Sociedade

A teoria do cidadão de bem armado foi derrubada

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ALEX YABLON – Ao reunir dados de 37 anos de pesquisas, uma equipe norte-americana explica por que o porte de arma contribui para o aumento de crimes.

Nas quatro décadas do movimento moderno de direito a armas, uma de suas vitórias mais significativas não aconteceu nas urnas, na mesa do presidente ou nos tribunais. Uma das maiores batalhas vencidas pelos ativistas pró-armas aconteceu na mente de milhões de norte-americanos — e outros povos influenciados por eles.

Desde o final dos anos 70, a Associação Nacional de Rifles (NRA em inglês) e outros defensores das armas de fogo conseguiram tornar a autodefesa armada cada vez mais aceitável no dia a dia. Uma riqueza de dados de pesquisa — que veio à tona graças a uma grande pesquisa do Pew no mês passado — mostra que os norte-americanos se tornaram cada vez mais confortáveis com o porte de armas em público. Defesa pessoal é a razão mais citada pelos donos de armas, que tronaram pistolas o tipo de arma de fogo mais popular do arsenal dos EUA. Essas atitudes e comportamentos marcam uma grande guinada: no meio dos anos 90, os norte-americanos tinham armas principalmente para recreação, e em 2005, grande parte do público achava que apenas policiais deviam carregar armas em público.

No centro dessa campanha pelos corações, mentes e coldres nos EUA está um artigo de fé que a NRA e seus aliados pregam desde os anos 90: que as pessoas podem aumentar a segurança pública carregando armas para se defender. O economista John Lott desenvolveu a teoria “Mais Armas, Menos Crime” em seu livro de 1998 de mesmo nome, e tem popularizado a ideia através de testemunhos legislativos e artigos de opinião. A NRA tem empregado o trabalho de Lott para contrariar pedidos de contenção do porte de armas. Depois do atentado na Escola Fundamental Sandy Hook, quando o líder do NRA Wayne LaPierre fez seu infame comentário de que “o único jeito de parar um bandido com uma arma é ter um cidadão de bem com uma arma”, ele estava mencionando a noção já enraizada de que armas ao alcance da mão de seu proprietário aumentam a segurança pública.

É uma ideia poderosa e sedutora, particularmente nos EUA, que favorece a tal liberdade individual sobre ideais comunitários. E também está totalmente errada, segundo uma nova análise de quase 40 anos de dados de crime.

“Por anos, a pergunta foi: há algum benefício de segurança pública no direito de carregar armas? E isso agora está claro. A resposta é não.” — John Donohue, Stanford Law School

Num novo trabalho publicado em 21 de junho pela National Bureau of Economic Research, acadêmicos da Stanford Law School analisaram dados de quatro modelos estatísticos diferentes — incluindo um desenvolvido por Lott no livroMore Guns, Less Crime — e chegaram a uma conclusão sem ambiguidades: estados norte-americanos que facilitam o acesso de armas a seus cidadãos têm níveis mais altos de crimes violentos não fatais do que estados que restringem o porte de armas. A exceção, na pesquisa, aparecia na categoria de assassinato; ali, os pesquisadores determinaram que qualquer efeito nas taxas de homicídio por políticas expandidas de porte de armas são estatisticamente insignificantes.

Outros estudos conduzidos desde 1994 minavam a tese de Lott, mas essa nova pesquisa é mais abrangente e assertiva ao derrubar a fórmula do “mais armas, menos crime”.

“Por anos, a pergunta foi: há algum benefício de segurança pública no direito de carregar armas? E isso agora está claro”, disse o líder do estudo, John Donohue. “A resposta é não.”

Donohue e os coautores do estudo observaram dados de crimes nos EUA entre os anos 1977 a 2014, nos 33 estados que implementaram a “Shall Issue” — dispositivo legal que permite o porte de armas durante o período citado. Os estatutos “Shall Issue” são trabalho da NRA, que fez lobbie com políticos em vários capitólios para relaxar seus requisitos em relação ao porte de armas. Os estados da “Shall Issue”, a que Donohue se refere como right to carry (RTC), exigem que porte de armas seja garantido a qualquer pessoa que cumpra os critérios básicos. Sem surpresa, esses estados permitem inscrições em taxas maiores que estados “May Issue”, onde as autoridades têm mais discrição em decidir quem pode sair pelo mundo portando uma arma.

A equipe de Stanford, no entanto, descobriu exatamente o oposto: “Dez anos depois da adoção das leis de RTC”, eles escreveram, “crimes violentos são de 13 a 15% mais altos do que seriam sem essas leis”.

Avaliações anteriores dos estatutos de porte vieram logo que ondas de leis “Shall Issue” varreram os EUA nos anos 80 e começo dos 90. Uma delas foi um relatório bem conhecido de 2004 do National Research Council, que também mostrava furos na conclusão de Lott — mas que não podia dizer definitivamente que o porte de armas aumentava as taxas de crimes, porque não havia anos suficientes de dados para peneirar. Como a equipe de Stanford pôde observar, em estados com direito expandido de porte de armas por uma década ou mais, a pesquisa chegou a estimativas muito mais fortes sobre os efeitos das leis “Shall Issue” no crime.

Em sua pesquisa, a equipe de Stanford sugere que o aumento do porte de armas contribui para o aumento dos crimes de várias maneiras. Enquanto cidadãos de bem se armavam, criminosos nas mesmas comunidades também conseguiam mais armas. Pessoas armadas obedientes à lei, teorizaram os pesquisadores, podem contribuir com uma corrida armamentista nas ruas para trazer mais armas ao público, num ambiente em que essas armas têm mais chances de serem perdidas ou roubadas, alimentando assim o mercado informal. Quanto mais as pessoas se conscientizam de que seu ambiente está se enchendo de armas, mais sua percepção da sociedade se colore de medo e raiva, as levando a uma predisposição à violência.

