Teoria

“A única saída da barbárie é reinventar a política como luta de classes”

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Gabriel Brito – A tor­rente de no­tí­cias de­sa­len­ta­doras já se tornou um es­pe­tá­culo diário que pa­rece dis­trair o pú­blico até a pa­ra­li­sação. Se na po­lí­tica par­la­mentar a tô­nica é de des­monte in­cle­mente das po­lí­ticas e ins­ti­tui­ções pú­blicas que possam fazer con­tra­ponto ao in­te­resse ca­pi­ta­lista, fora delas as re­a­ções pa­recem poucas e pon­tuais. Para ana­lisar o mo­mento bra­si­leiro, e sua in­serção no plano in­ter­na­ci­onal, o Cor­reio en­tre­vistou a so­ció­loga Maria Or­landa Pi­nassi, que com­pre­ende o con­texto como de crise es­tru­tural da po­lí­tica li­beral.

“A po­lí­tica em crise es­tru­tural pa­vi­menta os ca­mi­nhos da fi­nan­cei­ri­zação, da in­ter­na­ci­o­na­li­zação e des­re­gu­la­men­ta­ções da eco­nomia, do de­sem­prego es­tru­tural e pre­ca­ri­zação da imensa massa tra­ba­lha­dora. Além, é claro, da apro­pri­ação ir­res­pon­sável e de­gra­dante dos re­cursos na­tu­rais do pla­neta. O Es­tado con­fere le­ga­li­dade a uma ir­ra­ci­onal pro­dução des­tru­tiva”.

Dentro deste es­copo, Pi­nassi con­si­dera o go­verno Bol­so­naro tão as­som­broso quanto con­ve­ni­ente ao re­po­si­ci­o­na­mento su­bal­terno do Brasil. O en­contro de in­te­resses pri­vados na maior parte dos focos de in­cêndio da Amazônia são de­mons­tra­tivos a res­peito de quem lucra com a des­truição ampla, geral e ir­res­trita. Um go­verno que a seu ver é “a sín­tese som­bria e mais apa­re­lhada da fas­cis­ti­zação tec­no­crá­tica que co­meçou há 50 anos”.

“De­fendo a ideia de que Bol­so­naro não é exa­ta­mente um aci­dente de per­curso, nem re­tro­cesso his­tó­rico. Ele é sim um tipo incô­modo, des­con­cer­tante, para dizer o mí­nimo, mas con­ve­ni­ente ao re­bai­xa­mento do Brasil nas hi­e­rar­quias de uma nova di­visão so­cial in­ter­na­ci­onal do tra­balho. Pas­sados nove meses de in­tenso des­monte ins­ti­tu­ci­onal – tra­ba­lhista, pre­vi­den­ciário, ci­en­tí­fico e edu­ca­ci­onal, de saúde, am­bi­ental -, e de com­pleto desdém pela mo­ra­li­dade bur­guesa, o go­verno Bol­so­naro con­firma sua cru­zada pela re­no­vação am­pliada da nossa de­pen­dência es­tru­tural, dessa vez de ma­neira ainda mais aca­cha­pante”, ex­plicou.

Em termos de opo­sição à ta­manha ofen­siva ca­pi­ta­lista, as­so­ciada aos mo­vi­mentos ul­tra­con­ser­va­dores que fal­seiam sua imagem de crí­ticos do sis­tema, Maria Or­landa Pi­nassi aponta a in­ca­pa­ci­dade de di­versos se­tores que ainda pre­do­minam nas es­querdas e a ne­ces­si­dade de pos­turas de rup­tura, e não re­paro, com a ins­ti­tu­ci­o­na­li­dade pre­sente.

‘Não vejo pro­ta­go­nismo para as es­querdas acos­tu­madas aos con­flitos e ten­sões do pe­ríodo an­te­rior. As ins­ti­tu­ci­o­na­li­za­ções e as lutas de­fen­sivas – no sin­di­cato e no par­tido po­lí­tico par­la­mentar – tu­te­ladas pelo es­tado de bem-estar-so­cial aco­mo­daram as es­querdas numa zona de con­forto de onde re­lutam em sair. Não obs­tante a pro­funda de­ca­dência da po­lí­tica, o que mais as­sis­timos entre as es­querdas é o apelo pela imoral de­mo­cracia li­beral, re­pre­sen­ta­tiva”.

