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Brexit expõe o colapso da (des)ordem burguesa

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José Arbex Jr. – O Brexit, aprovado mediante plebiscito, em 23 de junho, por 52% contra 48% dos eleitores do Reino Unido, com todas as suas consequências e efeitos desagregadores sobre o conjunto da União Europeia, é só a ponta mais visível de uma crise profunda, que ameaça esgarçar o que ainda resta da “ordem” internacional. A crise é determinada por movimentos contraditórios, ensaiados por setores da própria burguesia, que ameaçam produzir grandes ondas de choque: de um lado, o capital tenta reconstruir a economia mundial segundo um processo de ultraliberalização dos fluxos de mercadorias, bens, capitais e serviços, numa escala e amplitude sem precedentes; no sentido contrário, setores da própria burguesia apostam no “fechamento” das economias nacionais, com a adoção de medidas protecionistas, restrições de fronteiras e um discurso xenofóbico e racista. A “novidade” reside no fato de que a ideologia protecionista consegue, agora, derrotar o discurso “globalizante” e arrasta consigo peças centrais do xadrez capitalista, como é o caso do Reino Unido.

O campo ultraliberal é bem representado pelo presidente Barack Obama e sua estratégia de internacionalização total do capital, mediante a construção de três grandes blocos: o TPP (Trans-Pacific Partnership), o TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership) e o Tisa (Trade in Services Agreement). A consolidação dos três acordos implicaria, em resumo, a total renúncia à soberania das nações sobre o controle das próprias economias, e a entrega do poder de decisão, fiscalização e legislação às megacorporações que monopolizam o mercado mundial. Comparado com aquilo que os acordos preconizam, a Alca – que assombrou a América Latina na primeira década do século, por colocar em perspectiva a anexação dos mercados nacionais ao estadunidense – soa mais como uma brincadeira de criança. Exagero? De modo algum: basta uma rápida análise do que prevê o Acordo de Serviços.

As negociações em torno do Tisa foram iniciadas em 2013, envolvendo os Estados Unidos, a União Europeia e 22 outros países, entre os quais Israel, Canadá, México Japão, Coreia do Sul e Turquia. As negociações eram e ainda são secretas. Só se tornaram conhecidas porque, em junho de 2015, houve um vazamento, via WikiLeaks, de 17 documentos centrais, incluindo 11 capítulos ainda em debate. Os signatários se comprometem a manter os termos secretos durante cinco anos, mesmo após a conclusão dos acordos. Os Brics se recusaram a participar, e isso ajuda a entender um componente central do golpe para afastar Dilma Rousseff da presidência: não por acaso, uma das primeiras grandes providências do governo Temer foi proclamar a adesão do Brasil ao processo de negociações. A outra providência foi fazer aprovar a Medida Provisória 727 (Programa de Parceria de Invetimentos), redigido em total consonância com os termos previstos pelo acordo.

Do que se conhece até agora, o Tisa implicará a completa liberalização (isto é, abertura total ao processo de privatizações e entrada do capital estrangeiro) de todos os serviços, o que inclui saúde, educação, transporte aéreo e marítimo, comércio pela Internet, investimentos financeiros, fornecimento de projetos de engenharia e planos arquitetônicos, abastecimento de água e infraestrutura básica etc. Para se ter uma ideia da dimensão disso, o conjunto dos itens previstos engloba cerca de 80% do PIB dos Estados Unidos. Mas o maior problema vem agora: a adesão ao Tisa implica a renúncia, pelos países membros, aos mecanismos de controle da economia nacional. Exemplos: se determinado setor da economia é privatizado (digamos, o fornecimento de água potável), ele nunca mais poderá ser re-estatizado; se um congresso nacional aprovar qualquer regulamentação que limite os lucros de uma corporação (por exemplo, leis ambientais que impeçam o uso de produtos tóxicos usados pela empresa), ela terá o direito de exigir a revogação da lei, em uma corte internacional. A lista de horrores é praticamente infinita.

A estratégia ultraliberal consagra, enfim, a lógica que entrega às 62 famílias mais ricas do planeta o equivalente, em dinheiro, à soma das posses da metade mais pobre da humanidade. Mas, a maior resistência a esse processo não é produzida pela esquerda, e sim por lideranças fascistóides, racistas e xenofóbicas oriundas da própria burguesia e/ou dos setores radicalizados da classe média proletarizada. O Brexit, novamente, é apenas a parte mais visível desse processo. Ele reflete o medo, os ódios e frustrações do “pequeno inglês”: o trabalhador demitido ou o que viu o seu salário ser drasticamente reduzido, o produtor rural cuja renda mal dá para alimentar a família, o aposentado que recebe os benefícios cada vez mais tarde e tem que continuar trabalhando para pagar as contas no final do mês, o provinciano que vê com desconfiança a chegada dos estrangeiros “que vêm ao nosso país roubar o nosso emprego”.

Entre a explicação correta, mas complicada (a miséria não é causada pelos refugiados e imigrantes, mas sim pelos planos de “austeridade” do capital) e equivocada, mas fácil (a culpa é do árabe, negro e/ou islâmico terrorista), a acusação ao “inimigo” visível é vantajosamente explorada por demagogos, carreiristas ou idiotas consumados mas perigosos, como demonstrou Adolf.

É o sentimento que produziu o “efeito Trump” nas eleições presidenciais dos Estados Unidos, com suas promessas de deportar 11 milhões de mexicanos, construir um muro entre os dois países e banir a entrada de islâmicos. A ascensão de Trump, ancorada, no plano econômico, na promessa de retirar Washington de todos os acordos comerciais e renegociar sua participação, causa, hoje, uma crise política sem precedentes no país, pelo menos desde 1865. O racismo, o preconceito e o nacionalismo mostram suas garras também na França (Frente Nacional de Le Pen, o partido que mais cresce nas pesquisas), na Áustria (onde o Partido da Liberdade, neonazista, perdeu a presidência do país, em maio, por uma diferença de apenas 0,6% dos votos, e conseguiu anular o pleito), na Polônia (Lei e Justiça), na Suécia (Partido Democrata), na Hungria (Fidesz e Jobbik), na Bulgária (Ataka), Ucrânia (Svoboda). Todos os que fazem parte da União Europeia propõem a realização de plebiscitos e consultas com o objetivo de fortalecer as fronteiras e, no limite, romper os laços.

As duas grandes tendências – a ultraliberal e a ultranacionalista – são reais, e ambas prometem efeitos catastróficos para os povos e nações. É claro que surgem alternativas à esquerda, como o liderado por Bernie Sanders, nos Estados Unidos, ou os movimentos Podemos (Espanha) e Syriza (Grécia), ou, ainda, a resistência oferecida pela grande base do Partido dos Trabalhadores no Brasil. A questão é saber se esses movimentos e partidos estarão prontos para os grandes embates que se anunciam, e que já se manifestam com força nas ruas de Paris.

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