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Argentina: os mercados cercam a democracia

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Antonio Martins – Nas urnas, população goleou política quase idêntica à de Bolsonaro. Um dia depois, oligarquia financeira deflagra crise cambial e sugere: “agora, quem vota somos nós”. Vêm aí lances decisivos para o futuro da América do Sul.

Ao renunciar à candidatura à presidência, ela qualificou-se como estrategista da vitória sobre a direita – agora mais possível que nunca. Seu gesto diz muito, a Brasil às voltas com Bolsonaro e a uma Europa ameaçada pelo neofascismo.

Por que permanecem firmes os governos que, a exemplo do brasileiro, perdem apoio popular, mantêm ou agravam a crise social, devastam o parque produtivo e vomitam por todos os poros incivilidade e patifaria? Qual a relação entre as políticas ultracapitalistas, tramadas nos salões elegantes dos bancos e das empresas de consultoria globais, e as falas de latrina de um Bolsonaro, um Trump, um Duterte – ou, ainda pior, a rápida erosão das liberdades civis e o avanço das milícias e esquadrões da morte? Pode um político neoliberal disfarçar-se de populista e contar com o apoio explícito do FMI? Como vencer este casamento de conveniências – porém, de sinistras consequências – entre defensores extremados da “liberdade” dos mercados e protofascistas?

Nada como a experiência, para encontrar as respostas. No último domingo (11/8), os argentinos – que em 2001 repudiaram uma dívida externa avassaladora e produziram o maior defaultfinanceiro de todos os tempos – protagonizaram outro evento inédito. Pela primeira vez, um governo instalado na onda atual de ascenso da ultra-direita foi batido nas urnas. Os peronistas Alberto Fernández e Cristina Fernández (Kirchner) arrasaram Maurício Macri, vencendo-o por 15 pontos percentuais (47,7% x 32,2%) em primárias gerais. Embora não sejam as eleições definitivas (marcadas para 27/10), as primárias atraíram 75% dos eleitores, foram realizadas pela Justiça Eleitoral segundo as mesmas normas e procedimentos do pleito e são consideradas por todos como indício de derrota quase certa do candidato neoliberal.

Na segunda-feira, os mercados deflagraram sua resposta. Os grandes aplicadores iniciaram uma fuga cambial em massa, que fez a moeda argentina despencar 30% em poucas horas. O dólar chegou a valer 60 pesos (caindo para 57,30 depois de três intervenções do Banco Central, que torraram mais US$ 106 milhões). Na bolsa de Buenos Aires, as ações também desabaram, com o Índice Merval recuando também 30%. A onda de pessimismo repercutiu pelo mundo e derrubou as cotações de outras moedas na periferia do sistema: a lira turca, o rand sul-africano, o real brasileiro. Mas a oligarquia financeira, que apoiou Macri durante todo o seu mandato, julgou-se em condições de fazer exigências… a Alberto Fernández. O candidato peronista “precisa enviar uma mensagem para os mercados, que o enxergam com desconfiança”, disse Rodrigo Álvarez, diretor da consultora Analytica, ao diário portenho Clarín.

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Ultracapitalistas e protofascistas estiveram em campos muito distintos, durante quase todo o século XX. O arranjo entre estas duas correntes políticas repete-se, em todo o mundo, cada vez mais frequentemente desde a crise de 2008 – mas assume características distintas em cada país. Na Argentina, foi galvanizada pela eleição de Maurício Macri em 2015 e configurou-se como um neoliberalismo com fortes nuances assistencialistas. O governo do atual presidente tem três fases distintas. As transições entre elas revelam que a conexão entre as correntes que o apoiam não é fortuita, porque se mantém, em distintos cenários.

Na primeira fase, Macri é, em essência, neoliberal ao extremo e repressivo. No terreno econômico, ele libera a entrada e saída de dólares (permitindo, inclusive, contas de argentinas na moeda norte-americana). Elimina os impostos de importação, que distribuíam parte da imensa riqueza dos proprietários de terra. Entra em acordo com a oligarquia financeira global, desfazendo o default aberto e a renegociação da dívida (em termos muito mais favoráveis) realizada por Nestor e Cristina Kirchner. Elimina os subsídios à eletricidade e ao gás, fazendo disparar os preços destes itens de consumo popular. Aprova no Congresso uma contrarreforma trabalhista que limita a possibilidade de os trabalhadores recorrerem à Justiça contra seus patrṍes. Alinha-se com Donald Trump. No terreno dos direitos humanos, crescem fenômenos pouco conhecidos até então pelos argentinos, como o encarceramento em massa (a pretexto da “guerra às drogas”) e as execuções de “suspeitos” pela polícia. Mas avançou também a repressão política por parte do Estado. Uma aproximação oportunista com os militares levou o presidente a relativizar, em diversas ocasiões, os crimes da ditadura sangrenta pós-1976. E novas normas legais facilitaram a detenção maciça de participantes em manifestações de rua.

Para que os ataques a direitos sociais não pintassem um governo claramente antipopular, houve políticas assistencialistas. Atenção nutricional a crianças até 4 anos. Um pequeno apoio econômico a micro e pequenas empresas (muito insuficiente para compensar a quebradeira provocada pelas políticas neoliberais). Uma cópia do Benefício de Prestação Continuada que, no Brasil, atende aos idosos que não puderam contribuir com a Previdência o tempo necessário para obter aposentadoria.