A en­tre­vista com­pleta com Maria Or­landa Pi­nassi pode ser lida a se­guir.

Cor­reio da Ci­da­dania: Co­me­çamos a en­tre­vista lem­brando de texto seu pu­bli­cado em ja­neiro de 2018, o qual fa­lava da “crise es­tru­tural da po­lí­tica” no Brasil, ainda di­ri­gido por Temer, e na Ar­gen­tina, já na se­gunda me­tade do go­verno Macri. Os mo­tivos se­riam o re­en­contro com suas con­di­ções co­lo­niais e de­pen­dentes re­for­çadas pela crise, ao lado de um es­va­zi­a­mento quase ir­re­me­diável da po­lí­tica ofi­cial. O que co­menta desta aná­lise à luz do mo­mento dos dois países?

Maria Or­landa Pi­nassi: A per­gunta me dá a opor­tu­ni­dade de fazer al­guns es­cla­re­ci­mentos teó­ricos. No texto de 2018 que você men­ciona, faço uso do con­ceito de crise es­tru­tural da po­lí­tica com base nas aná­lises do fi­ló­sofo Istvan Més­záros. Para ele, esse con­ceito só faz sen­tido se com­pre­en­dido na re­lação in­dis­so­lúvel que es­ta­be­lece com a pró­pria crise es­tru­tural do ca­pital, fenô­meno que con­ta­mina todo o me­ta­bo­lismo so­cial do sis­tema a partir dos anos fi­nais da dé­cada de 1960.

Mas o que sig­ni­fica exa­ta­mente? Em pri­meiro lugar, que esta crise do ca­pital não é pa­ra­li­sante. Muito ao con­trário, trata-se de um pro­cesso de­sen­freado de acu­mu­lação que se ge­ne­ra­liza e avança sobre cada poro da so­ci­e­dade. O ca­pital age como causa sui de modo au­to­ri­tário, pre­da­tório e to­tal­mente des­com­pro­mis­sado com as ne­ces­si­dades hu­manas (ma­te­ri­a­li­zadas em va­lores de uso). Para tanto, a po­lí­tica pre­cisa se li­bertar de sua pró­pria his­tória pau­tada em pactos e di­reitos for­mais her­dados de seu pe­ríodo re­vo­lu­ci­o­nário. Mas isso não sig­ni­fica es­va­zi­a­mento da po­lí­tica ofi­cial, como su­ge­rido. A po­lí­tica vai se re­con­fi­gurar para as­se­gurar o apro­fun­da­mento da de­si­gual­dade so­cial.

De modo de­si­gual e com­bi­nado, a po­lí­tica em crise es­tru­tural pa­vi­menta os ca­mi­nhos da fi­nan­cei­ri­zação, da in­ter­na­ci­o­na­li­zação e des­re­gu­la­men­ta­ções da eco­nomia, do de­sem­prego es­tru­tural e pre­ca­ri­zação da imensa massa tra­ba­lha­dora. Além, é claro, da apro­pri­ação ir­res­pon­sável e de­gra­dante dos re­cursos na­tu­rais do pla­neta. O Es­tado con­fere le­ga­li­dade a uma ir­ra­ci­onal pro­dução des­tru­tiva.

Po­demos ir mais fundo ainda neste con­ceito acom­pa­nhando as aná­lises de Flo­restan Fer­nandes sobre a nossa es­pe­cí­fica re­a­li­dade his­tó­rica. Em “Notas sobre o fas­cismo”, texto es­crito em To­ronto no ano de 1971, ele afirma que “as crises po­lí­ticas com que se de­frontam os países la­tino-ame­ri­canos são (desde sempre) crises es­tru­tu­rais” (1).

