pensar em um precedente histórico para isso.

Enquanto isso, das terras destroçadas pelo império do caos jorram refugiados aos milhões, em números não vistos desde que vastas porções do globo viraram escombros no final da Segunda Guerra. Porcentagens surpreendentes das populações de vários estados falidos ou em falência, incluindo um número impressionante de crianças, foram levadas ao exílio interno ou a cruzar fronteiras e, doAfeganistão ao Norte da África e à Europa, estão agitando o planeta de uma forma inquietante (da mesma maneira que suas versões fantasiosas abalaram a eleição nos EUA).

É um certo clichê dizer que, mais cedo ou mais tarde, as guerras de fronteiras voltam para assombrar o coração dos impérios de formas curiosas. Certamente, foi o caso de nossas guerras nas periferias. De várias formas – da militarização da polícia ao uso de drones espiões no céu americano e à tecnologia de vigilância testada em campos de batalha distantes – é evidente que os conflitos dos Estados Unidos pós-11 de setembro se voltaram contra a “pátria”, mesmo que, na maioria das vezes, tenhamos prestado pouquíssima atenção a esse fenômeno.

E essa é, suspeito, a maneira menos importante como nossas guerras foram repatriadas. O que a eleição de 2016 deixou claro é que o império do caos não permaneceu um fenômeno dos rincões do planeta. Ele está conosco nos Estados Unidos, aqui e agora. E chegou em casa de uma forma que ninguém ainda tinha realmente tentado entender. Não há uma profunda e crescente sensação de desordem trazida pela bizarra campanha eleitoral que varreu o país, trazendo os tipos mais extremos de racismo e xenofobia de volta ao centro do debate político – sensação que, com a eleição de Donald Trump, pode nunca acabar? Usando o termo da espionagem que Chalmers Johnson tomou emprestado da CIA e popularizou, pense nisso como, de uma forma estranha, o derradeiro contragolpe (blowback, no original) no império.

É preciso contar a história de como tal desordem entrou aqui, como entortou o sistema americano e nossa governança democrática, e como um processo iniciado há décadas, não no rancor de uma derrota ou desastre mas em um momento de inigualável triunfo do império, foi capaz de causar danos tão profundos. Se tivesse que escolher uma data para iniciar essa história, acho que começaria em 1979, no Afeganistão, um país que um americano teria dificuldade em localizar um mapa (a menos que fosse um mochileiro hippie). E se alguém lhe dissesse na época que em pelo menos 25 dos próximos quarenta anos seu país estaria envolvido em guerras naquele país, você sem dúvida o consideraria um louco.

Visto de certo modo, o império do caos teve seu início marcado por uma vitória tão deslumbrante, completa e imperial que basicamente ajudou a implodir a outra superpotência, aquele “Império do Mal”, a União Soviética. Começou, na verdade, com o desejo do conselheiro de segurança nacional de Jimmy Carter, Zbigniew Brzezinski, de dar uma surra nos soviéticos, ou, para ser mais preciso, dar um gostinho da experiência dos Estados Unidos no Vietnã e prender o Exército Vermelho num lamaçal afegão. Assim, a CIA poria em ação durante dez anos um enorme programa secreto para financiar, armar e treinar opositores fundamentalistas do governo afegão de esquerda em Cabul e do Exército Vermelho ocupante. Para isso, contou com a fidelidade de dois “aliados” repugnantes: os sauditas, que estavam prontos a empenhar o dinheiro do seu petróleo no apoio aos mais extremistas combatentes mujahedeen afegãos, e o serviço de inteligência paquistanês, o ISI, que estava determinado a controlar os acontecimentos na região, independentemente da natureza dos atores disponíveis.

À maneira do Vietnã para os americanos, o Afeganistão se tornaria o que o líder soviético Mikhail Gorbachev chamou de “uma ferida aberta” para os russos. Uma década mais tarde, o Exército Vermelho voltaria mancando para casa e, em dois anos, uma União Soviética esvaziada, nunca tão forte quanto Washington imaginou, implodiria, um triunfo tão impressionante que a elite política norte-americana inicialmente nem conseguiu compreender. Depois de quase meio século, a Guerra Fria acabava, uma das duas “superpotências” deixava o palco global derrotada e, pela primeira vez desde que os europeus partiram em navios de madeira à conquista de partes distantes do globo, só havia um grande poder de pé no planeta.

Dada a história dos séculos passados, pareciam fazer certo sentido os sonhos de Bush-Cheney & Co. sobre como os EUA dominariam o mundo como nenhuma outra potência, nem mesmo o império romano ou o britânico, jamais havia feito. Mas esse triunfo de 1989 trazia também as sementes do futuro caos. Para derrubar os soviéticos, a CIA, ao lado dos sauditas e paquistaneses, armou e fortaleceu grupos de extremistas islâmicos que, como se descobriu, não pretendiam ir embora uma vez que os soviéticos fossem expulsos do Afeganistão. Não será exatamente chocante se eu acrescentar que, naquelas decisões, naquele momento de triunfo, estava a gênese dos futuros ataques de 11 de setembro e, de alguma forma curiosa, talvez até a ascensão futura de um candidato presidencial, agora presidente eleito, tão bizarro que, apesar dos bilhões de palavras gastas para falar dele, permanece um fenômeno além de toda compreensão.