Os mercados globais aplaudiram e financiaram a aventura. Um forte fluxo de aplicações irrigou a Argentina, por cerca de dois anos e meio. A queda das receitas tributárias foi financiada em dólares. O resultado foi um enorme salto da dívida externa. Entre 2015 e 2018, ela mais do que dobrou, saltando de US$ 63 bilhões para US$ 140 bi. Então, os credores apresentaram a conta, na forma de uma primeira rodada de pressões intensas sobre o peso.

Até o final do governo de Cristina Kirchner, a cotação do dólar mantinha-se relativamente estável, em torno de 20 pesos. Em 2018, em menos de seis meses, a taxa pulou para 40. Como ocorreria também no Brasil, o resultado foi uma forte alta na inflação. Em junho, a barreira dos 30% ao ano foi rompida. Para um presidente que, como candidato, prometera inflação zero, era um desastre político.

Começa então, simultaneamente uma segunda etapa do governo e da parceria entre ultracapitalistas e protofascistas. O marco emblemático é o acordo com o FMI, firmado neste mesmo mês. Suas condições são especialíssimas, como mostra um estudo detalhado do Centro de Economia Política Argentina (CEPA). Nunca o Fundo havia emprestado tanto a um país: US$ 50 bilhões, que depois subirão para US$ 57 bi. Mas o que chama mais atenção é a extrema coincidência entre os desembolsos e… o calendário eleitoral. Como mostra o CEPA, 88% das transferências bilionárias do FMI vão se dar até as eleições de outubro próximo – e deste montante, os volumes mais gordos correspondem exatamente aos meses finais da campanha. Tudo parece claro: não se trata do “resgate” de um país, mas da tentativa, por parte da aristocracia financeira global, de salvar seu aliado local e bloquear a eleição de um governo de esquerda. Em novembro, quase todo o empréstimo estará esgotado. Se Macri for reeleito, pagará a conta. Se os eleitores preferirem os peronistas, o país estará quebrado.

Como é comum nestes casos, contudo, o feitiço fracassa. O FMI impõe aos argentinos a “austeridade”, com tentativa de redução drástica do déficit fiscal – salvo, é claro, para pagar juros aos grandes credores do Estado. Emerge uma crise social descrita, em detalhes, por vasta matéria do New York Times. No segundo semestre, o percentual da população abaixo da linha de pobreza chega a 32%. O país passa a conviver com favelas, enorme aumento da população obrigada a viver nas ruas, gente obrigada a buscar nos lixões algo com que sobreviver.

E vem, em abril de 2019, a última viragem, quase uma confirmação do desespero. O Fundo Monetário Internacional não se limita a elevar em 7 bilhões de dólares um “resgate” que já era recorde. Agora permite explicitamente, e contrariando suas normas internas, que o dinheiro seja utilizado para sustentar, de modo provisório e precário, a cotação do peso frente ao dólar. Abastecido – e sem vergonha alguma de contrariar a si próprio – o governo Macri adotará alguma das medidas que mais criticava no período peronista, e que o FMI mais critica nos governos que deseja sabotar. Controle preços, mediante “acordo” com as grandes redes de varejo. Subsídio de tarifas públicas – com reversão de aumentos que já haviam sido anunciados. Volta de alguns dos impostos sobre exportação de commodities.

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“Um tsunami passou pelo quarto escuro. Às vezes, os cidadãos pronunciam-se como se tivessem conjurado”, escreveu, em Página 12o analista político Mário Wainfeld. A autêntica revolta popular expressa nas urnas em 11/8 revela “fastio e esperança”, disse ele. Há limites para a demagogia, as fake news, a troca da política pelo emprego maciço de Big Data, a provocação ininterrupta, o xingamento dos adversários, a polarização que tolhe o debate, o desrespeito aos ritos da democracia e até aos bons modos. Também os bolsonaros encontram seu dia.

O ataque detonado na segunda-feira pela oligarquia financeira é um desafio claro a Alberto Fernández e Cristina. Como reagirá o candidato à Presidência, conhecido por uma postura mais moderada que a de sua companheira de chapa? Assinará algo como uma “Carta aos Argentinos”, 17 anos depois de Lula e numa conjuntura em que os banqueiros já não buscam acordos no âmbito da democracia — e sim rompê-la, para proteger seus próprios privilégios?

Em grande medida, a goleada imposta por Fernández parece dever-se ao fato de ter adotado outra postura, ao longo dos primeiros meses de campanha. Embora evitando cair em armadilhas e fazer declarações que pudessem ser transformadas em armas contra si pela mídia hegemônica, ele deixou claro em uma de suas peças de propaganda na TV: “não podemos pagar nossas dívidas até que voltemos a crescer”.

Significa que ele “poderia, se eleito, dar calote nos papéis do governo e renegociar o empréstimo com o FMI”, lamentou The Economist, em comentário que não esconde a torcida por Macri. Os eleitores mostraram que pensam diferente; que é possível contar com eles para uma virada que sacuda a aliança entre as duas direitas e coloque a Argentina em rumo oposto ao atual. As onze semanas que faltam para a eleição serão dramáticas. Mas se as inspirações da coragem política animarem Alberto e Cristina, o cenário político da América do Sul irá se tornar, a partir de 27 de outubro, muito mais interessante, rico em alternativas, menos sombrio e cinzento.

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