Vejo com­ple­men­tação nas aná­lises desses dois au­tores e ambos ajudam a pensar que a crise es­tru­tural da po­lí­tica la­tino-ame­ri­cana, de­fi­nida em suas raízes ir­re­me­di­a­vel­mente co­lo­niais e de­pen­dentes, se en­contra com e po­ten­ci­a­liza a crise es­tru­tural da po­lí­tica do sis­tema.

Sempre é bom lem­brar que o en­contro ini­cial de crises es­tru­tu­rais na Amé­rica La­tina acon­teceu por meio das múl­ti­plas di­ta­duras nos anos de 1960, 70, 80. O con­trole mi­li­ta­ri­zado foi a forma de in­te­grar essa parte do con­ti­nente ao im­pe­ri­a­lismo ne­o­li­beral. Desde então, os su­ces­sivos go­vernos mi­li­tares e civis, mais ou menos de­mo­crá­ticos, sem ex­ceção, cum­prem, cada um ao seu modo, a função po­lí­tica de ge­ren­ciar essa in­te­gração su­bal­ter­ni­zada. E in­de­pen­den­te­mente da forma que as­su­miram ao longo desses já longos anos – se ne­o­li­be­ra­lismo de botas, or­to­doxo, so­cial e de botas no­va­mente – todos deram e con­ti­nuar dando con­tri­buição efe­tiva à marcha da con­trar­re­vo­lução.

Pen­sando dessa forma é que co­meço aquele texto de ja­neiro de 2018 di­zendo que “seja me­di­ante golpe, seja através das urnas, pouco in­te­ressa que um seja ile­gí­timo e o outro le­gí­timo, im­por­tante é que Temer aqui, Macri acolá, an­co­rados em con­gressos imo­rais e mí­dias em­bus­teiras, con­duzem seus res­pec­tivos go­vernos con­forme a mú­sica exige da po­lí­tica de Es­tado”.

Muita coisa acon­teceu neste tempo no Brasil e na Ar­gen­tina, fato é que me­di­ante a ins­ti­tuição par­la­mentar, lá e cá, con­ti­nu­amos dando passos largos rumo ao in­ferno. Mas, Bol­so­naro não é igual a Macri, que ide­o­lo­gi­ca­mente alinha me­lhor com o di­rei­tista Temer. Bol­so­naro per­tence a outra cepa. Ele é cer­ta­mente o re­pre­sen­tante mais gro­tesco da ex­trema-di­reita que des­ponta no mundo, pois ele foi ta­lhado para des­qua­li­ficar a nossa imagem po­lí­tica e re­con­duzir o país ao seu lugar pe­ri­fé­rico, lugar de onde nunca saiu ver­da­dei­ra­mente.

Uma nota mais sobre isso, e que talvez possa vir a ser uma di­fe­rença entre os dois países, foi a re­jeição po­pular a Macri nas elei­ções pri­má­rias, en­quanto o Brasil “mitou” a pior de suas op­ções no pleito mais dra­má­tico da sua his­tória. Isso sig­ni­fica que sob Bol­so­naro o Brasil vive sua crise es­tru­tural da po­lí­tica em es­tado bruto, uma tra­gédia so­cial, am­bi­ental e hu­mana sem pre­ce­dentes. Se a si­tu­ação ar­gen­tina pa­rece menos as­sus­ta­dora, a con­fi­ança ex­ces­siva no pro­cesso elei­toral pode levar à re­e­dição de uma farsa pro­gres­sista e con­duzir o país para uma re­a­li­dade muito menos fa­vo­rável do que um dia con­se­guiu ser na era Kir­chner.

Cor­reio da Ci­da­dania: No caso bra­si­leiro, como sin­te­tiza os pri­meiros meses de go­verno Bol­so­naro em seu sig­ni­fi­cado his­tó­rico?

