Educação

Educar aluno não é apenas ensinar conteúdo, diz professor de Harvard

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ÉRICA FRAGA – “As escolas existem para educar os alunos, não para servir aos interesses de adultos que trabalham com eles, políticos ou outros grupos”.

No entanto, segundo Fernando Reimers, 58, autor da frase e diretor do Programa de Políticas de Educação Internacional da Universidade Harvard, essa lógica muitas vezes é invertida.

Um exemplo de desvio ocorre quando são indicadas a cargos da área “pessoas leais, sejam talentosas ou não”.

“Isso é lamentável porque reduz a profissionalização da educação e as oportunidades para que os alunos aprendam”, diz Reimers, que nasceu e cresceu na Venezuela.

Ele esteve em São Paulo em setembro para divulgar o livro “Empoderar crianças e jovens para a cidadania global”, recém-publicado em português pela Fundação Santillana e pela Editora Moderna.

A obra propõe um currículo para o desenvolvimento de competências globais, como a capacidade de pensar em soluções para problemas que ameaçam a humanidade, e habilidades socioemocionais, como criatividade e empatia.

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Folha – A educação global tem se tornado mais importante?
Fernando Reimers – A aceleração da globalização está aumentando a necessidade de que todos entendam como é viver em um mundo cada vez mais integrado. O Fórum Econômico Mundial publica todos os anos um relatório sobre os maiores riscos que a humanidade enfrenta. O mais recente identifica eventos climáticos extremos, migração involuntária em larga escala, grandes desastres naturais, ataques terroristas de grande dimensão e incidentes maiores de fraudes de dados como os maiores riscos. É fácil ver como o comportamento humano está no centro de cada um deles. Nenhum deles é inevitável, todos resultam de escolhas do homem sobre preveni-los ou não, ou como mitigar impactos.

A educação para a cidadania global é essencial para vivermos em um mundo inclusivo de forma sustentável.

Há quem veja o Brexit [saída do Reino Unido da União Europeia] e a eleição de Donald Trump nos EUA como sinais de um retrocesso na globalização. Isso reduz o apelo por uma educação desse tipo?
De fato, um crescente populismo, nos EUA e em outros países, desafia a ordem global criada depois da Segunda Guerra com o estabelecimento das Nações Unidas para facilitar a colaboração entre as nações. As fontes desse populismo incluem o descontentamento criado pela globalização, talvez pela rapidez com que transformou comunidades e nações; as persistentes desigualdades econômicas e sociais; e a incerteza causada pelas mudanças geradas pela automação e pelo comércio.

Há também um descontentamento crescente com instituições e uma desconfiança crescente em relação a especialistas e elites. Ainda não sabemos aonde esse populismo nos levará. Se a história nos serve de algo, ele prejudicará as instituições econômicas e democráticas, e, em casos extremos, levará à instabilidade social, violência e ao rompimento da democracia.

Devemos esperar que instituições globais e acordos como os objetivos de desenvolvimento sustentável, ou a declaração universal dos direitos humanos, serão desafiados. Isso ameaça perspectivas de paz e sustentabilidade. Também é provável que a educação para a cidadania global se torne mais contenciosa.

Por que o debate sobre a importância das chamadas habilidades socioemocionais na educação tem ganhado fôlego?
Há um crescente reconhecimento de que a boa educação precisa ser holística. Educar alunos para a vida demanda não só ensiná-las conteúdo, mas que elas aprendam a viver, administrar suas vidas, e se relacionar com os outros.

O currículo que vocês propõem contempla essas habilidades?
Sim. Nós desenvolvemos um modelo de competência que inclui ética, conhecimento, competências sociais, autoconhecimento e modelos de pensamento alinhados ao desenvolvimento de capacidades que ajudariam os alunos a desenvolver uma consciência global e entender os desafios globais mais críticos.

O Curso Global foi inicialmente feito para a Avenues, uma escola de elite. Como é possível adaptá-lo para outros contextos socioeconômicos?
Desde que publicamos o livro em inglês em agosto de 2016, milhares de professores e escolas, públicas e privadas, nos EUA e em outros países, o têm usado para apoiar seus esforços para educar cidadãos globais. Como estou em contato com muitos desses professores, ficou claro que uma versão mais simples do currículo era necessária para facilitar a adoção em larga escala.

Educadores que trabalham em áreas menos favorecidas às vezes alegam ser difícil adicionar novos componentes aos currículos escolares quando já é difícil ensinar o básico, como matemática e português. Eles estão certos?
A questão central que deveria guiar nossos esforços educacionais é como ir de encontro às necessidades dos alunos e empoderá-los para que se tornem os arquitetos de suas próprias vidas e possam contribuir para suas comunidades. As escolas existem para educar os alunos, não para servir aos interesses de adultos que trabalham com eles ou na administração educacional, políticos ou outros grupos. Certamente, deveríamos ouvir os professores quando expressam as limitações que sentem em sua capacidade de ensinar o currículo. É compreensível que alguns professores talvez precisem de apoio sob a forma de desenvolvimento profissional. Esse apoio deveria ser providenciado. Mas o fato de que algo é desafiador não deveria significar que não pode ser feito.

Esse equívoco sobre o papel da educação ocorre com frequência?
A educação pública é a maior organização em muitos países. É uma instituição boa para ajudar os estudantes a aprenderem, mas também emprega pessoas, compra bens e serviços e permite que os governos avancem com suas agendas.

Idealmente, esses objetivos estão bem alinhados. Por exemplo, um governo poderia avançar com sua legitimidade indicando indivíduos muito capazes para liderar o setor. Algumas vezes, no entanto, o governo indica pessoas que são fiéis a ele, capazes ou não. Isso é lamentável porque reduz a profissionalização da educação e as oportunidades para que os alunos aprendam.

Como convencer formuladores de políticas públicas de que seus esforços para implementar um currículo como o Curso Global serão recompensados?
O objetivo é garantir que as escolas estejam ensinando de uma forma que seja relevante para o mundo em que os estudantes viverão. É possível gastar muito tempo administrando esforços para aumentar a capacidade das escolas para melhorar seu desempenho em metas que são cada vez mais irrelevantes para os tempos em que vivemos.

Isso acontece muito?
Sim, acho que a maioria dos sistemas que desenvolvemos para prestação de contas têm instituições e indivíduos que são responsabilizados por atingir metas bem estabelecidas e aceitas, mas não controversas. Eles encorajam as pessoas a se esforçar atingindo metas do passado ou do presente, mas não do futuro.

Avançar com uma educação para formar cidadãos globais é preparar alunos que entendam as tendências globais atuais e como elas influenciarão suas vidas. Precisamos de líderes que entendam esse objetivo. Isso seria liderar para a relevância. Em contraste, criar condições para que os alunos aprendam a ler é também importante, mas é muito mais fácil por se tratar de um objetivo bem estabelecido, tradicional e não controverso.

http://m.folha.uol.com.br/educacao/2017/10/1925283-educar-aluno-nao-e-apenas-ensinar-conteudo-diz-professor-de-harvard.shtml

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