 “Não fiquei surpreso em ver crimes violentos aumentando”, disse Donohue. “Já era de se esperar que armas contribuíssem com crimes violentos.”

As descobertas de Stanford vão direto na jugular não apenas da mensagem da NRA, mas do entendimento comum sobre tendências de crime disseminadas nas últimas duas décadas. Pelas medições nacionais, os crimes violentos caíram dramaticamente depois de um pico no começo dos anos 90, e a queda coincidiu amplamente com a expansão do direito de carregar armas de fogo. Lott e outros estava ansiosos para apontar o declínio no crime nacional como evidência de sua teoria, ou, pelo menos, distrair das preocupações de que mais armas em público poderiam levar a um banho de sangue generalizado.

O problema na conexão do aumento do porte de armas e a queda na taxa nacional de crimes, como Donohue e seus coautores apontam, é que o crime não caiu igualmente em todas as partes do país. Em vez disso, o declínio nos crimes violentos foi mais pronunciado em estados que mantiveram um controle rígido sobre o porte, como Nova York e Califórnia. Quando outros estados decidiram facilitar que seus residentes carregassem armas, eles parecem ter perdido uma redução no crime na mesma magnitude. Em termos crus, o crime também declinou naqueles estados RTC — mas nem perto de quanto poderia ter caído. Examinando estatísticas do Censo Norte-Americano e do FBI, os autores estimam que estados com leis mais severas para porte viram o crime cair em 42% entre 1977 a 2014. A queda é quatro vezes maior que os 9% vistos nos estados com RTC.

Aqui também a equipe pôde rodar cálculos que eram impossíveis em 90 e no meio dos anos 2000, quando os estudiosos que inicialmente contrariaram a teoria de Lott tinham muitos menos dados para processar.

As descobertas de Stanford se baseiam em dois métodos estatísticos com nomes técnico que parecem obscuros: análise de dados em painel e análise de controles sintéticos. Dados em painel tentam desmontar fenômenos sociais complexos — como o crime — estudando seus componentes menores e mais fáceis de medir, como taxas de encarceramento, níveis de contingente policial, pobreza, renda e densidade populacional.

Diferentes pesquisadores fizeram julgamentos distintos sobre quais fatores tinham mais poder de fazer o crime subir ou cair. Em vez de basear sua análise em um grupo de variáveis, a equipe de Stanford cobriu 37 anos de dados de crimes dispostos em quatro painéis: o favorito deles, chamado DAW; um desenvolvido pelo Brennan Center; o painel usado por John Lott em More Guns, Less Crime, e um quarto favorecido por dois pesquisadores pró-armas chamados Charlisle Moody e Thomas Marvel.

Projeções feitas com esses quatro painéis mostraram que estados RTC teriam quedas ainda maiores nos crimes violentos se não tivessem afrouxado suas leis de porte de armas. “Os dados do painel não deram nenhuma dica de que algo bom estava vindo do direito de porte”, disse Donohue.

Como no Texas, por exemplo. As projeções de Donohue descobriram que dez anos depois que o Estado da Estrela Solitária colocou seu RTC em vigor, os crimes violentos aumentaram em 16% do que seriam sem a lei, como mostra o gráfico abaixo. A linha pontilhada, rotulada “unidade de controle sintético”, é uma projeção do que poderia ter acontecido com as taxas de crimes violentos no Texas se o estado não tivesse afrouxado seu estatuto de porte, baseado numa composição de estados de demografia similar.

A única diferença entre as projeções usadas pelos estudiosos pró-armas e os outros dois painéis veio ao destacar as taxas de assassinatos. O principal propósito de cidadãos armados, na ideia da NRA e vendedores de armas, é incapacitar psicopatas antes que eles tirem vidas inocentes. Mas quando a equipe de Stanford rodou as fórmulas dos pesquisadores pró-armas, os gráficos mostraram que o RTC na verdade impulsionava as taxas de homicídio.

Os painéis DAW e do Brennan Center, por outro lado, mostraram que apenas violência não fatal seria mais baixa se os estados nunca tivessem optado pela rota do “Shall Issue”. E mostraram isso em todos os 33 estados onde rodaram a simulação, sem exceções.

Mas uma pesquisa melhor realmente significa um resultado melhor no mundo real?

Para essa questão, Donohue se baseia não em matemática sofisticada, mas em anos de experiência estudando a questão das armas. “Muita gente tem ideias fixas sobre armas”, ele disse. “É difícil influenciar seu pensamento.”

Donohue pode estar entendendo o desafio que eles e outros estudiosos enfrentam agora. Pesquisas sociológicas e antropológicas sugerem que o sentimento dos EUA em relação a armas de fogo e porte para defesa pessoal se baseiam em noções elementares como identidade e masculinidade, não em medidas empíricas de segurança conquistada ou perdida.

Ainda assim, legisladores e juízes são um tipo diferente de público que compradores de armas ou eleitores. Donohue espera que suas descobertas cheguem a esses olhos influentes.

“A Suprema Corte vai ter que acabar decidindo se há mesmo um direito ao porte de arma”, ele disse, falando um dia depois que juízes se recusaram a ouvir um desafio às leis de porte de armas restritivas na Califórnia. “O que eles vão fazer com essas evidências?”

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