Maria Or­landa Pi­nassi: Desde o pri­meiro mo­mento, de­fendo a ideia de que Bol­so­naro não é exa­ta­mente um aci­dente de per­curso, nem re­tro­cesso his­tó­rico. Ele é, sim, um tipo incô­modo, des­con­cer­tante, para dizer o mí­nimo, mas con­ve­ni­ente ao re­bai­xa­mento do Brasil nas hi­e­rar­quias de uma nova di­visão so­cial in­ter­na­ci­onal do tra­balho. Pas­sados nove meses de in­tenso des­monte ins­ti­tu­ci­onal – tra­ba­lhista, pre­vi­den­ciário, ci­en­tí­fico e edu­ca­ci­onal, de saúde, am­bi­ental -, e de com­pleto desdém pela mo­ra­li­dade bur­guesa, o go­verno Bol­so­naro con­firma sua cru­zada pela re­no­vação am­pliada da nossa de­pen­dência es­tru­tural, dessa vez de ma­neira ainda mais aca­cha­pante. Ao os­tentar com or­gulho a nossa su­bal­ter­ni­dade frente ao im­pério ianque, rompe com a an­tiga len­ga­lenga do de­sen­vol­vi­men­tismo e da so­be­rania na­ci­onal, os so­nhos de li­be­rais da di­reita e da es­querda. Sim, somos quintal do andar de cima. Sim­ples assim.

A mi­séria ide­o­ló­gica desse go­verno pro­penso aos es­cár­nios é a no­vi­dade, uma vez que faz, sim, apo­logia da vi­o­lência, da di­ta­dura, da vi­o­lação dos di­reitos hu­manos, gla­mou­riza as fi­guras mais cruéis da tor­tura no Brasil e bate con­ti­nência para a ban­deira norte-ame­ri­cana. Mas, se 2019 não é 1964, também não é sua an­tí­tese. Pre­firo com­pre­ender este nosso mo­mento dra­má­tico como uma sín­tese som­bria e mais apa­re­lhada da fas­cis­ti­zação tec­no­crá­tica que co­meçou há 50 anos.

A parte mais pre­o­cu­pante disso tudo é a pressa com que se ma­te­ri­a­liza o pro­jeto Como ar­rasar um país em poucos meses, um pro­jeto plu­to­crá­tico de nação am­pla­mente ex­clu­dente e es­cu­dada na for­mu­lação de uma so­ci­a­bi­li­dade ri­gi­da­mente es­tra­ti­fi­cada e re­la­ti­va­mente sim­pli­fi­cada. A re­es­tru­tu­ração edu­ca­ci­onal com a Es­cola sem Par­tido, o Fu­ture-se e a mi­li­ta­ri­zação das es­colas pú­blicas vis­lum­bram a con­so­li­dação deste pro­jeto que es­pirra a classe média da his­tória.

No topo da pi­râ­mide os ricos, ob­vi­a­mente, aqueles que terão acesso pri­vi­le­giado ao co­nhe­ci­mento; na sequência, seus guar­diões re­cru­tados nas ca­madas po­pu­lares (lem­bram de Saló de Pa­so­lini?) e trei­nados se­gundo a cons­ci­ência e a dis­ci­plina da ordem mi­litar; e, abaixo deles, os mi­lhões de pá­rias sem es­cola, sem tra­balho, sem teto, sem saúde, sem di­reitos, cons­ci­entes tão so­mente de suas ne­ces­si­dades bi­o­ló­gicas, vi­vendo nas franjas da so­ci­e­dade re­pa­gi­nada para ser cruel, e só cruel.

Cor­reio da Ci­da­dania: Até que ponto os in­cên­dios da Amazônia di­a­logam com este con­texto, ainda que se trate de um pro­blema an­tigo?

Maria Or­landa Pi­nassi: Desde a colônia, o fogo vem sendo o me­lhor dos meios de er­ra­dicar matas e po­pu­la­ções na­tivas abrindo es­paço para pastos e plan­ta­tion. Com a Re­vo­lução Verde, o pro­jeto de mo­der­ni­zação agrí­cola im­plan­tado na di­ta­dura, o des­ma­ta­mento seja com mo­tos­serra, seja com cor­ren­tões se­guido da prá­tica das quei­madas, se torna mais agres­sivo, so­bre­tudo nas áreas de con­flito de terra e fron­teiras agrí­colas.

