Sociedade

Dedo na Ferida: Discurso da Servidão Voluntária

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Fernando Nogueira da Costa – No passado, uma série de lutas de trabalhadores conseguiu a estabilização da jornada de trabalho em oito horas diárias. No século XIX, chegou a alcançar 16 horas por dia.

Assisti “Dedo na Ferida”, documentário de Sílvio Tendler, realizado no ano corrente (2018). É mais uma denúncia do capitalismo. No caso, a novidade está na constatação de atualmente se alastrar no sistema uma lógica de ação financeira.

Embora mostre uma fábrica de automóveis quase inteiramente robótica, dispensando operários não especializados nessa automação, o documentário não vai fundo no contraste com a imagem de um podólogo submisso a uma longuíssima viagem diária, desde sua moradia na periferia do Grande Rio até seu trabalho em Copacabana.

Os trabalhadores tendem no futuro a só encontrar ocupações em serviços urbanos como cuidadores de idosos. Então, o documentário não coloca o dedo na ferida: o capitalismo industrial não oferece mais empregos na periferia da China.

Hoje, por exemplo, o maior produtor de carros do mundo é a China, com 29 milhões de unidades.

Nos EUA, o total chegou a 11 milhões em 2017. O Brasil ocupa a posição de nono maior produtor mundial, com 2,7 milhões de unidades, superando a França. As vendas atingiram 2,2 milhões em 2017, mantendo o Brasil como o oitavo maior mercado, superando Itália e Canadá, no ranking dos 10 .

Em termos marxistas, a bandeira-de-luta atual deveria ser: dividir a mais-valia relativa.

Ela aumenta com a automação a ocorrer na 4a. Revolução Industrial. Sem redução da jornada semanal de trabalho, apenas os acionistas se apropriarão do aumento da produtividade. Os verdadeiros produtores nada receberão.

A bandeira-de-luta contemporânea é os trabalhadores trocarem o trabalho durante mais anos – para elevação da contribuição previdenciária –, por menor jornada semanal com manutenção de todos os direitos trabalhistas, inclusive o salário.

No passado, uma série de lutas de trabalhadores conseguiu a estabilização da jornada de trabalho em oito horas diárias. No século XIX, chegou a alcançar 16 horas por dia.

Por que não transferir parte dos ganhos de produtividade para os trabalhadores? As lutas sociais propiciaram no passado um incentivo para a substituição do trabalho bruto por máquinas e a redução da duração desse trabalho.

No entanto, o aprimoramento da produtividade graças à informática não trouxe ainda o mesmo efeito.

Com elevação da produtividade poderemos trabalhar mais horas por anos (idade mínima de 65 anos), mas devemos trabalhar menos horas (36) por semana: quatro dias úteis.

Durante a vida ativa, haveria um terceiro dia de trabalho não alienante por semana. O trabalhador teria três dias de trabalho criativo – não para “descansar”, isto é, comer-beber-dormir e/ou se abestalhar em frente à TV – e quatro dias de trabalho no qual seu produto, depois de vendido, seria desfrutado apenas pelo “patrão” – ou acionistas.

Os trabalhadores criativos poderiam, por exemplo, fazer um curso de extensão para alavancagem da carreira profissional.

Outro exemplo: praticar um hobby para demonstrar sua habilidade pessoal, seja como artesão, seja como esportista.

Dessa forma, cada trabalhador-artesão se identificará com o resultado final – e será feliz.

Os críticos da “financeirização”, infelizmente, demonizam o complexo sistema financeiro, emergente através de múltiplos componentes, inclusive nós.

Só enxergam a superfície e não a essência mais profunda do problema contemporâneo. Infelizmente, não pensam em responder à questão-chave, similar à lançada há mais de quatro séculos por Étienne de La Boétie (1530-1563), no seu livro Discurso da Servidão Voluntária. Ele problematizou a enigmática questão da submissão de muitos a um, no caso atual, um demoníaco sistema financeiro.

A pergunta-chave dessa obra clássica é:  porque tantos homens suportam às vezes um tirano só? Servidão só existe para um pela vontade de outro: o escravo precede o senhor. Por que ele serve a quem só o faz padecer?

Em Discurso da Servidão Voluntária, editado pela primeira vez em 1553, seu autor – Etienne La Boétie – sugere: “uma vez instalado, o tirano detém a vontade e o poder de subjugar”.

Mas ele se torna senhor por ter respondido à demanda expressa por quem supostamente domina: o povo.

A cada momento de seu império, a tirania se engendra a partir da vontade de servir. A força da servidão não é, fundamentalmente, o medo.

A servidão não nasce da covardia, assim como a liberdade não nasce da coragem. O chocante da questão da servidão voluntária é a estranha vontade ou o estranho desejo de servir. Estranho também é La Boétie induzir seu leitor a buscar o sentido da amizade de maneira similar ao da servidão. É o equivocado desejo de ser “amigo do rei”.

