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“Eles dizem que o SUS não cabe no orçamento; dizemos que eles é que não cabem no Brasil”

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Antonio Martins – 1976: Passados 12 anos do golpe civil-militar que instaurou a ditadura no Brasil, aquilo que ficou conhecido como ‘milagre econômico’ já tinha chegado ao fim e o país era governado pelo general Ernesto Geisel, que queria a tal abertura ‘lenta, gradual e segura’. Fato é que mais de 20 pessoas foram mortas ou desapareceram apenas naquele ano (e esse foi o mesmo presidente que, no início do seu mandato, autorizou pessoalmente a execução de opositores).

Naquela época, dois assassinatos marcantes foram vendidos como suicídios, mas as evidências eram fortes demais para que a ideia pudesse ser comprada: o do metalúrgico Manuel Fiel Filho, em janeiro, e o do jornalista Vladimir Herzog, em outubro do ano anterior. Também foi o ano em que João Goulart morreu na Argentina.

No meio disso tudo, surgia o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), um dos atores mais importantes daquilo que ficou conhecido como o movimento pela Reforma Sanitária. O SUS é fruto dessa mobilização e seu nascimento não pode ser descolado das lutas pela redemocratização.

Na semana passada, durante o 12º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, o jornalista Antonio Martins, do Outras Palavras conversou com a atual presidente do Cebes, a médica pediatra e sanitarista Lucia Souto. A entrevista (que foi transmitida ao vivo) aconteceu minutos antes do lançamento da 16º Conferência Nacional de Saúde, e a mobilização social foi um dos pontos centrais da fala de Lucia, que lembrou também a atuação do Cebes na ditadura.

Eis a entrevista.
Esta Conferência como 8ª+8, em referência à 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986 e que lançou as bases do SUS. No atual cenário, sob golpe de Estado e sob ameaças à saúde pública, o que significa o impulso de lançar da 16ª?

Isso tem um significado histórico. Porque esta os vivendo hoje no Brasil um ataque à soberania do país, aos direitos sociais e à Constituição de 1988. Na verdade, a 8ª Conferência [em 1986, que deliberou as bases para o que viria a se tornar o SUS constitucional] foi um marco, e o Cebes foi uma entidade histórica nessa construção. Um documento do Cebes chamado Saúde e Democracia foi um dos balizadores do debate que fizemos naquele instante.

O Brasil vivia uma situação terrível, inclusive com questões emblemáticas. Para ficar em dois exemplos: uma delas, na Fiocruz, foi um acontecimento deplorável e degradante que ficou conhecido como Massacre de Manguinhos – a demissão na época da ditadura de pesquisadores renomados, mesmo internacionalmente, por conta de posicionamentos políticos. Outro foi a censura imposta em relação à epidemia de meningite. Na época eu trabalhava como infectologista em um hospital no Rio e era uma quantidade enorme de casos de meningite meningocócica, mas a ditadura simplesmente impediu que essa epidemia fosse anunciada, trabalhando contra a população.

Infelizmente em 2018 estamos vivendo esse ataque à democracia, e o pleno do Conselho Nacional de Saúde aprovou, de maneira decisiva, que essa Conferência seria o encontro da nova Oitava.

O que isso significa? Que não vamos dar nenhuma chance para que uma construção tão importante da sociedade brasileira seja derrotada. Sabemos que a luta é árdua, que a decisão desse golpe é essa, de liquidar [os direitos conquistados] junto com o capital financeiro e internacional. Eles querem um mundo para três pessoas, para meia dúzia de pessoas, e 99% estarão fora desse projeto de desenvolvimento – que é um projeto de barbárie. Então estamos em um momento crucial do Brasil. Ou é civilização ou é barbárie.

O maior problema do Brasil hoje é a desigualdade social. E, em pouco tempo de golpe, já vimos o aumento da mortalidade infantil, a volta do sarampo, a [provável] volta do Brasil ao mapa da fome, ou seja, é como se o povo não valesse nada. Esse país que querem para três pessoas é intolerável. Estamos dizendo isso: o Brasil é nosso, o SUS é do povo brasileiro, é um direito de cidadania, não é favor de ninguém e não vamos entregar o país a meia dúzia de planos e seguros privados de saúde, que querem fazer do Brasil um mercado para eles enriquecerem. Não dá, esse projeto não nos cabe. Eles dizem que o SUS e os projetos sociais não cabem no orçamento; o que nós dizemos é que eles não cabem no Brasil.

Nas atividades do Abrascão vemos um fio condutor: o interesse do movimento sanitário de retomar o contato com a população, por saber que, com o SUS sob ataque, só a mobilização pode reverter a tendência de desmonte. O Cebes teve, na fase anterior de defesa da redemocratização e da saúde, um papel grande de popularizar esta luta. Quais os planos agora?