Em ne­nhum mo­mento, porém, elas atin­giram a pro­porção deste mês de agosto na sequência do Dia do Fogo (10/08). Se­gundo re­gistro do INPE, houve um cres­ci­mento de 82% entre 2018 e 2019 com 71.497 focos de in­cêndio que cas­ti­garam prin­ci­pal­mente a Re­gião Amazô­nica e o Cer­rado. Mas, não só, ou­tras re­giões também apre­sentam au­mento das quei­madas em re­servas eco­ló­gicas (2).

Ob­vi­a­mente, tal de­mons­tração de oni­po­tência ob­tusa do em­pre­sa­riado, re­pre­sen­tado por pro­pri­e­tá­rios de terra e de ne­gó­cios re­la­ci­o­nados ao agro, hi­dre­lé­tricas, mi­ne­ração, na­ci­onal, in­ter­na­ci­onal, re­ver­bera o aceno fa­vo­rável da pre­si­dência que, pelas mãos do “am­bi­en­ta­lista” Ri­cardo Salles, pro­vi­den­ciou uma efi­ci­ente “fle­xi­bi­li­zação” de todos os me­ca­nismos de pro­teção am­bi­ental e de po­pu­la­ções tra­di­ci­o­nais no campo.

De­pois de muita crí­tica in­terna e ex­terna, o go­verno, a tí­tulo de “com­bater” essa prá­tica, baixou o De­creto nº 9.992, de 28 de agosto de 2019. Na ver­dade, foi a jus­ti­fi­ca­tiva dada para in­cre­mentar a mi­li­ta­ri­zação do já os­ten­sivo apa­relho de re­pressão ins­ta­lado no sul/su­deste do Pará desde as Guer­ri­lhas dos anos 60, 70 e 80. Pois o fogo con­tinua ar­dendo no país in­teiro.

Cor­reio da Ci­da­dania: Ainda sobre as quei­madas, o que pensa do de­bate pre­do­mi­nante? Con­corda com o geó­grafo Ari­o­valdo Um­be­lino, que afirmou que até o mo­vi­mento am­bi­en­ta­lista, ao deixar de lado a questão da pro­pri­e­dade da terra, re­baixou sua crí­tica e con­se­quen­te­mente sua ca­pa­ci­dade de in­ter­fe­rência? De toda forma, en­xerga na questão am­bi­ental um pos­sível es­topim para um novo ciclo po­lí­tico an­ti­ca­pi­ta­lista?

Maria Or­landa Pi­nassi: Con­cordo ple­na­mente com o pro­fessor Ari­o­valdo. Mo­vi­mento am­bi­en­ta­lista que não ques­tiona a pro­pri­e­dade pri­vada da terra, que não de­nuncia os usos es­pú­rios que se faz dela e que não com­bate a re­lação so­cial ba­seada na su­pe­rex­plo­ração do tra­balho, acaba, em não poucos casos, por forjar crí­ticas ro­mân­ticas anti-hu­ma­nistas, ora fu­tu­ristas, ora sau­do­sistas. Estou fa­lando de dis­to­pias cada vez mais pe­ri­gosas que pro­li­feram em todo mundo.

Isso vale para o mo­vi­mento am­bi­en­ta­lista e para todos os mo­vi­mentos de mu­lheres, de ne­gros, LGBTQ que an­coram suas crí­ticas à so­ci­e­dade em prin­cí­pios iden­ti­tá­rios pós-mo­dernos que, con­forme vimos em pas­sado re­cente, criam re­la­ções rei­fi­cadas, in­di­vi­du­a­li­zadas e es­tra­nhadas entre si. Qual­quer crí­tica eman­ci­pa­tória ao de­sen­vol­vi­mento con­tro­lado pelo ca­pital pre­cisa, ne­ces­sa­ri­a­mente, atrelar-se a uma pers­pec­tiva so­cial re­vo­lu­ci­o­nária, ra­dical, não rei­vin­di­ca­tiva, pro­po­si­tiva, in­clu­siva em um sis­tema que há muito tempo não con­segue re­pro­duzir-se sem deixar ruínas e mais ruínas para trás.

