Sociedade

A ideologia racista como mito fundante da sociedade brasileira

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Juliana Borges – A con­jun­tura atual no país nos faz vo­ca­lizar a todo o mo­mento que es­tamos vi­vendo “um re­tro­cesso”, “um re­torno ao pas­sado”.

O go­verno ile­gí­timo de Mi­chel Temer se ins­taura apos­tando na crise de re­pre­sen­tação e par­ti­ci­pação e apro­fun­dando-a. Com isso, avança uma agenda re­gres­siva e de re­formas ne­o­li­be­rais. Nesse bojo, são apre­sen­tadas as re­formas tra­ba­lhista e da pre­vi­dência, se avança na gri­lagem sobre terras in­dí­genas e qui­lom­bolas, a in­ten­si­ficar o ge­no­cídio no campo. Avança o corte de re­cursos da ci­ência, tec­no­logia e pro­dução de co­nhe­ci­mento, numa ofen­siva contra pen­sa­mento crí­tico. Com o des­monte e pa­ra­li­sação de ati­vi­dades de ins­ti­tui­ções fe­de­rais de en­sino, am­plia-se a mi­li­ta­ri­zação de ter­ri­tó­rios e co­mu­ni­dades, se acentua o en­car­ce­ra­mento em massa e o sis­tema pu­ni­ti­vista ganha des­taque e cen­tra­li­dade.

Mas isto não está, em ab­so­luto, des­co­lado do ce­nário global, no qual o ne­o­li­be­ra­lismo avança no se­questro do Es­tado, res­trin­gindo a de­mo­cracia, des­mon­tando e de­sor­ga­ni­zando a es­tru­tura es­tatal, im­pondo o con­ser­va­do­rismo pelo dis­curso do medo. Na lin­guagem de Bo­a­ven­tura de Sousa Santos, es­tamos vi­vendo cada vez mais em so­ci­e­dades “po­li­ti­ca­mente de­mo­crá­ticas e so­ci­al­mente fas­cistas”. Ou seja, sob um verniz e dis­curso de­mo­crá­ticos, o que temos visto são prá­ticas cada vez mais res­tri­tivas da de­mo­cracia, nas quais o ca­pital es­pe­cu­la­tivo e a ló­gica fi­nan­cei­ri­zada im­peram. O ser hu­mano se torna com­mo­dity. Nesta so­ci­e­dade em que tudo é con­su­mível, ven­dável e des­car­tável, temos o ca­minho aberto para a sel­va­geria ge­ne­ra­li­zada.

Con­tudo, seria uma no­vi­dade seres hu­manos mer­can­ti­li­zados em nosso país? A sel­va­geria e vi­o­lência são no­vi­dades ou cons­ti­tui­doras da so­ci­e­dade bra­si­leira? Há uma re­gressão ou um re­or­de­na­mento para sis­temas e ca­rac­te­rís­ticas fun­dantes da so­ci­e­dade bra­si­leira, de modo a ga­rantir e apro­fundar o pleno fun­ci­o­na­mento das de­si­gual­dades e do sis­tema de castas sócio-ra­ciais?

Ven­demos ao mundo – e acre­di­tamos ve­e­men­te­mente nisso – que somos um povo pa­cí­fico, amis­toso, re­cep­tivo, bem hu­mo­rado e amável, entre ou­tras ca­rac­te­rís­ticas de pas­si­vi­dade e pa­ci­fismo. Ou seja, de modo geral nos en­xer­gamos pa­cí­ficos. Afir­mamos, iro­ni­ca­mente, estas ca­rac­te­rís­ticas, ao passo que as es­ta­tís­ticas con­tra­dizem ve­e­men­te­mente estas con­di­ções que passam a cren­dices. Por ano, são as­sas­si­nados 30 mil jo­vens no país, fruto da vi­o­lência ur­bana. Des­cons­truindo a cren­dice da de­mo­cracia ra­cial, este dado expõe que 23 mil deles são jo­vens ne­gros.

Se­gundo a fi­ló­sofa e pro­fes­sora Ma­ri­lena Chauí, “um mito fun­dador é aquele que não cessa de en­con­trar novos meios para ex­primir-se, novas lin­gua­gens, novos va­lores e ideias, de tal modo que, quanto mais pa­rece ser outra coisa, tanto mais é a re­pe­tição de si mesmo” (“O mito fun­dador do Brasil”, FSP). Neste sen­tido, e di­ante do ce­nário, é pos­sível afirmar que de­mo­cracia ra­cial e pa­ci­fismo formam o ar­ca­bouço do “mito fun­dador” do nosso país. Ou seja, o ra­cismo é uma ide­o­logia que atra­vessa o tempo e acom­panha o de­sen­vol­vi­mento e trans­for­ma­ções his­tó­ricas da so­ci­e­dade bra­si­leira.

