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Golpe militar: Erdogan agradece

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LUIZ EÇA – Não é à toa que o presidente Recep Erdogan é chamado de “Sultão”. Ninguém duvida que ele almeja restaurar parte das passadas glórias do império turco-otomano e parte dos poderes absolutos dos seus governantes, os sultões.

Primeiro-ministro de um país parlamentarista, ele se candidatou e foi eleito presidente, função bem menos importante no regime turco.

Mas não foi por modéstia. A ideia do Sultão é ampliar substancialmente as funções presidenciais, coisa que, aliás, já vem acontecendo.

Líder carismático de grande força, Erdogan almeja algo como a invejável posição de sultões de outrora; além do poder executivo, também a justiça e o legislativo às suas ordens.

Até agora, a Turquia era uma democracia, não das mais puras, é verdade. Os planos de Erdogan eram mal vistos por muitos setores, sempre prontos a criticar o sultão.

Para que não atrapalhassem muito, ele vinha intervindo na imprensa – estatizando ou tomando o controle de jornais e emissoras de rádio e TV, prendendo e demitindo jornalistas incômodos, que insistiam em atacar suas ações.

A um ponto tal que a Turquia, no quesito liberdade de imprensa, ocupa hoje a posição 151 entre 180 países.

Erdogan não se preocupa com as críticas dos parlamentares, pois o AKP, seu partido, detém sólida maioria.

A principal oposição civil vinha do pregador muçulmano Gulen e seu movimento, espalhado por toda a Turquia, que defendia a democracia verdadeira, não exatamente a praticada por Erdogan.

Depois de sofrer algumas ameaças vindas do alto, Gulen fugiu para os EUA onde se asilou, continuando, porém, a orientar sua grei.

Sua voz percorria a Turquia, pois tinha o maior jornal do país em suas mãos. Recentemente, Erdogan calou essa voz, trocando a diretoria e os principais jornalistas por gente dele.

O movimento Gulen e a guerra contra os curdos representavam ameaças aos planos do Sultão.

Mas o perigo real vestia farda. Desde a criação da República Turca, juntando os restos do império Otomano, os militares assumiram papel preponderante no governo do país.

Sob Kemal Ataturk, seu chefe e primeiro presidente, foi imposta uma política de ocidentalização, modernização e, especialmente, secularização, que implicava na extinção da influência do islamismo nas várias esferas da administração pública.

Desde Ataturk, diversas intervenções militares derrubaram governos sob a acusação de estarem islamizando o país.

Embora sendo um islamita convicto, Erdogan, longe de se submeter aos dignitários religiosos, os tem usado a seu serviço.

Ele sabe que isso não é bem visto em muitos setores das forças armadas. Sempre temeu que, um dia, os militares se voltassem contra ele e o alijassem do poder sob a acusação de islamização e ameaça à democracia.

O golpe, mal planejado, lhe deu uma oportunidade de ouro para liquidar a latente oposição militar.

Chamou o povo às ruas para defendê-lo. E o povo atendeu seu apelo, pois desconfiava por experiência própria que golpes militares soi disant democráticos concretizavam-se em ditaduras.

Por sua vez, o islamismo costumeiramente perseguido nos regimes de exceção implantados pelas forças armadas colocou nas suas 85 mil mesquitas clérigos rogando aos fiéis por apoio ao sultão.

Vencedor, Erdogan tratou de se livrar de inimigos e suspeitos. Nada menos de 80 mil pessoas já foram presas ou demitidas. Entre eles, quase 3 mil juízes, milhares de diretores de escolas e professores, área onde Gulen é forte. Nada menos do que 85 generais e almirantes foram presos e serão submetidos a julgamento.

Estes últimos podem até ser condenados à morte, pois o presidente declarou que o povo estava pedindo a pena capital e, se o parlamento aprovasse, ele não vetaria.

A União Europeia, que já criticava os ataques à imprensa, ameaçou negar-se a admitir a Turquia na sua organização caso a pena de morte voltasse.

John Kerry, secretário de Estado dos EUA, disse que com a repressão o país poderia ser desligado da OTAN.

Mas o sultão não baixou a cabeça. Respondeu aos EUA exigindo a repatriação de Gulen, apontado por ele como a cabeça do golpe. E, segundo Pepe Escobar, em Information Clearing House, indicou que, caso negassem, a Turquia deixaria de ceder a base de Induclik, usada para missões dos bombardeiros dos EUA e outros países da coalisão anti-Estado Islâmico.

Em resposta, os EUA pediram provas. Algo semelhante aconteceu após o 11 de setembro, em 2001.

Os EUA exigiram que o governo Talibã do Afeganistão lhes entregasse Bin Laden, suposto responsável pelo ataque às Torres Gêmeas.

O Talibã respondeu exatamente o que os EUA responderam a Erdogan. Disse que se os norte-americanos enviassem evidências, atenderiam suas exigências. Caso contrário, forget it!

Bush declarou que nesse caso evidências não eram necessárias. Dois meses depois, o Afeganistão estava sob bombardeio e invasão.

Segundo o precedente norte-americano, Erdogan teria agora todo direito de mandar bombardear e invadir os EUA.

Claro, não tem os recursos militares necessários. Mas pode retaliar de outros modos. Vejamos como:

– sair da guerra da Síria, mediante acordo com Assad para juntos atacarem os curdos;

– sair da OTAN, entrando na OSC, integrada por China, Rússia (os dois maiores rivais de Washington) e ainda Índia, Paquistão, Irã (em breve) e países da Ásia Central. Aliás, em junho, Erdogan já insinuou ser uma possibilidade ao declarar que a “OSC é muito melhor do que a União Europeia”;

– fornecer à Rússia produtos sancionados pelos EUA e União Europeia, em função das ações de Putin na Ucrânia.

Dois dias depois das advertências de Kerry sobre a repressão dos rebeldes, os EUA caíram na real.

Numa reunião com jornalistas, Josh Ernest, secretário de Imprensa, recusou-se a criticar os expurgos turcos. Disse que foi uma situação extraordinária, pedindo “moderação ao governo turco já que os EUA não se sentem confortáveis em criticar qualquer coisa que os turcos fizeram”.

É de se duvidar que Erdogan deixe assim. Também parece difícil que os estadunidenses entreguem Gulen às feras.

Mais provável é que sejam obrigados a fazer concessões. Coisa que não estão acostumados. A verdade é que Erdogan está com tudo. Sem nenhuma força capaz de impedir seus planos de expansão de poderes.

Ele já ensaiou projetar a Turquia como ator de realce no cenário internacional. Lembre-se o plano que ele e Lula apresentaram de paz nuclear no Irã, rejeitado por Obama.

Mais recentemente, o acordo com Israel que permitirá a entrada de bens de todo o tipo em Gaza, via navios turcos, particularmente de material de construção essencial para a reconstrução da Faixa. Que poderá colocá-lo como um possível “salvador de Gaza”.

No plano interno, o parlamento obediente acaba de aprovar Estado de Emergência, com limitação ou suspensão total dos direitos de individuais. Erdogan poderá revogar quais quiser, quando bem entender.

Poder absoluto, semelhante ao dos sultões do império turco-otomano. Parece um sonho de mil e uma noites para o autoritário presidente da Turquia. Para o povo talvez venha a ser um pesadelo.

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