Cor­reio da Ci­da­dania: Outra co­lo­cação de seu ar­tigo de 2018 tem o se­guinte trecho: “as úl­timas mas­sivas ma­ni­fes­ta­ções po­pu­lares acon­te­ceram em 2015 com os se­cun­da­ristas e mais re­cen­te­mente com as lutas dos in­dí­genas em vá­rias re­giões do país. As ruas vêm sendo ocu­padas por cen­trais sin­di­cais e mo­vi­mentos so­ciais mais pre­o­cu­pados em trans­formá-las em pa­lan­ques para fins elei­to­reiros do que com­bater as es­to­cadas do atual Es­tado bra­si­leiro”. Não seria essa, ainda que com novas nu­ances, a tô­nica dos atos de opo­sição re­gis­trados em 2019?

Maria Or­landa Pi­nassi: Ao longo destas úl­timas dé­cadas o lu­lismo criou e re­criou me­ca­nismos de me­di­ação e apelos elei­to­reiros. O apa­re­ci­mento como li­de­rança sin­dical ne­go­ci­a­dora dos anos 70, a ins­ti­tu­ci­o­na­li­zação das lutas nos anos 80, a opção pela po­lí­tica par­la­mentar dos anos 90, a po­lí­tica con­ci­li­a­tória no mais alto cargo exe­cu­tivo do país dos anos 2000. O mais re­cente é o Lula Livre que mo­bi­liza os com­pa­nheiros dos mo­vi­mentos sin­dical, po­lí­tico e so­cial, os mesmos que marcam greves ge­rais e ma­ni­fes­ta­ções de apenas um dia.

In­de­pen­den­te­mente da minha opi­nião sobre a jus­teza da li­ber­tação (o que seria ab­so­lu­ta­mente co­e­rente já que a jus­tiça se es­quiva de punir ou­tros crimes e cri­mi­nosos muito mais re­le­vantes e he­di­ondos), penso que di­ante da gra­vi­dade da si­tu­ação so­cial, po­lí­tica e econô­mica do país, as ta­refas são muito mai­ores e di­fí­ceis. Há muito tempo somos re­féns do “menos ruim” e o risco que cor­remos se isso vier a acon­tecer é cairmos na ilusão, tanto quanto na Ar­gen­tina, de um pro­gres­sismo des­lo­cado no tempo. Dessa vez muito mais iso­lados no con­ti­nente e no mundo e com muito menos ca­cife para bancar po­lí­ticas de alívio so­cial.

Cor­reio da Ci­da­dania: Di­ante da onda ul­tra­con­ser­va­dora que o mundo as­siste, com seus dis­cursos pre­ten­sa­mente an­tis­sis­tê­micos e uma atu­ação de es­va­zi­a­mento do Es­tado, não es­tamos di­ante de um di­lema ex­tre­ma­mente com­plexo para as es­querdas? Como sair dessa en­cru­zi­lhada sem apa­recer como de­fen­sora de um sis­tema que pe­na­liza cada dia mais a vida das massas po­pu­lares e tra­ba­lha­doras?

Maria Or­landa Pi­nassi: Não vejo pro­ta­go­nismo para as es­querdas acos­tu­madas aos con­flitos e ten­sões do pe­ríodo an­te­rior a essa re­a­li­dade des­crita. As ins­ti­tu­ci­o­na­li­za­ções e as lutas de­fen­sivas – no sin­di­cato e no par­tido po­lí­tico par­la­mentar – tu­te­ladas pelo es­tado de bem-estar-so­cial aco­mo­daram as es­querdas numa zona de con­forto de onde re­lutam em sair, fazer au­to­crí­tica, ter per­cepção re­a­lista da pró­pria his­tória, do pró­prio tempo. As es­querdas se abo­le­taram na sombra do Es­tado. Não con­se­guem criar es­tra­té­gias novas, nem per­ceber a ri­queza das lutas da­queles que en­frentam o ca­pital, que não rei­vin­dicam, nem es­peram mais nada daí.