A pri­meira mer­ca­doria do co­lo­ni­a­lismo, e seu pos­te­rior de­sen­vol­vi­mento ca­pi­ta­lista no país, foi o corpo negro es­cra­vi­zado. Este foi um pro­cesso que não se fixou apenas na es­fera fí­sica da opressão, mas es­tru­turou o fun­ci­o­na­mento e a or­ga­ni­zação so­cial e po­lí­tica do país. Sendo assim, as di­nâ­micas das re­la­ções so­ciais são to­tal­mente atra­ves­sadas por esta hi­e­rar­qui­zação ra­cial. Se, no pro­cesso de cons­trução de ideia de des­co­bri­mento, o ra­cismo se co­locou ex­pli­ci­ta­mente pela ins­ti­tuição da es­cra­vidão, ele se­guiu pela hi­e­rar­qui­zação e te­o­rias ra­ciais no trans­correr dos sé­culos 19 e 20, e foi se re­fa­zendo e se re­a­pre­sen­tando em ou­tras con­fi­gu­ra­ções neste per­curso his­tó­rico, per­ma­ne­cendo sempre ali, la­tente nas re­la­ções so­ciais e pela es­tru­tura e ins­ti­tui­ções do Es­tado.

A “fun­dação” de nosso país acon­tece tendo a es­cra­vidão ba­seada na hi­e­rar­qui­zação ra­cial como pilar. O ra­cismo é uma das ide­o­lo­gias fun­da­doras da so­ci­e­dade bra­si­leira, assim como a vi­o­lência. Um exemplo ob­je­tivo sobre isso é que di­versos ma­nuais e li­vros de his­tória apontam que, no início da in­vasão por­tu­guesa, es­ti­mava-se uma po­pu­lação de in­dí­genas em torno de 2 mi­lhões de pes­soas nestas terras.

Em 1819, a es­ti­ma­tiva cai para cerca de 800.000 in­dí­genas. O trá­fico de afri­canos se­ques­trados teve início em 1549. Es­tima-se que, até a proi­bição do trá­fico tran­sa­tlân­tico, cerca de 5 mi­lhões de afri­canos foram se­ques­trados e es­cra­vi­zados no Brasil. Algo tão fun­da­mental no pro­cesso de for­mação do país não some em um es­talar de olhos pela sim­ples des­ti­tuição da mo­nar­quia, es­ta­be­le­ci­mento do re­pu­bli­ca­nismo e pre­ten­sões mo­der­ni­zantes.

Aliás, a pre­tensa mo­der­ni­zação do país, seja em sua in­de­pen­dência, ao per­ma­ne­cermos sob o po­derio da mesma fa­mília co­lo­ni­za­dora, seja nos ventos re­pu­bli­canos, tem na cons­ti­tuição de suas ins­ti­tui­ções me­ca­nismos de ma­nu­tenção das es­tru­turas de opressão e da ga­rantia de poder e ca­pital nas mãos de elites que dis­putam entre si os es­pó­lios deste pro­cesso.

Neste sen­tido, as mo­di­fi­ca­ções que vi­vemos hoje têm, mais uma vez, sob o verniz de um dis­curso mo­der­ni­zante, as fer­ra­mentas que ga­rantem o sis­tema de castas socio-ra­ciais. Em um ce­nário de crise sis­tê­mica, em um país de elites sem pro­jeto na­ci­onal, o golpe de 2016 vai mos­trando, cada vez mais, seus reais ob­je­tivos.

Não é ab­surdo afirmar, por exemplo, que o Es­tado de ex­ceção não se es­ta­be­lece apenas em 2016. O Es­tado de ex­ceção no Brasil é uma re­a­li­dade so­cial e po­lí­tica, se rein­ven­tando e re­es­tru­tu­rando há sé­culos. Mesmo após a “re­pac­tu­ação” com a Cons­ti­tuição de 1988, vemos que dis­po­si­tivos fun­da­men­tais, que mo­ve­riam as es­tru­turas de de­si­gual­dades no país, ja­mais foram re­gu­la­men­tados e pra­ti­cados. Ou seja, há, a todo o mo­mento, uma re­mo­de­lação na es­tru­tura das ins­ti­tui­ções de modo a “mudar sem trans­formar nada”.