Mas “amizade é igualdade”. A separação resultante de quando os amigos se esforçam para elevar um dos seus acima deles, quebra os laços da amizade, o viver junto, a partilha dos pensamentos e a igualdade das vontades. A amizade é destruída quando a semelhança entre pares é substituída pela hierarquia entre superiores e inferiores.

A subjugação voluntária ao sistema financeiro de todos nós se dá porque é onde eventualmente buscamos financiar o consumo, a aquisição da casa própria, e mesmo a rentável alavancagem financeira como empreendedor.

Como investidores, desejamos oportunidades de investimentos financeiros seguros, líquidos e rentáveis. Antes de tudo, para nossas interconexões econômicas no nosso cotidiano, temos uma razão prática, inclusive ligada à segurança, de nos submeter ao sistema de pagamentos eletrônicos de varejo, acessível a todos os cidadãos em sociedade civilizada.

Para entender essa “financeirização” voluntária, lembremos da dialética senhor-escravo, formulada por Hegel.

Desejar significa desejar ser reconhecido. Mas se cada consciência individual quiser obter esse reconhecimento, o resultado será o conflito entre as diversas consciências, pois haverá exclusão mútua.

Entretanto, se essa luta terminasse com a supressão das consciências de todos aqueles incapazes de aceitar o reconhecimento da vitoriosa, a morte delas privaria essa vitória de sentido, uma vez que o vencedor não teria ninguém para reconhecê-lo. A imposição do vencedor deixa com vida o vencido em troca deste reconhecê-lo e de renunciar a ser reconhecido. Essa relação de dominação e de servidão é a relação entre o senhor e o escravo.

No caso atual, o banco só poder crescer junto com seu cliente. O sistema bancário multiplica moeda de maneira interdependente com uma rede de clientes.

Hegel não apresenta essa luta mortal entre o senhor (sistema financeiro) e o escravo (cliente), entre opressores e oprimidos, como um fato real verificado ao longo da história, com origem em contradições reais, concretas.

Sua filosofia idealista se repousa sob a forma intertemporal e abstrata correspondente ao movimento do espírito para alcançar seu pleno reconhecimento. Desse modo, justifica, ideologicamente, a servidão.

O senhor, segundo Hegel, é o homem (ou sistema) capaz de, arriscando sua vida, chegar até o fim da luta pelo reconhecimento. O escravo é quem, por medo da morte, recua na luta e renuncia a ser reconhecido.

O trabalho é servidão, dependência em relação a esse senhor.

Mas essa dependência acarreta – como atividade prática, real – a transformação da natureza e a criação de algum produto. O subjetivo se torna objetivo no produto e, desse modo, cria um mundo próprio. É possível reconhecer-se nos produtos criados por si. Transformando a natureza, o escravo reconhece a sua própria natureza.

Esse reconhecimento de si em seus produtos é consciência de si como ser humano.

Enquanto o senhor, por subjugar e não criar, por não transformar coisas, não se transforma a si mesmo e não se eleva, portanto, como ser humano. O escravo se eleva como tal e adquire consciência de sua liberdade no processo de trabalho.

Mas apenas se liberta idealmente, isto é, a realização da liberdade só ocorre no plano do Espírito.

Portanto, o trabalho é a melhor e a pior das coisas: a melhor, se é livre (não alienado); a pior, se é escravo (alienante).

O trabalho criativo é, em si mesmo, prazer, independentemente das vantagens imediatas dele extraído por exploradores.

A maioria dos homens, para viver, consome a maior parte do tempo no trabalho.

O pouco de liberdade de sobra angustia-os de modo tal a procurar por todos os meios de se livrar dela, através do tédio ou do vício. Lembra: “é melhor morrer de vodka em vez de tédio”.

Não há homem completo à margem do trabalho criador, seja no ócio, seja em trabalho alienado. Nesse ele não tem interesse pelo produto criado.

Essa consciência é adquirida pelo sujeito trabalhador através de longo processo teórico e prático de luta contra sua alienação e exploração. A concepção hegeliana do trabalho, embora tenha seu mérito obscurecido por ser uma concepção espiritualista, significa uma descoberta profunda: a do papel da práxis produtiva na formação e libertação do homem.

Dedução prática: os trabalhadores ganham a vida através do trabalho criativo e não alienante.

Buscam prazer e encanto nele como fossem um artesão a empregar todo seu conhecimento e sua habilidade em seu ofício. Tendo o reconhecimento profissional, no mercado de trabalho, são capazes de defender o poder aquisitivo da sobra de suas rendas no mercado financeiro sem a ilusão de terem um dote (“a sorte do iniciante”) para se enriquecerem no mercado de capitais. O uso consciente do acesso à cidadania financeira é a acumulação de juros recebidos, capitalizando o poder de ganho pessoal com seu capital humano, e não o pagamento de juros ao capital financeiro. Só.

https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Dedo-na-Ferida-Discurso-da-Servidao-Voluntaria/4/42117

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