Não obs­tante a pro­funda de­ca­dência da po­lí­tica, o que mais as­sis­timos entre as es­querdas é o apelo pela imoral de­mo­cracia li­beral, re­pre­sen­ta­tiva. Ou seja, a es­tru­tura de fun­ci­o­na­mento do sis­tema co­lapsou to­tal­mente, mas o li­be­ra­lismo con­tinua a ser a única saída para elas. Sim, as es­querdas en­si­mes­maram-se no in­te­rior da crise es­tru­tural da po­lí­tica.

Por isso mesmo é que as forças ul­tra­con­ser­va­doras as­sumem, a partir da cor local e como po­lí­tica de Es­tado, papel de van­guarda para as massas des­pro­te­gidas, de­si­lu­didas e de­ses­pe­radas de seus pró­prios países.

A Eu­ropa con­firma a as­censão da xe­no­fobia ofen­siva com San­tiago Abascal (Vox, Es­panha), Matteo Sal­vini (Liga Norte, Itália), Viktor Orbán (Fi­desz, Hun­gria), Ale­xander Gau­land e Alice Weidel (AfD, Ale­manha), Ma­rine Le Pen (Agru­pa­mento Na­ci­onal, França) e Jussi Halla-aho (Par­tido dos Fin­lan­deses, Fin­lândia). O re­sul­tado as­que­roso da blin­dagem eu­ro­peia aos re­fu­gi­ados dos hor­rores de seus países é seu ex­ter­mínio por afo­ga­mento em massa no Mar Me­di­ter­râneo.

Na África do Sul, Zâmbia e Ni­géria, prin­ci­pal­mente, res­surge um tipo pe­cu­liar de apartheid – ou afro­fobia – que ins­tiga a po­pu­lação tra­ba­lha­dora, pobre e negra do país contra os imi­grantes tra­ba­lha­dores, po­bres e ne­gros oriundos, prin­ci­pal­mente, de Zim­bábue, Le­soto e Mo­çam­bique (3). Nas Amé­ricas de Trump e Bol­so­naro, re­cru­descem as me­didas contra re­fu­gi­ados, re­ce­bidos com os re­quintes de uma mal­dade cada vez mais ex­plí­cita por go­ver­nantes e por “ci­da­dãos de bem”.

Di­ante do atual es­tado des­tro­çado da po­lí­tica da (des)ordem bur­guesa, re­a­firmo que a única saída da bar­bárie é rein­ventar a po­lí­tica como luta de classes, uma luta que deve re­criar-se bem longe da tu­tela do Es­tado, à margem da ins­ti­tu­ci­o­na­li­dade, ra­di­cal­mente crí­tica da pro­pri­e­dade pri­vada e de qual­quer pers­pec­tiva de­sen­vol­vi­men­tista. Uma luta contra a ordem e que aponte para além do ca­pital. Isso, porém, não po­derá ser re­a­li­zado pelos que ficam no mesmo lugar, olhando para o pró­prio um­bigo, im­pe­didos de ca­mi­nhar para frente pelo peso do pas­sado que car­regam nas costas.

Notas:

1) Flo­restan Fer­nandes, “Notas sobre o fas­cismo” em Poder e con­tra­poder na Amé­rica La­tina. RJ, Zahar Edi­tores, 1981. (p. 32)

2) Nas ci­dades, as quei­madas têm pres­tado bons ser­viços à es­pe­cu­lação imo­bi­liária. Veja-se, por exemplo, a quan­ti­dade de in­cên­dios cri­mi­nosos em fa­velas da ci­dade de São Paulo.

3) Ver o ar­tigo “Ra­cismo negro an­ti­negro na África”, pu­bli­cado em 10/09/2019 por Pas­sa­pa­lavra. https://​pas​sapa​lavr​a.​info/​2019/​09/​128220/

http://www.correiocidadania.com.br/34-artigos/manchete/13875-a-unica-saida-da-barbarie-e-reinventar-a-politica-como-luta-de-classes

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