Um exemplo é o Sis­tema de Jus­tiça Cri­minal, en­ten­dendo-o aqui como todo um apa­rato que en­volve di­versas ins­ti­tui­ções e or­ga­nismos. O sis­tema de jus­tiça cri­minal tem pro­funda co­nexão com o ra­cismo, sendo o fun­ci­o­na­mento de suas en­gre­na­gens mais do que per­pas­sados por esta es­tru­tura de opressão, mas o apa­rato re­or­de­nado para ga­rantir a ma­nu­tenção do ra­cismo e, por­tanto, das de­si­gual­dades ba­se­adas na hi­e­rar­qui­zação ra­cial.

A pri­meira Lei Cri­minal do país data de 1830 e já es­ta­be­lecia re­gime di­fe­ren­ciado de pe­na­li­zação entre brancos e ne­gros (in­clusos os li­bertos). Sendo o corpo negro es­cra­vi­zado visto como um bem e mer­ca­doria, além do cum­pri­mento de penas nos po­rões das car­ce­ra­gens, havia a pu­nição na es­fera pri­vada exer­cida pelos se­nhores de es­cravos. Sem qual­quer re­gu­lação ou de­ter­mi­nação e in­ge­rência do Es­tado sobre este bem, a bar­bárie se ins­tau­rava. Ainda vi­vemos resquí­cios deste en­ten­di­mento de que em corpos e co­mu­ni­dades ne­gras, tudo de mais bár­baro pode ser pra­ti­cado. O corpo negro segue no ima­gi­nário como um ter­ri­tório em que todo tipo de es­tí­mulo e re­pressão podem ser exer­cidos. O poder sobre o corpo negro segue no senso comum so­cial.

Além disso, há di­versos do­cu­mentos his­tó­ricos que com­provam pe­na­li­dades mai­ores aos ne­gros, es­cra­vi­zados ou li­bertos, além de uma série de có­digos e leis que vão agu­di­zando esta se­le­ti­vi­dade, in­clu­sive na pri­meira Re­pú­blica. Apesar de acharmos que leis e normas aber­ta­mente se­gre­ga­ci­o­nistas só ocor­reram nos Es­tados Unidos, nós ti­vemos no país, no sé­culo 19, a de­ter­mi­nação de que ne­gros só cir­cu­lassem em posse de “passes” que “ga­ran­ti­riam” seu di­reito de ir e vir, mesmo sendo li­bertos! Com a Pri­meira Re­pú­blica e re­formas nas leis cri­mi­nais, ti­vemos a cri­mi­na­li­zação da po­pu­lação negra atin­gindo novos ní­veis com a “lei da va­di­agem”, que con­ti­nuou sendo apli­cada, fun­da­men­tal­mente contra ne­gros e po­bres, até pouco mais de 7 anos no país. Afinal, quem de­fine o que é crime e quem é cri­mi­noso?

O sis­tema de jus­tiça cri­minal é pouco dis­cu­tido mesmo entre ati­vistas que lutam por jus­tiça e igual­dade so­cial. Assim, este tema are­noso e di­fícil de ser tra­tado na so­ci­e­dade, mas de fun­da­mental im­por­tância sis­tê­mica na re­pro­dução de in­jus­tiças e de­si­gual­dades ét­nico-ra­ciais, econô­micas, so­ciais e po­lí­ticas, acaba por ser dei­xado de lado mesmo entre uma pro­dução e cons­trução de lutas pro­gres­sistas na so­ci­e­dade. Um sis­tema que tem entre presos 67% de ne­gros, en­quanto tem entre juízes e de­sem­bar­ga­dores 84,5% de brancos não pode ser pen­sado sem esse ele­mento es­tru­tu­rador que é o ra­cismo como mito fun­dante do país. Como ex­plicar ta­manha dis­pa­ri­dade?

A crise sis­tê­mica e o golpe no Brasil podem pa­recer dis­tantes desta re­a­li­dade cri­minal, mas são apa­ratos e es­tru­turas ab­so­lu­ta­mente in­ter­sec­ci­o­nados e in­dis­so­ciá­veis para a ma­nu­tenção da do­mi­nação e da re­pro­dução de di­fe­renças como de­si­gual­dades. Nossas res­postas pre­cisam apro­fundar-se no mesmo re­fi­na­mento com que estas es­tru­turas e apa­ratos ide­o­ló­gicos operam no fun­ci­o­na­mento de nossa so­ci­e­dade.

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