Como primeiro candidato a presidente da era do declínio, Donald J. Trump pelo menos expressou algo novo e verdadeiro sobre a natureza do nosso país. Na frase que ele tentou emplacar em 2012 e com a qual lançou sua campanha presidencial em 2015 – “Make America Great Again” – captou um sentimento profundo, compartilhado por milhões de americanos, de que o império do caos havia realmente chegado ao nosso território e que, assim como a União Soviética há um quarto de século, os Estados Unidos poderiam estar caminhando lentamente para uma era em que a “grandeza” havia sido perdida (não a dele, naturalmente).

Excesso Imperial e a ascensão do Estado de Segurança Nacional

No final, essas sementes, plantadas primeiro em solo afegão e paquistanês em 1979, levaram aos ataques de 11 de setembro de 2001. Esse dia foi a própria definição de caos trazido para o coração do império, e estimulou o surgimento de um nova estrutura de governo nova e pós-constitucional, através da expansão do estado de segurança nacional a proporções monumentais e uma versão impressionante do excesso imperial. Com base na suposta necessidade de manter os americanos a salvo do terrorismo (e basicamente nada mais), o Estado de segurança nacional se tornaria um conjunto inchado de instituições dominantes – e financiadas pelo capital dominante – implantado no coração da vida política americana (sem o qual, tenha certeza, as intervenções públicas do Diretor do FBI James Comey em uma eleição americana seriam inconcebíveis). Nesses anos, esse estado-dentro-do-estado se tornou um quarto poder não oficial, num momento em que dois dos outros – o Congresso e os tribunais, ou pelo menos a Suprema Corte – estavam vacilantes.

Os ataques de 11 de setembro também desencadearam a impressionantemente ambiciosa e finalmente desastrosa e Guerra Global ao Terror do governo Bush, e as fantasias exageradas sobre o estabelecimento de uma Pax Americana, primeiramente no Oriente Médio e, em seguida, talvez, no mundo. Eles também desencadearam as guerras no Afeganistão e no Iraque, o programa americano de assassinatos com drones em boa parte do planeta, a construção de um estado de vigilância global sem precedentes, a disseminação de uma espécie desigilo tão abrangente que grande parte das atividades do governo passou a ser um mistério para “o Povo”, e uma espécie de excesso imperial que jogou trilhões de dólares (muitas vezes através de corporações de guerra) literalmente no abismo. Todos esses fatores criavam o caos.

Ao mesmo tempo, as necessidades básicas de muitos americanos eram cada vez mais negligenciadas, pelo menos daqueles que não faziam parte do 1% de uma Era Dourada, que sugam a riqueza americana de forma extraordinária. Os membros deste 1%, em seguida, reutilizaram parte desses ganhos para comprar e vender políticos, novamente em uma atmosfera de notável sigilo. (Muitas vezes, era impossível saber quem havia dado dinheiro a quem e para quê). Por sua vez, esse fluxo de fundos aprovado pela Suprema Corte mudou a natureza – e talvez a própria ideia – de uma eleição.

Enquanto isso, partes do coração do país estavam sendo esvaziadas, enquanto – mesmo se os militares continuavam a produzir sistemas de armas faraônicas de milhões de dólares – a infraestrutura subfinanciada do país começou a desmoronar de uma maneira nunca antes concebível. Da mesma forma, a parte do governo não ligada à segurança – do Congresso em particular – começou a falir e murchar. Ao mesmo tempo, um dos dois grandes partidos políticos do país lançava uma campanha de terra arrasada contra os governantes do outro partido e contra a própria ideia de governar de forma razoavelmente democrática ou de realizar o que quer que fosse. Esse mesmo partido se esfacelou em facções desordenadas e em disputa, cada vez mais extremas, e que produziram aquilo que deve de se tornar uma inédita presidência da celebridade e do caos.

É claro que os Estados Unidos, com toda sua riqueza e poder, não é um Afeganistão, uma Líbia, um Iêmen ou uma Somália. Ele ainda permanece uma potência genuinamente grande, com recursos notáveis. A recente eleição, no entanto, dá provas impressionantes de que o império do caos é hoje realmente uma realidade doméstica. Está agora conosco mesmo, o tempo todo. Melhor se acostumar com isso.

Precisamos saber que isso será parte essencial da presidência Trump. Internamente, por exemplo, se alguém pensava que a definição da disfunção política americana era um Congresso que basicamente não aprovava nada, é melhor aguardar para ver do que é capaz um Congresso totalmente controlado pelos republicanos. No exterior, o sucesso inesperado de Trump só vai encorajar a ascensão de movimentos nacionalistas de direita e a posterior fragmentação deste planeta em uma desordem crescente. Enquanto isso, os militares americanos (a quem Donald Trump prometeu em campanha uma grande injeção de recursos) ainda estarão tentando impor sua versão de ordem em terras distantes e, tantos anos depois, todos já sabem exatamente o que isso vai significar. Tudo isso não deveria chocar ninguém no novo mundo pós-8 de novembro.

Há uma pergunta que poderá chocar alguns mas deve ser feita: com a eleição de Donald Trump, o “experimento” americano estaria chegando ao fim?

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