Este é um desafio que estamos nos colocando com muito vigor. Estamos com movimentos simultâneos. Um deles é o de fortalecer nossos núcleos – não só fortalecer os núcleos que já temos em quase todos os estados, mas também organizar mais núcleos populares. No Rio já temos um, na baixada fluminense, que inclui 11 municípios daquela região. Queremos ampliar essa construção de núcleos populares.

Outra iniciativa é a articulação com outros movimentos sociais. Queremos estar junto da Frente Brasil Popular, na construção do Congresso do Povo, com médicos populares, sindicatos de profissionais da saúde, com a associação de doulas, com o sindicato dos médicos, com movimentos da saúde da população negra, enfim, é uma pluralidade. A palavra-chave é unidade de todos os movimentos sociais em defesa dos nossos direitos, da cidadania e da saúde pública.

Porque para nós a saúde é um bem público. Não é um negócio, não é mercadoria. Isso é um lema do movimento sanitário: saúde é democracia. Não dá para conviver com regime de exceção, com um golpe de estado que nos atinge.

E é importante dizer que o SUS é uma realidade contundente: 25% da população tem planos e seguros de saúde, e 75% não tem. Então o SUS é uma coisa do povo brasileiro mesmo. Precisamos qualificar cada vez mais, fazer com que tenha financiamento adequado, qualidade e acesso da população a esse bem público.

Percebemos que um dos vetores principais do ataque é a mídia tradicional, comercial. Ela o faz destacando as mazelas da saúde pública e ocultando as grandes conquistas. Por exemplo, o que a senhora citou: a mortalidade infantil que era de 68 por mil nascidos vivos quando o SUS foi criado, caiu caiu para 13,3, e aumentou para 14 depois do golpe. qual a importância de uma comunicação contra-hegemônica para mobilizar a população?

É estratégica a questão da comunicação popular. E foi fundamental o papel que a mídia teve na construção desse golpe, e é importante ter uma comunicação popular, que possa colocar debates e questões de interesse da população.

Por exemplo, a questão da violência é um problema de saúde pública, mas é tratada na mídia como uma questão militar, de intervenção. Isso chega a ser caricatural. Tratamos há muito tempo a violência como uma questão de saúde pública, uma epidemia, e precisamos, como com qualquer outra, cortar elos de transmissão dessa epidemia. Como se cortam os elos de transmissão da violência? A violência é hoje a principal causa de morte entre o grupo de 15 a 49 anos, considerando tanto as mortes violentas por homicídio como os acidentes de trânsito. Para quebrar os elos, precisamos ter uma enxurrada de políticas públicas articuladas, que possam trabalhar sob a abordagem da saúde pública, acolhendo, debatendo, introduzindo a questão do debate das drogas, a questão do desarmamento, introduzindo uma série de debates. Por exemplo, temos dentro do SUS uma rede de atenção psicossocial e, onde há saúde de rua [atenção voltada às pessoas em situação de rua], temos aqui mesmo na Fiocruz um acúmulo de como deve ser feita essa abordagem, trazendo à tona contribuições dessas populações. Porque as pessoas têm o que dizer, a população é inteligente. E isso precisa se expressar na comunicação. Outra ferramenta é a terapia comunitária familiar, uma abordagem inventada por um médico no Ceará baseada em comunidades de trocas de experiências. Há mil ferramentas que podemos usar para trabalhar a questão da violência.

O SUS tem algo em sua base organizacional que é a Vigilância em Saúde, para identificar os prolemas de cada território. É importante saber localmente qual a nossa lista do inadmissível: não dá para mulher morrer de parto, para bebê nascer com sífilis congênita, para ter tuberculose como temos no Rio de Janeiro – nas áreas de favela, a média de incidência e morte é cinco vezes maior do que em outros locais. Quando se tem esse entendimento, é possível ter uma ação concatenada entre moradia, saúde, educação… Vários sujeitos e agente públicos que, junto com a população, podem se articular para promover territórios saudáveis.

A mídia convencional quer uma população refém principalmente do complexo industrial da saúde, que é importante, mas não da forma avassaladora como colocam. É preciso trabalhar outra lógica e compreensão da consciência sanitária da população, que significa as pessoas compreenderem e se apropriarem de por que nós adoecemos e morremos. Não vamos admitir retrocessos e estamos nos organizando para isso. O desafio é do povo, o SUS é do povo e vamos lutar por isso.

http://www.ihu.unisinos.br/581408-eles-dizem-que-o-sus-nao-cabe-no-orcamento-dizemos-que-eles-e-que-nao-cabem-no-brasil

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